segunda-feira, 30 de novembro de 2015

A MULHER DE BRANCO

               A MULHER DE BRANCO
                                                                                                                                                                                          (Itagiba José)

Segundo consta, o pai se chamava Agenor, a mãe, Cléamosa, Mosa para os íntimos. A filha, Domitila, a Domí, de uma beleza invulgar, morena de olhos e longos cabelos, negros como uma noite sem lua e sem estrelas, era a alegria e orgulho dos genitores que, dela, tudo esperavam, tudo amavam... A família, assim composta, era um oásis de felicidade, calmaria e ventura... Os moradores da Rua Santana, vizinhos da família residente naquela rua, quase ao lado do Clube Caixeiral, no centro da Uruguaiana de então, todos reverenciavam a beleza invulgar da menina Domitila, a Domí, de todos.

Domí cresceu, se fez moça, mademoiselle ou melindrosa, naqueles tempos de exacerbado modismo à francesa, teto cultural do mundo, a hoje denominada belle époque e ainda que tenha tudo ocorrido na distante Uruguaiana, Rio Grande do Sul, a Sentinela postada lá nos confins do Brasil, na fronteira com a Argentina e o Uruguai.

Claro que a rapaziada da Uruguaiana de então, pertencente a elite rural pré e dominante, vestia-se com apuro e, por isso era denominada janota, tendo-se marcantemente natural na indumentária o uso da bengala e do chapéu coco e a realização, nos finais de semana, do footing nas Ruas Bento Martins, XV de Novembro e Santana e na Av. Duque de Caxias, enfim, ao redor da iluminada e belíssima Praça Barão do Rio Branco (dizem, em evidente exagero dos orgulhosos brasileiros, gaúchos e uruguaianenses, ser a praça mais bela do Brasil) passeios repetitivos protagonizados por rapazes e moças, estas acompanhadas por senhoras mais velhas que elas, cuidadoras das donzelas, normalmente uma tia ou mãe de alguma delas que, timidamente, ensaiavam olhares de soslaio, flertes e namoros com os rapazes.

Após o footing, as moçoilas recolhiam-se às suas residências à espera de, quem sabe, um mancebo encantador viesse bater a sua janela com violões e cantos, em serenata, as saudosas e românticas serenatas origem de tantas histórias de amor quando vários rapazes saíam munidos de instrumentos musicais e muita “cantoria” pela madrugada, prostrando-se aos pés de portas e janelas das namoradas já conquistadas, outras mulheres amadas, namoradas à traição pois não e que esperavam conquistar, entoando músicas de serestas, de um romantismo ingênuo e inocência inolvidável.

N’uma dessas serenatas dirigida à casa de Domí por um de seus muitos “admiradores” e namorado à traição, Agapito Flores mais conhecido como Pitinho, aconteceu o encanto, iniciando-se ali uma história que teria que ser linda não fora o epílogo funesto e inesperado sofrido por ambos os protagonistas... A vida nem sempre é o que se planeja, se escreve ou descreve, seus desígnios são insondáveis, fortuitos, força maior, inestimáveis, imprecisos, como bem cantou e elucidou o grande poeta português, Fernando Pessoa: “... Navegar é preciso, viver não é preciso...”!

Na janela, derramou-se o cantor nos versos e música, sentidos e lacrimosos de Luzes da Ribalta (Limelight) de autoria de Charles Chaplin, na versão de Antônio Maria e João de Barro, o Braguinha, para, logo a seguir, culminar com “Deusa da Minha Rua” a bela página musical de autoria de Jorge Faro e Newton Teixeira. Enquanto a primeira falava de vidas e luzes que, respectivamente, “... se acabam a sorrir... se apagam, nada mais...”, a segunda declamava que a Deusa amada tem os olhos “... onde a lua costuma se embriagar...” e que “... o sol n’um dourado sonho, vai claridade buscar...”.

A emocionada interpretação, a lua cheia, as estrelas brilhantes e a inexplicavelmente cálida temperatura daquela hora, tudo colaborou para que Domí fosse tocada e se apaixonasse imediatamente. Em resumo, funcionou!!! Domí, ouviu e sonhou... Pitinho, a conquistara... daí, para ingressar em todo aquele cerimonial da época para firmar ou afirmar o namoro dito sério, com as intenções casamenteiras foi um passo, além do que Pitinho era considerado “um bom partido” às moças casamenteiras, eis que, coisa difícil para quem havia nascido no lado dos “peões” em terras de fazendeiros, sem indústria e comércio sazonal e ao sabor do câmbio, se alto o peso argentino, muitos “hermanos” comprando em Uruguaiana, se o cruzeiro, moeda de então, “todos” brasileiros indo às compras em Passo de Los Libres, quer para consumo próprio, quer para abastecer terceiros com os respectivos ágio no comércio “formiga” apelidado de chibo (nome espanhol do cabrito). A consequência de cada um desses eventos, desaguava no oposto à cidade cujo comércio restava vitimado, com a falência dos comerciantes e o desemprego dos trabalhadores da cidade atingida – diga-se ainda que pela estabilidade e progresso mais acentuado da Argentina, em maioria de vezes ou quase sempre, o negativo atingia Uruguaiana.

Abra-se parêntese para dizer de uma particularidade pouco divulgada ou conhecida então era que, quando ficava nervoso, Pitinho gaguejava, por isso chamado Gago pelos amigos de sua idade, não se sabendo como conseguia entoar, com sua bela voz e excelente musicalidade os cânticos das serestas, sendo, apesar de possuído por intenso nervosismo quando, um grande intérprete das canções, mormente da sempre considerada rainha das serestas, “Chão de Estrelas” de Orestes Barbosa e Silvio Caldas.

Pitinho era empregado “de carreira”, ganhando bom salário na portentosa Viação Férrea do Rio Grande do Sul-VFRGS, empresa que se consolidava no transporte ferroviário de então (transportando para todos os lados, passageiros, mercadorias, frutas, gados vacum, ovino, etc). Pitinho morava na Rua Sete de Setembro, na esquina da Rua Catorze de Julho, perto do campo do Esporte Clube Ferro Carril, do qual era sócio contribuinte, circulando naqueles quarteirões e ruas adjacentes como a General Câmara, a José Garibaldi, a Aquidaban (atual, Av. Flores da Cunha), a Prado Lima, a Vinte e sete de Outubro (atual, Gregório Beheregaray) e a Quatorze de Julho, onde desenvolvia atividades sociais e esportivas (gostava de praticar futebol, como lateral direito – não muito talentoso é verdade) e cultivava muitas amizades e convívios com rapazes e moças de sua idade, além de ser reconhecido como honesto, trabalhador, afável e educado. Ao que constava não tinha inimigos ou detratores, sendo muito considerado por todos que privaram de sua companhia e conhecimento.

E tudo se encaminhava para um final feliz para o casal, Domí e Pitinho, até que (porque será que em maioria de vezes tem que acontecer o “até que...”, não é muito justo, embora possa ser creditado a lei da vida, do imprevisível, do “estava escrito”, sei lá...) alguns dias antes do casamento marcado e com festa encomendada, programada, pronta a ser realizada no grande, querido e tradicional Clube Caixeiral, Pitinho desapareceu, sumiu como se jamais tivesse existido, nunca mais alguém ouviu falar dele, evaporou-se... Um estranho caso jamais desvendado, materialmente, pelo menos... Talvez um dia e como mero exercício de imaginação, juntando os cacos dos vidros estilhaçados desde aquele tempo e cada vez mais dispersos, se possa formar algum juízo ou histórico que, pelo menos, torne explicável o inexplicável e inexpugnável mistério do desaparecimento, para sempre, de Pitinho, o seresteiro apaixonado por Domí que foi impedido de casar com a mesma, sabe-se lá como ou porquê... Aliás, abra-se outro parêntese para dizer ou ratificar a quase natural destinação de Uruguaiana a casos extraordinários de aparições e desaparecimentos sem que se saiba origens, destinação, finais, como, quando, nem porquês... São os casos, exemplificativamente, do Velho Damião, o Sete Trouxas que nela apareceu sem se saber de onde e cuja “história” tentamos contar através de conto próprio antes publicado mesmo sabendo que não foi ou pode ser contada na íntegra, ou a do velho Jorge, o “Aviador do Lixo” que portava como se fosse parte perene de sua cabeça um boné ou “gorro” de aviador “das antigas”, da primeira guerra mundial portando um rádio galena, composto por uma caixa de fósforos com uma “pedra” de chumbo dela saindo fios de cobre, um aparentando “fio terra”, outro para ser contatado em possível “antena”, tipo rádio portátil sem dial, pilha ou bateria, instrumento que captava som das rádios emissoras de ondas AM (amplitude modulada); a casa escavada em terreno baldio onde morava o “Aviador do Lixo” era outro capítulo... mas isso são outros quinhentos...

Domí, abandonada na véspera do casamento, praticamente no altar, nunca mais foi a mesma... definhou acabando vitimada, após o indescritível sofrimento proporcionado pela doença maldita, a tuberculose que até ali não tinha cura. Domí morreu virgem, devastada pela doença que ceifava muitas vidas naqueles tempos da belle époque e pelo desaparecimento de Pitinho, jamais explicado... Domí morreu tendo em seus ouvidos o inaudível canto de seu noivo, jamais repetido, como a “Deusa...” de Pitinho, cujos olhos agora, como na letra, eram “... espelhos de minha mágoa... poças d’água, sonhando com seu olhar...” ou, mais lancinante e melancólico como Luzes da Ribalta, “... vidas que se acabam... luzes que se apagam, nada mais... é sonhar em vão tentar aos outros iludir, se o que se foi p’rá nós não voltará jamais...”! Sua roupa mortuária era uma espécie de vestido de noiva, alvo como a geada em que se convertera sua vida jovem e agora em fuga e revestindo internamente seu caixão, um tecido de puro cetim, também da cor branca, ratificando, exaltando sua condição de menina-moça, virgem, pura, inocente, casta, tão bela, tão triste, tão precocemente falecida...
Tempos depois da morte de Domitila, a Domí, morena linda de olhos e cabelos negros como uma noite sem lua e sem estrelas, começou a ocorrer um fenômeno inexplicável e que seria chamado de “aparições fantasmagóricas” para logo adiante ser “identificado” e, para sempre, repaginado como “Mulher de branco”, nas ruas e redondezas onde vivera Pitinho, supra elencadas. Tratava-se, segundo consta, do fantasma de uma mulher linda, morena, de cabelos longos e negros, envergando um vestido da cor branca que a cobria da cabeça aos pés.

A Mulher de Branco aparecia para as pessoas, provocando-lhes arrepios, suor frio e acompanhando-as por determinado trecho quando se evaporava no ar, sumia da vista do indigitado vidente, sem falar nada, sem esboçar sequer um sorriso ou um “buuu”, nada disso, apenas se postava ao lado e caminhava como se quisesse identificar a pessoa. Talvez a história mais contundente a respeito tenha sido a vivida pelo militar do exército, cabo Giuseppe que ao chegar na república onde morava com outros militares solteiros, em plena rua Sete de Setembro, noite de inverno, muito enluarada, céu cheio de estrelas, tudo pronto para “cair” geada na madrugada, viu aquela mulher linda, esguia, no pátio do vizinho, por entre os canteiros de hortaliças e, curioso, resolveu chegar perto para vê-la melhor, iniciar conversação ou prosa, conhecer, namorar quem sabe; ao se aproximar da “presa” ela se distanciou indo para mais ao fundo do terreno, para perto da “casinha” (nessa época nem pensar, não existiam, pelo menos naquela região pobre de Uruguaiana, os WCs ou banheiros de hoje), onde desapareceu. Intrigado, no encalço e busca frenética que realizava, Giuseppe abriu a porta da “casinha” acreditando que a linda mulher que vira nela se escondera. Foi a última coisa que se lembrava ter feito quando, por volta das seis horas da manhã, em estado de hipotermia, foi socorrido em plena sarjeta da Rua Santana, quase ao lado do Clube Caixeiral e levado às pressas ao glorioso e venerando Hospital de Caridade e, depois de identificado, medicado e recuperado sua temperatura corpórea, que voltara aos 36°C normais, ao não menos importante Hospital Militar da cidade. Giuseppe sabia que não dormira e, se fosse o caso, não sofria de sonambulismo, por isso jamais soube como fora parar ou deitar na calçada, em estado de pura inconsciência, em frente à casa que fora de Domí e nem a conhecera, tampouco sua história, afinal nem de Uruguaiana era posto que, “gringo” viera de outras plagas, da distante serra onde nascera e se criara, para prestar o serviço militar obrigatório de então, no glorioso 8º Regimento de Cavalaria, onde estava seguindo carreira, já cabo, rumo a patente de terceiro sargento, logo adiante...

Diversas foram as explicações para o caso extraordinário das aparições fantasmagóricas da “Mulher de Branco”, tendo, talvez, a mais plausível, verossímil ou de maior credibilidade, embora possa nem de perto arranhar ou explicar o insondável caso do desparecimento de Pitinho, que, mais a tuberculose, esta quem sabe também resultante daquilo, vitimaram a bela deusa Domí, seja o que todos comungavam como informação ou definição, afinal, Domí que morrera esperando o reaparecimento de Pitinho, agora o buscava nos locais onde mais ele estivera e detinha apreço, ali e ao redor de onde nascera, crescera e todos o amavam e o reconheciam...

Certo é que a Mulher de Branco, durante decênios “apareceu” para terceiros, normalmente em noites de inverno, muito frias, todavia muito enluaradas, com o céu cheio de estrelas brilhantes, em tudo repetindo àquela que, perdida no tempo, Domí ouvira, em meio a acordes sonoros de um violão muito bem tocado pelo grande Miguel “Dedo de Ouro”, sob o ritmo de um bandeiro agilmente tocado pelo ritmista Geada, dentre outros instrumentistas presentes e atuantes como o Charanga, a voz de Pitinho entoando “Luzes da Ribalta” e “Deusa da Minha Rua”, tão lindas, tão românticas, tão...!

Nenhum comentário:

Postar um comentário