quarta-feira, 9 de outubro de 2019

ADÃO "CAMURRA" - O JOÃO SEM MEDO


Nascera ali, na Rua Sete de Setembro, quase esquina com a José Garibaldi, p’ros lados das antenas da Rádio Charrua, na doce e amena cidade de Uruguaiana, a Sentinela avançada do Brasil. Desde guri foi demonstrando intrepidez e desassombro, a coragem dos fortes ainda que nem tanto fosse. Rapazote, pegou em armas participando das revoluções de 1923, 1924, 1925 e 1930 com grande destemor e valia, condecorado pela admiração de seus companheiros de armas. Foi contra o sanguinário e cruel Presidente Arthur Bernardes e dizia ter lutado em São Paulo quando aquele mandou explodir a cidade lá pelo meio da década de 20 (1920). Não era tenente, muito menos capitão, mas apoiou o "tenentismo", muito especialmente pela coragem daqueles jovens, que no episódio histórico conhecido como os "18 (dezoito) do Forte" (de Copacabana,Rio de Janeiro) desafiaram a morte enfrentando forças militares muito superiores, quase todos a encontrando nesse episódio.

Gostava de alardear que participara, junto com o que dizia, Grande e Corajoso Chimango, o Caudilho e General Flores de Cunha (um dos maiores, senão o maior gaúcho, na sua definição e que foi prefeito de Uruguaiana) contra às forças revolucionárias dos Maragatos liderados pelo famoso e corajoso General Honório Lemos, da não menos celebrada Batalha da Ponte do Ibirapuitã, lá pelos idos de junho de 1923. Somente não participou foi da Segunda Guerra Mundial porquanto teria sido recusado por ser, então, considerado velho para tanto. De qualquer forma jamais se recusou a lutar pelo que acreditava, nem teve medo de enfrentar de peito aberto o que lhe era oposto (sempre se ressalvando que era isso que alardeava aos quatros ventos).

O destemido, João Sem Medo se dizia forjado no aço, na beira ou dentro das labaredas incandescentes das batalhas tantas que vivenciara; relatava, com indisfarçável orgulho que, certa feita, gravemente ferido, com sua tropa quase derrotada, levantou-se do chão onde fora derrubado e bradando palavras desconexas, aos gritos, baioneta acoplada ao mosquetão sem munição, investiu contra uma plêiade de inimigos, desbaratando-os, abrindo enorme clareira nas hostes sendo seguido pelos demais companheiros que, quase derrotados, fizeram coro àquele ímpeto de coragem de João, refazendo, neles, o efeito encorajador, o estímulo que reverteria o embate, surpreenderia o inimigo antes certo da vitória e agora batendo em retirada; dessa temerária ação ou dali, daquele momento, vitorioso, foi cunhado o apelido que lhe servia de anúncio e fachada. Desde então, ao João acrescentaram o “Sem Medo” com o qual, dizia, morreria deixando como testamento um único desejo que tal fosse inscrito na “Campa” em que o corpo, finalmente, encontraria o repouso jamais encontrado naquela vida de lutas e batalhas, muitas vezes sem sequer saber o porquê daquilo, das ordens recebidas e, sempre, cumpridas sem pestanejar ou se perguntar sobre as mesmas... ordens de superiores devem ser cumpridas, dizia no seu íntimo, afã e constrição militarista.

Assim contava o João Sem Medo, ratificado pelos parceiros de balcão que, sob os efeitos da “Branquinha” dele sempre queriam ouvir mais e mais das tantas histórias que, jurava João, eram a mais pura das verdade não sabendo explicar como, em inúmeras vezes saíra ileso, ou pelo menos vivo, daqueles combates tão sangrentos quanto desatinados; quem sabe, dizia, ungido pelo deus das batalhas ou pelo maior de todos que certamente o escolhera à sobrevivência e para ser testemunha e arquivo vivo daqueles tempos heroicos de que participara...

E não fora tais tempos, todas as batalhas, perguntava afirmando com convicção e a respeito do estado gaúcho, o que teria sido deste pedaço de terra, dos confins do Brasil, emparedado de um lado pelos irmãos da banda de cima integrantes da república do “café-com-leite” e na banda de baixo, pelos “hermanos” uruguaios, argentinos (mais estes do que os outros) e, até, chilenos que desciam em horda dos Andes e da Patagônia, invadindo a Pampa brasileira até aos contrafortes de Santa Maria, pilhando o que e quem encontravam pela frente.

Contava ainda, com inusitado e persuasivo semblante que, de tudo o que passara, era de pasmar o fato de ter lutado duas vezes, uma contra, enfrentando seus seguidores e outra a favor ou ao lado do caudilho brasileiro-uruguaio (doble- chapa ou de dupla nacionalidade) Gomercindo Saraiva, homem de imensa coragem e destemor, que participou de inúmeras batalhas tanto no Brasil, quanto no Uruguai, tornando-se legendário, interagindo através delas, politicamente nos dois países. Dizem que, se a coisa ficava um tanto quanto pior para si em um dos países, ele se bandeava para o outro sem qualquer preconceito, lá se envolvendo em novas refregas até que... e assim sucessivamente, no dito de João, o que a história respectiva, confirma.

Agora velho, usado, quase acabado, ali, começando o dia pelo “Boteco do Emílio” (esquina da Sete de Setembro com a 14 de Julho) e visando fechar o périplo no “Boteco do Agripino Pé Curto”, ao cair da tarde, lá estava ele escorado ao balcão e cercado por ouvintes curiosos, com um “liso” (*) de cachaça à frente para ser entornado para dentro da goela, de uma só vez como lhe era de costume fazê-lo, foi flagrado pelo poeta que de imediato o consagrou no poema:

“CHARLA DE BALCÃO”

Escorado ao balcão
bate charla João
jogando trela pra fora
Carneando problemas
falquejando dilemas
no copo da hora.
Vai gastando bombachas,
botas, cuscos, guaiacas,
gineteando ilusões
pela pampa da vida.
Na visão destemida
é o senhor das ações!
E o dia assim passa
sem saber como, passa
“à lo largo” de João,
quase nada é sentido
pois o que faz sentido
é o copo na mão!” (**)

(*) Copo de + ou – 250ml -(**) Poema publicado no livro “DEIXEM-ME O AMANHÔ de Itagiba José.

Ao fim da tarde, como sempre no ritual de todas as horas, chegavam seus fiéis e mais inseparáveis parceiros de “trago”, Jorge, o “Aviador do Lixo” (cuja história ou passagem é objeto de outro continho) e Xiru Grilo, o “Bob Nelson da Sete” (***) que funcionavam individualmente como poderosos alter-egos de João, o incentivando a contar e recontar proezas, forçando sua memória, pinçando pontos antes realçados e agora esquecidos no relato da hora (diga-se que, sempre e a cada novo relato, eram acrescentados mais detalhes, devaneios e, quase certo, mais bravatas – que a cachaça ajudava a florescer). Após alguns “lisos”, irmanados, os três seguiam seu périplo até o “Boteco do Agripino Pé Curto” e dali em diante, dizem, ingressavam na noite, ainda pelo Boteco do Agripino agora travestido de casa de tolerância e arremedo de “bailanta” onde choravam gaita e violão, sob ritmos ditados pelo pandeiro, no alvoroço dos “chamamés”, polcas”, “arrasta-pés” e outros ditos galponeiros em meio às damas da noite (que, como e desde sempre, era uma criança, adorável criança!).

(***) Bob Nelson foi um cantor muito conhecido no interior gaúcho, que usava como estribilhos sons produzidos oralmente carregados de falsetes formando um quase assovio (do tipo, oleriutiii, oleriutiii). Xiru Grilo berrava em ruas e madrugadas da Sete de Setembro, onde morava, seu famoso grito a pleno pulmões “bibibibiorrurru, bibibibiorrurru”.

João Sem Medo foi mais uma dessas personagens que o moleque guardou na memória e que vez que outra voltam a circular e viver em sua lembrança com uma certa nostalgia mas, certamente, com a alegria de tê-los conhecidos e, no caso de João, participado, ainda que no ocaso da vida dele, ouvindo aquelas histórias que ele contava e interpretava com inusitado entusiasmo e vivacidade, a ponto de trazer ao moleque a esperança de, quem sabe, um dia e que fosse pelo menos por um dia, estar ou sentir-se vestido daquela coragem, pelo menos, para enfrentar combates que esse campo de batalhas chamado vida impõe a todo o ser humano; e nem precisava ganhar todas, bastaria ganhar algumas, empatar outras e, das derrotas poder retirar o sumo do aprendizado... só isso.

Parecia, ao moleque que João Sem Medo conseguira tudo isso e não ofendam a sua memória se o maldizerem apontando a cachaça como o sumo e canal por onde escorriam tais histórias; melhor pensar que a cachaça foi, tão somente, uma das chave que destravava lembranças do quanto João teria vivenciado, colaborando, ainda, com o romanceio tão necessário ao épico que todos gostariam de ter ou fazer de suas próprias jornadas. Que o grande João Sem Medo, viva eternizado não somente em suas bravatas, muito mais naquilo que todos reconheciam como suas marcas e sinais: a sadia coragem e a retidão de caráter! (Itagiba José)

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