sexta-feira, 5 de junho de 2020

OUTRA DO MOLEQUE-Nascente, Sanga, Açude, D. Negra e Vizinhos


Bem maior do que um “olho d’água” como a chamavam, era uma nascente borbulhosa, possivelmente advinda de lençol ou lençóis freáticos (*), de muita água a ponto de, por caminhos subterrâneos, explodir em fonte de insecável poço que abastecia de límpida água potável, não apenas a família do Moleque como também a todos os vizinhos nos tempos de seca; dali, cerca de dez metros utilizando os mesmos caminhos subterrâneos, reaparecia ao início em forma de sanga (**) pelo menos para o Moleque, de mais ou menos três metros entre uma margem e outra até, quintuplicar-se, alargando-se e, ao mesmo tempo, como se fosse água represada, à formação de uma espécie de açude, cuja margem direita ornada de inúmeras plantas em especial, um taquaral, fazia fronteira ao pátio da casa da avó dele que se servia do açude como se sua piscina e pesqueiro particular fosse, para refrescar-se no verão e, em todas as estações, pescar os famosos muçuns para Tivico devolvê-los gostosos, fritos em banha de porco e crocantes, que saboreava com prazer e requinte (até aquele malfadado dia em que, por demorar conversando com Tivico enquanto ele limpava e fritava a iguaria observou que, quanto mais quente ficava a frigideira mais o muçum, agora partido em rodelas, se mexia como se vivo estivesse e, como tal impactante e horripilante impressão, colocou fim à atividade de pesca e comilança do Moleque a respeito (cujo “causo” foi abordado em outro conto).

Com quinze ou vinte metros de extensão o açude, logo adiante, retomava o formato de sanga e seguia, em seu rumo e sentido longitudinal até para bem além do alcance dos olhos do Moleque, de novo sumindo de vista (a nascente localizava-se mais ou menos a trinta metros da Rua Sete de Setembro, com a água seguindo em direção oblíqua à Rua Aquidaban - hoje Flores da Cunha – atravessando-a e desaparecendo logo adiante). Ambas as margens eram povoadas por casebres, a maioria assentados em lotes cujos terrenos eram alugados (no dito “aluguel de piso” existente em Uruguaiana, então).

Na margem direita da sanga que dava sequência ao açude, portanto aos fundos da casa da avó do Moleque localizavam-se os casebres de “Véio Popeye” e família, pais de Guiomar, Camilo e Carlos (o Popeye Filho), do casal Severo e Negra, pais de Jurandir, da família do “Seu” Danúbio (o homem que morreu de “bife”, no conto “Dona Boneca”) tendo ainda, ao lado, o de Dona Vita e família (Waldemar, o marido e as filhas Maria e Pata) e, aos fundos, já na Aquidaban, “Seu” Xingolo sua mulher (analfabeta que, diziam, como medium espírita em transe, prescrevia e escrevia receitas de chás e remédios campeiros, curando os pacientes) e a filha Dolores, também D. Julieta e filhas Almerinda e Santa (mãe de Leda – objeto de conto) em casebre com frente à Rua Quatorze de Julho e, um pouco além D. Isaura, o marido “Véio Fifi” (objeto de outro conto) e o filho Beia, quase à esquina da Aquidaban.

Na margem esquerda do açude/sanga/ nascente moravam D. Clementina (que teve e morreu da doença dos românticos, a tuberculose, incurável à época) e suas três filhas menores; seguindo o rumo da sanga, o “curioso” Jorge, Aviador do Lixo, com sua casa encravada no buraco escavado no terreno, com entrada de ar protegida da chuva (tipo “chapéu” de fogão à lenha, inclusive com “galos” de metais acoplados e móveis para indicar a direção do vento e uma curiosa antena do “rádio galena” (***) a quinze centímetros do chão (tinha que tomar cuidado para não tropeçar nela): os vizinhos eram os integrantes da família Fonseca formada, dentre outros, das Ds. Elvira e Dorila, do gaiteiro Loretto, dos também residente, as gurias, Araci e Mana, e os guris Pedro Sabugo e Eracildo, amigos do Moleque, todos vizinhos da família Espíndola que morava na esquina com a rua 27 de Outubro (atual Beheregaray).

Dessa esquina, rumando à Rua Sete de Setembro, tinha a família Guimarães das “mães de leite” do Moleque, Malvina e Isolete casada com Alcino, pais de Sonia, Pedrinho e Jardel (“irmão de leite” e um mês mais velho que o Moleque) mais o irmão daquelas, Homero Guimarães e a mãe deles, sogra de Alcino, D. Isolina. Ao lado da casa destes, a família do sargento Verdum, caçador de lebres e outros animais; seguido da residência das famílias do “Nego” Pinto, ao lado da de João Carlos “Maneta”, chegando à esquina da Sete de Setembro nos casebres da família Grillo.

Para completar, pela Sete de Setembro até a casa dos pais do Moleque, vizinhos dos “grilos” era o casal Djalma e Lourdes, por sua vez vizinhos de Domício e Mosa pais de Wilson e Núbia; ao lado, “Seu” Herculano comunista, divulgador na região (realizando sessões de leitura para os analfabetos) do jornal “A Voz Operária”, casado com D. Emiliana, pais da Joana (que casou com Napoleão), Neusa (que casou com Bola), Beto, Tito, e João Carlos “Imbido”, da mesma idade e amigo do Moleque; moravam ao lado deles D. Amélia, viúva, mãe da Dulce (que casaria com Adão Camurra) e Virgílio (menor do que o Moleque); ao lado, “Seu” Amâncio casado com D. Nair, pais de Nika e Edson, que tinham como vizinho e compadre, “Seu” Ari que morava sozinho e, finalmente.Entre os casebres de Ari e da família do Moleque, “porteira” de dez metros de largura para acesso dos moradores de fundos (em linguagem jurídica, comum ou leiga, “beco de servidão” ou “direito de passagem” - NA).

Passando, no outro lado, morava o casal Tivico e Alzira e, aos fundos, “Mãe” Mocita” (personagem do conto de igual nome) e Bila, que casaria com Dula. Após o casal Tolentino, o Tarugo, e Dona China, “muié macho sim sinhô” como dizia a letra de uma música da época falando sobre as paraibanas. O Tarugo era açougueiro e um tanto quanto viciado em jogos de azar e volta e meia se metia em confusão e, fugindo da briga, entrava esbaforido dentro de casa de onde saía D.China, com um facão na mão e, riscando o dito do chão, desafiava o agressor de seu marido (às más línguas diziam que era só dela a primazia de dar algum corretivo no Tarugo – na época não existia a lei Maria da Penha, senão Tarugo tentaria vê-la aplicada em seu favor, ora!); o casal tinha uma filha chamada Maria, muito recatada e discreta.

O vizinho do lado era o casal Emílio e Mariquinha, pais de vários filhos: Cema, Anadir, João, Zeca, Cleusa, Mariza, Quico (Saul Adair Inzabralde), Zote (Luiz Alberto Inzabralde) estes últimos amigos do Moleque. Emílio dividiu a casa e terreno em compartimentos de modo que de um lado residia a família e n'outro construiu uma Cancha de Bochas, fundou o Clube Sete de Setembro, fachada da conhecida “Carpeta do Emílio”, onde o Moleque passou grande parte de sua infância e teve aprendizado diverso por aqueles autênticos professores, ao reverso, jamais adquirindo os vícios da jogatina ou bebida, até pelos ensinamentos e exemplos de vida que eles davam ao Moleque sempre dizendo-lhe que aquilo não era certo, que devia seguir os conselhos do pai, um trabalhador honesto que zelava por sua família e não devia ter um filho que o envergonhasse nunca e outros conselhos de natureza positiva que, vindos de quem não tivesse a experiência insalubre que eles tinham, sabe-se lá se surtiriam no Moleque o mesmo efeito e importância como, acredita, tenha ocorrido.

Nesse universo que compôs parte da vida do Moleque, além das histórias do açude e outros tem uma que realmente o marcou muito pois levou o maior “Culepe” (termo, aparentemente, francês que significa grande susto) quando ao procurar o Jurandir, filho de D. Negra, apelidado e conhecido por Jura e mais particularmente pela turma da molecagem como “Gato” pela incrível ligeireza e capacidade de escape, foi atendido pela mãe dele que suave e calmamente disse que iria chamá-lo e em meio ao simples girar dos calcanhares retorceu-se toda, babando desenfreadamente e caindo ao chão onde continuou desenvolvendo procedimento dito normal aos infelizes pacientes que “sofrem” da doença chamada epilepsia (**) totalmente desconhecida pelo Moleque e, mais atreve-se a dizer que exceto pelo pai, pela avó e quem sabe um ou dois vizinhos, ninguém conhecia ou sabia existir. Uma doença, que pensavam ou temiam por absoluta ignorância, contagiosa pela baba cheia de borbulhas que saía da boca do infeliz portador, epiléptico.

Profundamente atingido e em meio ao distúrbio que também o contaminara pelo que presenciara, o Moleque saiu correndo dali e como agulha de bússola buscou seu norte, ou seja, ninguém menos que sua avó pois a sabia capaz de acudir D. Negra, o mundo, o que viesse, como de fato foi o que aconteceu. D. Nãna, correu o mais rápido do que pode, encontrando D. Negra, caída e com grossa e caudalosa baba lhe fugindo, ainda, pela boca, todavia, agora não mais agitada, um tanto quanto mais serena. O Moleque, agora refeito do “culepe”, munido de mais coragem porque ali estava com sua avó, a seu mando foi ao campo procurar o que lhe foi pedido por ela, diversos “jujos” (termo espanhol, de linguajar gauchesco, da fronteira, que significa ervas para chá e tem uma bela letra e música da Califórnia da Canção, do poeta e compositor uruguaianense Knelmo Amado Alves - o grande sapateiro Cotoxo, do “Recuerdos da 28”, que começando pelo título, “Jujo Idéia” debulhou-se do neologismo às metáforas) e quantos e quaisquer que encontrasse, afinal, acreditava, nem mesmo sua avó sabia qual ou quais e quantos “jujos” seriam necessários a dar solução ao problema ali enfrentado. Missão dada, missão cumprida pelo Moleque que colheu e levou inúmeros “jujos”, desde salsa parrilha e pata de vaca, mentruz e losna, folhas de paraíso (em Porto Alegre conhecido como cinamomo), passando por folhas de outras árvores como laranjeira, figueira, pitangueira, amoreira e alecrim (o da beira d’água) e muito mais, entregando aqueles “jujos” para sua avó que, paralelo a limpeza que realizou em D. Negra e a manutenção de sua cabeça e pescoço, eretos, friccionava com álcool às articulações e braços dela que já recobrara os sentidos, ainda que um tanto quanto “grogue”. (*****)

Dona Negra não sabia explicar, nem ninguém até ali saberia, o que ocorria consigo; não era a primeira vez que desmaiara sem mais aquela e ao acordar verificar-se toda molhada de baba, muita baba disse um tanto quanto envergonhada. Dona Nãna a aconselhou procurar socorro médico pois “boa coisa aquilo não era, embora a história contasse que grandes personagens dela haviam sofrido desse mal, como Júlio Cesar o Imperador do Grande Império Romano e, mais próximo de nós, o grande e talentoso escritor Machado de Assis; ao que sabia ninguém tinha morrido, mas o desmaios em aviso poderia fazer com que ela sofresse um contusão mais séria, batesse a cabeça, quebrasse uma perna e coisas desse gênero; certamente aquilo não era boa coisa e ela devia ir ao médico para se tratar”.

A assim chamada medicina campeira praticada pela avó do Moleque pode ser que, em toda sua extensão e prática, não tenha a eficácia e elevada contagem de resultados exuberantes quanto a sua aplicabilidade, todavia e é certo, complementa, auxilia e às vezes é a única fonte e caminho de muitos para minorar o sofrimento e dores dos desassistidos pela sorte que grassam e perambulam por vielas, campos e favelas plenas de ignorâncias, miséria e falta de condições sanitárias de tal e elevada ordem que nem mesmo o SUS, nosso tão maltratado e injustiçado sistema de saúde, quiçá único no mundo totalmente gratuito, por mais que se esforce e vá, como vai, muito além do que lhe seria pertinente exigir pelas ingratas, parcas e insuficientes condições que lhe são fornecidas para cumprir seu mister, não consegue contemplar a plenitude das necessidades e atendimento da saúde do e para o povo.

Naqueles tempos, na área campesina por onde transita o presente conto, a medicina campeira era e continua tendo elevada importância como bem o cantou nosso grande poeta, Jaime Caetano Braum no poema “Medicina Campeira”, excelente como tantos outros desse mestre que deveria ser cultuado e admirado pelos gaúchos como um dos maiores nomes da literatura universal.

GLOSSÁRIO

(*) FREÁTICO adj. (fr. Phréatique) Que diz respeito a lençol de água subterrâneo em nível pouco profundo. (Dicionário Enciclopédico Ilustrado Veja Larousse, vol. 10, Ed. Abril, São paulo, 2006).
(**) SANGA s.f (bras.) Escavação funda produzida num terreno pela chuva ou por correntes subterrâneas; (bras. Do sul) pequeno arroio. (Do cast. Zanja.) (Dicionário Brasileiro Zero Hora, Porto Alegre, 1984).
(***) GALENA s.f. (miner.) Sulfeto de chumbo, que às vezes contém prata, também chamado galenita; (bras.) aparelho rudimentar de rádio em que emprega o cristal de galena como detector ((Do lat. Galena.) (Dicionário Brasileiro Zero Hora, Porto Alegre, 1984).
(****) EPILEPSIA s.f.(gr. Epilepsia)MED Afecção caracterizada pelo aparecimento de crises que incluem manifestações clínicas paroxísticas, ger. convulsivas que se podem acompanhar de perda de consciência; ...(Dicionário Enciclopédico Ilustrado Veja Larousse, vol. 9, Ed. Abril, São paulo, 2006).
(*****) GROGUE (ó), s.m.... adj. 2 gen. Que está titubeante como quem tomou muito grogue. (Do ingl. grog.) (Dicionário Brasileiro Zero Hora, Porto Alegre, 1984).

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