sábado, 4 de janeiro de 2020

"MÃE MOCITA"



“Mãe Mocita” era uma negra velha, que morreu, segundo consta, com 114 anos de idade. O moleque a reverenciava, respeitava e a amava por sua bondade e placidez; sempre estava ali, à mão como diziam, disposta a ajudá-lo e, até, quantas vezes, aplacar a sisudez da mãe dele e aquela sanha de “corrigi-lo” através de uma, merecida é verdade, surra. Em suma, ela gostava muito do moleque e não disfarçava isso.

“Mãe Mocita” como o moleque a chamava, era esposa, depois viúva de “Seu” Adão que foi assassinado, por facada, tendo o moleque ido ao velório e enterro do mesmo levado por sua avó, Nãna, mãe de sua mãe. Foi a primeira experiência do moleque em evento fúnebre, isto é, velório com o falecido ali, deitado na mesa da sala da residência, imóvel, de mãos cruzadas sobre o peito – não estavam visíveis o ferimento ou sangue, cobertos pela roupa que vestia o cadáver e também pelo pranto de seus parentes e amigos. “Mãe” Mocita, com o semblante espelhando toda a dor do mundo, todavia com um olhar cândido, plácido e resoluto, sabia que a partir de agora se tornava a única coluna, ineiramente voltada à direção e sustento de sua família, com todos sabendo que daria conta disso, tal a sua coragem e força, tantas vezes demonstrada, próprias de seres humano, como ela, pobres somente de bens materiais.

“Mãe Mocita” tinha duas filhas; a primogênita, Alzira que casaria com “Seu” Tivico que gostava de fritar os “muçuns” pescados pelo moleque no açude. A propósito, tem uma história engraçada: “Seu” Tivico untava os “muçuns” com banha de porco, sal e, às vezes, farinha de mandioca, fritando-os após deixá-lo em descanso, como dizia, tornando-os “crocante” e a seguir os cortava em rodelas, disso sempre dando “provas” para o moleque que comia tal cozido achando-o bom, muito bom, até. Pois bem um dia, sabe-se lá quando, o moleque pescou dois ou três “muçuns” e, de imediato os entregou para “Seu” Tivico que, também imediatamente os “limpou” (preparo usual concernente, com faca, água quente, muito quente e outros temperos – cebola, alho, etc) mantendo animada conversa com o moleque que foi ficando por ali; “Seu” Tivico, não esqueceu de colocar os “muçuns” no descanso, se bem que, desta vez, foi por muito pouco tempo, mais ou menos enquanto acendia o fogo no fogão à lenha; quando a temperatura ficou elevada trouxe a frigideira untada de banha e, após alguns poucos minutos, nela introduziu o primeiro dos “muçuns” que apanhara do local do descanso, iniciando processo de fritura. Então, para espanto do moleque, aquele muçum, aberto e cheio de tempero, untado de banha de porco como a frigideira, começou a se mexer freneticamente... depois, mesmo cortado em rodelas estas taambéémm se mexiam agitadas pelo calor do fogo... ao moleque, tudo parecia mágico, parecia que o “muçum” estava vivo, tudo era estranho, muito estranho... desde aquele dia, o moleque nunca mais comeu as “crocantes” rodelas de “muçum” e o “Seu” Tivico perdeu seu principal fornecedor do referido pescado...

A outra filha de “Mãe Mocita”, mais moça, Bila, adiante casaria com Dula, homem de afazeres sazonais: como esquilador, tosava a lã das ovelhas – a época das ditas “tosquias” situava-se, mais ou menos, a partir do segundo mês da primavera – e cada ovelha tosada gerava uma “Lata” ao tosador que correspondia a um valor em Cruzeiros (Cr$) moeda brasileira da época, pago ao mesmo na forma e condições pré contratada; outro dos afazeres realizados por Dula, era o de cortar cana-de-açúcar à facão em Bello Union (cidade do Uruguai que faz fronteira, agora, com o município de Barra do Quaraí, antigo distrito de Uruguaiana da qual se emancipou), quando da colheita da açucarada gramínea, mãe do açúcar e da cachaça, sobremodo cuidando-se da temida e mortal serpente “Cruzeira”, sendo pago em Peso, moeda uruguaia, que logo adiante trocava por Cruzeiro, na Casa de Câmbio, no centro de Uruguaiana; outra atividade, era a de plantar e colher arroz, respectivamente em setembro e em maio do ano seguinte e, dependendo das condições, vontade e comando do patrão, ficar todo esse período envolvido com a plantação como taipeiro, controlando taipa, bomba e volume d'água.

Uma das atividades que Dula mais se orgulhava era a de domador de xucros ou baguais (cavalos bravios ainda não ou, recém domados), alardeando aos quatro ventos, sua grande, invencível, espetacular performance nessas lides campeiras e que (fazendo eco ao maior mentirosos daquelas plagas, Candinho bicharedo), nunca existira ou existiria redomão (cavalo agressivo) que sustentasse ou exercesse sua rebeldia perante ele tal a sua capacidade como ginete (domador´, ótimo cavaleiro).

Dula, era um “bacudo” (aquele que trabalha como peão nas estâncias da Campanha, “grosso”, sem cultura) duro na queda e tomava com desenvoltura uma “canha” (aperitivo, cachaça) que poucos se atreveriam a beber e continuar em pé; ele não só se atrevia como continuava em pé, sem se importar com a quantidade ingerida; às vezes, porém, após inúmeros “talagaços” (esvaziar o copo ou "liso", de uma só vez) no percurso de sua casa, levava alguns tombos o que entendia como percalços de “macho” que "aguenta o tranco, sem choro nem vela". Não era violento, embora não fugisse da briga... em casa era muito bom marido, calmo, amoroso com Bila, sua bela morena dos cabelos cacheados e olhos coloridos como início de madrugadas enluaradas.

Dula, como “Seu” Tivico, gostava de charlar com o moleque talvez porque este sabia ler e escrever e conhecia algumas histórias dos livros lidos, coisa que eles, quem sabe, jamais teriam acesso ou entendiam não lhes ser necessárias. Um dia Dula chegou no moleque, com ares de surpresa e espanto misturados, perguntou-lhe se era verdade que ele teria brigado a socos com o “Nego Mano” um guri bem mais forte e maior do que ele. O moleque contou-lhe a história sem floreios; o fato é que, discutia com o “Nego Mano” quando chegou o Quico e, praticamente, desafiou a ambos resolverem a questão “no braço”; com medo o moleque quis argumentar que não era p'rá aquilo tudo, etc, mas o outro guri, caiu na esparrela de Quico e foi se tornando mais bravo, chegando ao ponto do Quico, vendo a possibilidade de uma boa briga, cuspir no chão e proclamar o célebre desafio: “Quem pisar aqui será o vencedor e se o outro não reagir será um covarde perdedor tendo corrido da briga”; dito isso, Quico cuspiu no chão entre os dois contendores... Como sempre o fizera nas poucas brigas em que se envolveu, o moleque não pisou, demonstrando não apenas não ter aceitado o repto, muito mais que isso, sabendo que para pisar no cuspe era preciso baixar a cabeça e os olhos para visualizá-lo... não deu outra, “Nego Mano” pisou no cuspe e não tinha mais salvação, a briga estava posta, simultaneamente levou uma “bomba” (soco) na junção do nariz com os olhos... foi o único soco que o moleque conseguiu dar, no resto do tempo de duração da briga, só apanhou, a ponto de passar alguns dias cheio de dores nos braços, ombros, torax, em tudo quanto é lugar do corpo, levando uma surra do “Nego Mano”, esta é que era a verdade nua e crua. Só que o único soco que o moleque dera, digamos à traição, acertara em lugar de fácil e visível inchaço e os milhares de outros que tomara não acertaram seu rosto, parecendo a quem não viu a briga, que o moleque fora o vencedor, como foi o caso de Dula que disse mas eu vi a cara do “Nego Mano” toda inchada pensei que tu tinhas ganhado a briga... Aparências, aparências... o certo é que quem deveria ter apanhado era o gaiato do Quico (amigo do moleque e do “Nego Mano” que também eram amigos antes, amizade que continuariam não muito tempo depois da briga, mera “coisa” de guris).

Alzira e Tivico geraram duas filhas; o moleque não sabe dizer se Dula e Bila tiveram filhos. “Mãe Mocita” viveu por muitos anos, sempre no convívio de todos seus familiares, também seus vizinhos, como a mãe e familiares do moleque, e era muito amada e respeitada; faleceu com quase 115 anos, com a mente sadia, memória preservada a ponto de sempre contar e recontar histórias e, quem sabe, "estórias" dele, destacando o amor maternal que lhe dedicava e que, sempre soube, lhe era retribuído com igual ou maior intensidade. “Mãe Mocita” vive na memória afetiva do moleque como a adorável, terna e pura pessoa que ele teve o privilégio de conhecer, sentir e usufruir de sua benevolência e afeto. Que todas essas pessoas, como todas as demais amadas pelo moleque e nele continuam vivas, estejam sob a Graça de Deus, que um dia todos esperam conhecer.

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