sábado, 22 de fevereiro de 2014

PÉS DE BARRO


... E a televisão abriu seu noticiário
com o conteúdo patético de sempre:
os homens continuam matando e morrendo,
o mundo, velha esponja regada a sangue,
não se satura, nem explode de ódio,
continuando, indolentemente, o mesmo mundo.
Até o ousado jornal da pequena cidade
conserva essa mesma postura trágica,
tão antiga quanto o próprio anonimato
das boas ações que o cotidiano abriga.
Tais ações não têm a bela agressividade
que as outras detém, nem lhes sobra
um toque sequer de extraordinário ou pecado
e por não terem mistérios ou ritos pagãos
não fazem performance na publicidade
e em decorrência não dão lucro ou audiência.

Falemos pois, do mal, de crimes, guerras
santas ou profanas (de qualquer forma vis)
sem movermos mais que o necessário
e quem sabe até nem isso, que se lixem,
para salvar a pele dos insensatos, se possível.

O mal é tão grande que necessitamos
criar super-heróis e violência gratuita
para povoar os sonhos de nossos filhos;
somos tão fracos que fazemos do mal um deus
e o bem, ah o bem, é como um paliativo.

E o ciclo da vida e loucura continua
passando por nossa retina, tato, olfato,
sentidos e esse medo que temos uns dos outros
é o ingrediente vital para o noticiário.

E dizer que vivemos de nossas misérias...

IDENTIDADE


Mantenho diante do que vejo e sinto
esta postura antropofágica como defesa;
se não tenho o porte do herói ou guerreiro
é porque me contento em ser covarde
ou, pelo menos, ser normal como os outros.
Procuro manter coerência em meus momentos
para que no gênese de meus pensamentos
possa reter a ordem que o cotidiano retira;
assim, construo dois mundos,
o que pode parecer quase inadmissível:
enquanto do lado de fora da muralha
porto-me como gladiador embrutecido,
lá dentro deixo os pássaros cantarem
e jorrar a cascata da imaginação.
Não tenho a pretensão de mostrar-me,
abrir-me para ser retalhado não é exatamente
o que desejo, não tenho coragem para tanto
e reconheço que se aparência e verdade
puderem ser mantidas sem atropelos,
passarei pela realidade imposta pelo meio
sem prejudicá-la ou combatê-la,
afinal a inércia e a aceitação passiva
fazem parte do arsenal da humanidade
e, só e fraco, não tenho forças para vergá-las...
Todos transferiram a agressividade para todos
e guardaram dentro de si o melhor que têm.
Não sou exceção, pudera!

NA ARENA


... E aí a calça caiu
na gargalhada geral
dos espectadores...
Quem lhe mandou entrar
na arena do circo,
sem roupas, sem artifícios
e sem nariz de palhaço?
Afinal, é o riso a praga
que assola o ridículo
e o bem que me refaz
em teus braços...

Enquanto lhe caía as calças,
sua vergonha tirava férias...

ENGRENAGEM


Andou pela periferia,
no fundo querendo penetrar no núcleo.
Dardejava, encanecia, pudera
não é todo dia que se pode ser raposa,
e desejar uvas maduras ou verdes
mas, uvas, ora!

De tanto se expor foi sugado,
caiu no teatro de marionetes
aceitando cordões que lhe impuseram
e a manipulação de suas idéias e ideais.

Foi espicaçado, moído, desmoralizado,
doutrinado mas se sentia seguro,
dentro do núcleo e isso lhe bastava.
Caiu quando acreditou ter subido...

Triturado, jamais se recompôs,
nem valeria a pena, apodrecera como as uvas
desejadas pela pretensa raposa que fora,
engolido por sua própria ambição...

e dizer que um dia ele havia sido
um contestador ávido de justiça
cheio de sonhos, ilustre ser humano
corrompido por ilusões e esperanças...

FACHO DE LUZ


Essa luz, tirem essa luz de cima de mim,
ela me cega, essa luz, tirem, tirem de mim...

E novamente o torpor, a cadência do nada
invadia aquela vida que na madrugada
diante da luz, dessa luz que a atormentava,
se precipitara na loucura da escuridão.

Essa luz, dizia baixinho, essa luz...

Murmurava o que ninguém suspeitava
ou ouvira jamais. Dormia e chorava,
morria e nascia para morrer outra vez...

O médico sonolento da pequena cidade
tentava fazê-la voltar à consciência.
Para que despertá-la - se perguntava -
e retirar de seus olhos essa luz que a cega,
que minutos atrás a mergulhou no abismo?

Como dizer para a pobre mulher
que marido e filhos, a sua família,
há pouco sorrindo, a pouco tão viva,
fora além do abismo, para a eternidade? ...

Essa luz, a duzentos por hora, em cima de mim,
essa luz, devagar, a curva, cuidado... meu Deus,
essa luz, tirem essa luz de cima de mim...