quarta-feira, 24 de novembro de 2021

DOWN

Arre! Eu sou um todo poderoso de "araque" / Herói de "gibis", de almanaque, / Que me perco em minhas próprias entranhas / Sem me dar conta que recontadas façanhas / São mentiras que a ilusão e a vaidade / Inventaram e penso ser verdade. / Arre! sou um nada à esquerda do nada, / Inflado de frivolidade e conversa fiada, / Batizadas no vácuo da inexistência, / Vazia forma de vestir a consciência / No traje roto, no traje desbotado, / Do inseto amorfo ao inseto despojado! / Arre! Enfim desenho como última desculpa / Vendo-me como humano, vítima dessa culpa / De me perder na maluquice de estar vivo / Enquanto aos poucos morro, enquanto sigo / Pelo labirinto da Creta que em mim habita / Sabendo, logo ali a escuridão da cripta.

segunda-feira, 15 de novembro de 2021

OUTRA DO MOLEQUE - REPORTER ISSO/A TESTEMUNHA OCULAR DISSO


O amigo do Moleque, o Guirland, não fora ao Colégio sabe-se lá porque. Ao sinal do início do recreio e a debandada de todos ao pátio de escola, exceto o Moleque que, como era do costume seu e de seu amigo, ficou na sala para realizar, desta vez sozinho, a troca do material escolar de cada colega, de uma para outra “carteira” ou “classe” de forma a provocar a hilária confusão pós recreio, que atrasava o reinício dessa aula com aquela balbúrdia do “onde está meu material, este não é meu, é do fulano ou da fulana”; por sua vez os fulanos e as fulanas também procuravam seu material e dissimulando, também o Moleque que quase sempre trocava seu material escolar, adivinhe com quem, claro, com o amigo Guirland. Essa espécie de jogo ou brincadeira podia não ser muito aconselhável, todavia, tinha o componente pueril da pura molecagem que a sustentava e derrubava possíveis interpretações puristas de terceiros que, parece, nunca tinham sido moleques, e viam nisso maldades que só eles portavam no coração e na alma. Por tê-las praticado o Moleque inúmeras vezes teve que comparecer perante D. Marília, a Secretária do Colégio, responsável pela disciplina e quase sempre advertido verbalmente e, mais raramente, por escrito para que não mais às repetisse. Ocorre que, nas vezes em que foi vigiado, aconteceram as “trocas” de materiais, com isso sendo “limpada” a ficha do Moleque e criando dúvidas sobre se realmente ele alguma vez protagonizara o ato; o aforisma “In dúbio, pro mísero” aplicado não com uma certa desconfiança todavia com visível prazer por D. Marília em favor do Moleque o salvou da aplicação de penas mais severas.

Abra-se parêntesis para dar o indicativo inicial ao sub-título supra. Na esquina do Colégio, pela Rua Flores da Cunha, se localizava um Posto de Combustível, “Posto Esso” marca petrolífera muito conhecida então e que patrocinava o mais famoso e acreditado programa radiofônico, de notícias, o “Reporter Esso” que era anunciado por uma cortina musical reconhecida até pelas criança menores de dois anos, seguida pela voz grave do famosíssimo locutor (“locutouro” pela gozação da gurizada ou speaker que os uruguaianenses entediam dar a sofistificação desejável), com o som irradiado a milhares de decibéis nos alto-falantes dos Postos Esso, inclusive naquele da esquina da Rua Flores da Cunha, próximo ao Colégio, em horários regularmente estipulados.

Feche-se o parêntesis e voltemos ao solitário Moleque preparando-se à azáfama pré-concebida da “troca de materiais”, antecipando-se ao gozo malicioso do transcurso do evento decorrente da brincadeira e algaravia resultante. Nesse momento, porém irrompe dentro da sala o inconfundível som da cortina musical do programa trazendo o inusitado de uma notícia extraordinária: “No ar, o Reporter Esso, a Testemunha Ocular da História, em Edição Extraordinária...” e daí veio em jorros harmoniosos, na brilhante voz do não menos brilhante locutor Heron Domingues, notícias de ocorrências políticas na Capital Federal, Rio de Janeiro, mais diretamente do Palácio do Catete, a sede do governo, consideradas extraordinárias, que de tão importantes sequer naquele momento, muito menos agora, o Moleque não conseguiu gravar, porém ficou martelando na cabeça dele o “ratatatatata, ratatata ...” da cortina e o vozeirão do locutor anunciando o “No ar …” e o nome do noticiário complementado pela orgulhosa chamada “Testemunha Ocular da História”; disso, veio-lhe a ideia de, quem sabe, reproduzir textualmente e por escrito tudo isso, mudando um pouco o Esso por Isso, a cortina musical pelo “ratatatatata” e a “Testemunha Ocular da História” por “Testemunha Ocular Disso”... E, vendo possível tanto, lá se foi o Moleque ao quadro negro, munido de Giz e apagador, iniciando e complementando, não sem antes preencher o meio disso tudo, o texto que segue e que, por ter sido considerado jocoso, amistoso, quase uma charge explícita, verbalizada e não desenhada, o salvou de pagar com suspensões e quem sabe até expulsão do colégio, porque, mesmo sem assinar, o texto lhe foi dado como de sua lavra, reconhecido pelo professor "Catilinárias", que não teve a menor dúvida de quem era o autor, também por D. Marília, D. Dirce - autora da inconfidência do apelido detestado pelo Diretor -, por Mister Olivier, enfim, por quase todo o corpo docente do Colégio. O texto original foi apagado do quadro negro ainda ao final daquele dia e o infra reproduzido chega vivo, no conteúdo pelo menos, na memória do Moleque:

No ar, em Edição Extraordinária, O Reporter Isso, a Testemunha Ocular Disso! ATENÇÃO, foi determinado pelas Autoridades Municipais, Estaduais e Federais que, até nova ordem: D. Marília não mais poderá exercer ação disciplinadora contra quem quer que seja, mesmo que sejam estudantes que esteja acostumada a punir; a partir de agora, todos terão ficha limpa e nada lhes poderá manchá-la nos próximos três anos. De seu lado, a Professora de Matemática retirará a queixa referente ao incidente que diz ter sofrido quando ao abrir por completo a semi-aberta porta da sala de aula, caiu-lhe sobre sua cabeça, emborcando-a, a cesta plástica do lixo, sem lixo e por essa razão sem que houvesse sofrido qualquer dano, exceto pequenos susto, crise nervosa, constrangimento e exagerada indignação advinda disso tudo, determinando-se, ainda, que às investigações sobre o evento, cessem imediatamente desde que, está decretado, não se pode afirmar com certeza se a cesta de lixo foi colocada de propósito ou se algum pé de vento maroto a depositou sobre a porta entreaberta. Da mesma forma, o Professor Fidélis, deverá deixar a pretensão de penalidades minimizando pretensos efeitos causados pelo “cavaco” de madeira, de origem desconhecida, que caiu por sobre sua caneta quando fazia a “Chamada” e que diz causador de grande borrão no livro próprio, dando por encerrado o incidente, sabendo-se também que nem a caneta foi prejudicada e que, isto sim, pode ter sido ela a única culpada pelo vazamento da tinta. Fica proibida a entrada no Colégio por indisponibilidade de coleiras e canil, dos cães policiais da professora D. Domingas, aceitando-se com ressalvas sua forma dura e enérgica de ser, quem sabe por ser baixinha. Determina-se ao Professor de Moral e Cívica que deixe de ranger os dentes ao ouvir sussurrado o apelido de Morcegão entendendo-o como afago que, no mínimo, diz de sua qualidade auditiva, impar. A próxima edição deste Reporter tratará e trará notícias e determinações, dentre outros, ao ao Diretor Pinho (opa, ele detesta o apelido, segundo a esposa, D. Dirce), ao Monsieur Puig, à D. Norma das muitas Histórias, ao Mestre “Catilinárias” Ledur e especial autorização à grande Professora de Música, D. Ieda, que poderá obrigar, com o aval de toda classe estudantil do baixo ventre, a todos participarem e apreenderem a cantar, desafinado ou não, os grandes clássicos da Música Erudita, também as músicas de Serestas e outras modernosas de nosso dia-a-dia como “Marcianita” (*) cantada por Sérgio Murilo ou, “Corina, Corina” (**) por Demetrius, tudo no seio do Canto Orfeônico Villa Lobos, que poderá ser acompanhado pela Banda Mista do nosso Dom Hermeto. Outras Ordens Ordinárias/Extraordinárias Serão Objeto de Novas Edições do Reporter Isso, A Testemunha Ocular (também Auditiva) Disso. Amém.”.

Registre-se, que o texto original deve ter sido menor do que o supra apresentado, quiçá, aumentado; porém, aplique-se a bela desculpa trazida pelo velho ditado, “Quem conta um conto aumenta um ponto” e o fato desse fato ter sido narrado tantas vezes a tantas pessoas que, quase certo, vários são os pontos que lhe foram acrescentados sem todavia lhe alterar o propósito, cerne e conteúdo de uma chacota plantada e urdida à luz de uma inocência e molecagem irresponsável e até ali sempre presente!

Excertos das letras de * Marcianita: Esperada Marcianita/asseguram os homens de ciência que em dez anos mais tu e eu/ estaremos bem juntinhos/ e nos cantos escuros do céu falaremos de amor/Tenho tanto, te esperado/e serei o primeiro varão a chegar até onde estás/pois na terra, sou logrado/em matéria de amor eu sou sempre passado pra traz./Eu quero um broto de Marte que seja sincero/que não se pinte, nem fume, não saiba o que é rock and roll/ Marcianita, branca ou negra...

** e de Corina, Corina: Oh, oh Corina, como vai você/ Pra mim/eu quero Corina/ como vai você!/Quero te encontrar/ Seja onde for/ Minha Gatinha,/oh! oh! oh! minha Gatinha/ …

OBS: Corina, Corina foi a primeira canção que chamou a namorada de Gatinha, forma carinhosa de chamar até hoje usada (talvez em desuso) e foi incorporada pelo Moleque que usa tal forma carinhosa para chamar as mulheres de seu afeto que admira ou, como sua filha, mais que isso, ama.