sábado, 26 de outubro de 2019

BOLHAS DE SABÃO


Bolhas de sabão sopradas pelo outrora,
frágeis, versáteis, explodindo no agora,
são como palavras embaladas em ventos,
com nexo, causa e efeito no limo da hora.

Volúveis, insolúveis retém encantamento
da unidade do tempo chamada momento.

Ao reverberar palavras d'alma à boca
no significado pleno da vida, tão pouca,
faz-se a intensidade febril de amantes
que, mesmo ausentes, se tornam presentes.

Ainda que se destrua em fúria deslocada,
sobrando nada além da palavra destravada,
ainda assim sobreviverá o sentimento,
como bolhas de sabão ao sabor do vento,
como a unidade do tempo, o momento...

SEM SAÍDA


Quebrei as amarras da vida craseada
às cancelas de mim,às correias do sido,
amarelecido, partido, perdido,
sem paisagem ou ruído, destruído
no borbulhar de uma taça sem graça.
Nos toscos degraus do agora, a espera
que cansou de ser só espera, após
disfarçar-se de sonhos e mágicas,
virou a página para um novo só!
Enquanto isso se passa, contratempo,
o tempo escorrega no limo da pedra,
indo do vazio à escuridão onde medra
mais do meu, um tanto do teu, nada!
... o meio-fio, parece, intransponível
e todo sorriso se torna impossível ...

sábado, 19 de outubro de 2019

IVO RODRIGUES-O MARQUETEIRO DA VIDA FÁCIL


O pai do moleque era barbeiro e ele desde os sete anos engraxava os calçados (botas, sapatos, etc.) dos clientes e amigos que frequentavam a Barbearia; olha que o moleque não era tão ruim exercitando a honrosa profissão de engraxate, saindo-se mais ou menos, ainda que a detestasse (a ponto de, adulto, nunca mais engraxar nem mesmo seus próprios calçados, dizem que por invencível, ou inconcebível, trauma! - assim, com ponto de exclamação, mesmo.).

Além de barbeiro, o pai do moleque adorava música, praticando-a através do cavaquinho, instrumento que tocava com uma certa dose de virtuosismo, claro que nem perto do mestre Miguel “Dedo de Ouro”, apelido que dizia tudo sobre o virtuosismo e performance no violão de todas as cordas, seis, sete, doze ou quantas mais viessem (exceto piano que se tivesse tentado tocar teria sido um prodígio), viola caipira, chilena, argentina, paraguaia, francesa, portuguesa, etc., etc., etc.

À época, durante a semana, mais precisamente de segundas às sextas-feiras a barbearia tinha um “movimento” pequeno, se considerado o “movimento” de sábado quando, desde a manhã por volta do raiar das dez ou onze horas, se formava um entra e sai contínuo de clientes para se “afeitar” (fazer a barba e untar o rosto com loção “pós barba” sendo a preferida na época a “Acqua Velva”), cortar os cabelos e fixar o penteado com “Gomina” (produto argentino, similar a “Brilhantina” que deixava a “melena” lustrosa e grudada no couro cabeludo, n’um efeito marcante de elegância e brilho), enfim realizar todo o tipo de serviços próprios à barbearia de então, inclusive cortar o cabelo.

Os modelos de corte de cabelo eram (como são) vários, desde “passar a máquina zero” em toda a cabeça ou parte dela (quando se deixava apenas uma pequena franja à frente, a famosa “lambida” ou ainda quando se cortava as partes laterais da cabeça, deixando um “topo” de cabelo, uniforme, da testa à nuca, de um centímetro de altura, o famoso corte “escovinha”) até fazer apenas aparas com ou sem profundidade (para deixar o corte dito “cheio” no primeiro caso, ou para deixá-lo à pequena altura de 0,5 ou 1 cm, dito “baixinho”), pelo corte à tesoura, uniformizando fios renitentes aos demais que compunham cuidadoso e elegante penteado portado pelos moçoilos de então, formando a famosa “melena” supra referenciada que por efeitos do penteado e da “Gomina”, era “abotoada” na nuca (quando os cabelos do centro e dos lados, esquerdo e direito “se “encontravam” à base da nuca, “fechando” com esmero e elegantemente o penteado).

Claro que também por tudo isso as atividades do moleque eram exponencialmente aumentadas aos sábados; a azáfama iniciava-se pela manhã, por volta das 09:00 horas, indo com invulgar intensidade até a noite, por volta das 21:00 horas, quando começava a queda do movimento, chegando a zero. Nessa altura, lá, já estava a “Turma da Seresta”, formada por vários amigos do barbeiro, que “marcavam ponto” a partir dessa hora, munidos de seus instrumentos musicais, porquanto ao encerramento das atividades da barbearia, com muitos acordes e “tiradas musicais” – improvisos que davam arranjos diferentes às canções, todos se dirigiam ao bar/boteco/restaurante “Biscates da Pampa” de propriedade do “Seu” Torquato Pinto, o “Cambota” – porque tinha as pernas tortas, “formando um arco por onde passavam dois cachorros brigando sem tocarem em nenhuma delas” como diziam os “gozadores” de então - e que, quase sempre fechava seu “estabelecimento” para, juntamente com Damázio, este munido de sua gaita-ponto, “La Gaitita” como chamava seu instrumento que, ao tocá-lo principalmente inolvidáveis tangos, também e quase sempre a famosa “Suco-Suco”, extraía um som muito parecido com um bandoneon, juntarem-se à “comparsa” de seresteiros.

No estabelecimento do Cambota que era mais propriamente um boteco dos “bravos” do que outra coisa à Turma de Seresteiros, na preparação física à noite de serestas, se alimentavam “beliscando” a única “iguaria” oferecida pelo boteco, isto é, ovos de galinha cozidos, mantidos sabe-se lá desde quando, acondicionados na “salmora” (água muito salgada), em recipiente alojado sobre o balcão e, enquanto “aqueciam” voz, cérebro, mãos, dedos, garganta, estomago, fígado, pulmão e adjacências, cantarolavam e bebiam (sabe-se lá a ordem que seguiam, se era de primeiro cantarolar e depois beber ou vice-versa, ou, ainda, cantarolar e beber, ao mesmo tempo sendo essa, talvez, a mais comumente usada).

Além dos ovos escurecidos ou de um branco encardido, quase cinza, cor que também predominava na gema, de um amarelo quase desmaiado, os sempre alegres parceiros tomavam goles e goles de “aperitivos”, a “marvada” cachaça Praianinha; bebidas mais sofisticadas como o “Gin Fiz” (Gin com água tônica ou soda e, sempre, com rodelas de limão), o “Ron Montilla” puro, sem mistura e outras mais caras e chiques como whisky (que ninguém sabia a marca ou procedência, nunca da Escócia, quase sempre da “Vila Júlia” – bairro afastado do centro de Uruguaiana) e, exceto o vinho normalmente tinto e também sem marca ou sinal, orellano pois não, servido em copos e a cerveja ou Brahma como a chamavam, as demais bebidas citadas eram ingeridas, além de puras, misturadas com soda, ou água tônica, ou refrigerantes ou limão e gelo, muito gelo, muito falatório, muita cantoria e, claro, muita algazarra.

Todos bebiam de forma mais ou menos moderada, nem muito que os deixassem totalmente bêbados, nem pouco que os deixassem inteiramente sóbrios, todavia, sempre em doses que os deixassem alegres e predispostos a atravessar a noite “soltando a voz” e “esmerilhando” os instrumentos pelas ruas, praças e janelas da cidade.

Em meio a tudo isso sobressaía o som da algaravia decorrente. À serenata todos marchariam logo adiante à galope e as ruas se encheriam de som e música sob a noite, criança recém nascida ao luar ou não, pouco importava e inteiramente à mercê do pandeiro de Geada, do som do ritmista Charanga, da Gaita-piano do Anadir ou a do irmão dele, o Dino Pires, dos cavacos do Barbeiro e do Beijo que também tocava e bem o banjo, o violão do virtuose Miguel “Dedo de Ouro”, da voz de barítono do Evaristo “Lambe-Lambe” e tantos outros que esporadicamente faziam parte daquela banda de Seresteiros fanfarrões...

De muitas dessas incríveis serenatas das noites de sábado, madrugada e amanhecer do domingo, também participou o moleque meramente por acompanhá-las junto com seu pai, o Barbeiro do Cavaco” (mais para vigiá-lo, em nome da mãe, que nunca conseguiu arrancar qualquer inconfidência do moleque – aliás, como aprendeu desde então, os homens são unidos, muito unidos e por isso, mesmo sendo as mulheres muito mais inteligentes que eles, todavia muito desunidas, para tristeza e infeliz perda à civilização, não dominam o mundo que, se tal acontecesse, seria infinitamente melhor, transformadas que seriam todas as casas em lares e o mundo, por isso e perenemente, o maior dos lares – e, como asseverado por poetas e filósofos: “Casas é comum se ter, todavia, Lar, certamente, imprescindível a Mulher (ambos, merecidamente como letras maiúsculas) pois é ela, coluna e viga de sustentação, que o forma, alimenta e o mantém em pé, como também o faz com relação a família, a educação dos filhos... O homem só entra com a estampa nisso tudo, emprestando à parceria uma luz que nem é dele porque, na verdade, tudo vem dela. Sem a mulher não há lar e sem lar, fica quase impossível forjar princípios sadios, respeito, caráter, afeto, amor, amizade e tudo o mais que enobrece o ser humano”.

A seresta terminava, quase sempre e raras vezes não foi assim, às portas do Cabaré do Ivo ou “Penha” (apelido do dono) onde os seresteiros ingressavam dando fecho de ouro à serenata... O Moleque, então, era impedido de entrar pelo próprio Ivo que sentenciava entre sorrisos de todos inclusive dele e a seriedade só do Moleque: “...Tu não Gulizinho!... Tu não!” (expressão que era pela primeira vez ouvida pelo Moleque; tal “Tu, não!”, seria ouvido pelo moleque muito tempo depois e inicialmente teve como resultado um bulling de curta duração que foi revertido em favor dos interesses do moleque, mas isso já é uma outra história e objeto específico de outro continho). Esse “Tu, não Gulizinho!” (Com dificuldades de dicção, Ivo sempre trocava o "r" pelo "l"), vindo do personagem Ivo e no local onde aconteceu muitas e muitas vezes, para os guris amigos do moleque, funcionava em seu favor como especial e inédito atestado de “experiência” precoce e objeto de admiração. Assim aconteceu durante muito tempo para o Moleque, ele ficava lá fora à espera do pai e, por que não dizer, dos amigos do pai...

Agora, o que interessa mesmo é a história de Ivo Rodrigues, homossexual famoso e, mais do que isso na opinião de praticamente todos os que o conheceram ou acompanharam sua atuação, um marqueteiro pioneiro e intuitivo que, sem jamais ter estudado, um quase analfabeto que desconhecia até o valor das notas de dinheiro, foi grande estilista nos designes mobiliários criados e, além disso, realizou geniais lances de marketing e à área dos bordéis, cabarés e motéis (que sequer existiam na época, sendo que o máximo ou mais próximo disso, era o rendezvous (palavra francesa que designava lugar de encontro amorosos para casais de amantes), com simplicidade e objetividade desenhou, imantou e conduziu terceiros a participarem ou se sentirem atraídos não apenas ao glamour do que se apelidou de “vida fácil”, com suas boates, pensões de mulheres (nem sempre tão glamourosas, entretanto “vendidas” e vestidas de misteriosa e diáfana aura), cabarés, plenos de esplendor e luzes da ribalta enfim e principalmente de sua própria base, onde atuava, administrava e resplandecia em sua homossexualidade, nem tudo visando o lucro senão um savoir faire (saber fazer, em tradução literal), um bem viver para si e os demais que dele dependiam, com ele conviviam ou terceiros como os despossuídos de sempre, os descamisados, desse sofrido País, aos quais adiante, alimentaria, normalmente aos sábados, distribuindo o famoso e infindável “sopão”.

Ivo Rodrigues era natural de Maçambará, distrito do interior de Itaqui, cidade gaúcha, fronteiriça e onde, também, o Brasil faz divisa com a Argentina, ali representada pela cidade de Alvear, na Província de Corrientes. Desde a infância demonstrava trejeitos efeminados que passavam despercebidos aos seus pais, trabalhadores rurais que eram e que, fruto de imensurável esforço e agruras enfrentadas, conseguiram montar uma granja, comercializando animais “de corte” como galinhas, porcos e produtos hortigranjeiros, como hortaliças, grãos e frutas. O trabalho árduo que o casal desenvolvia retirou condições de um melhor acompanhamento e cuidado com o filho varão cujos trejeitos femininos foram tomando forma continuadamente, confundindo o portador quanto ao gênero e origem e lhe trazendo inclinações e práticas homossexuais com uma naturalidade sem pejo, estarrecedora ao mundo, viés e formação machista da região.

Em uma data qualquer, quando o infeliz menino Ivo tinha 15 anos de idade, aproximadamente, seu pai o flagrou em conúbio carnal com parceiro empregado de seu pai, ele na condição de homossexual passivo e sem maior delonga, expulsou o filho de casa embora a contrariedade da mãe, o que de nada adiantou, nem conseguiria para impedir a execução daquela sentença; o pai deu para Ivo dinheiro suficiente para que pudesse viajar para o mais longe dali e alimentar-se durante algum tempo...

Ao fim e ao cabo, Ivo Rodrigues, agora e assim, fora despejado do mundo que conhecia e teria que, sabe-se lá como, enfrentar um mundo desconhecido contando apenas consigo e sua própria coragem, nada mais do que isso!
Sem destino o guri expulso de casa, agora um apátrida de lar, solitário e confuso se viu sentado em um banco de madeira, duro, da Gare da estação Ferroviária de Itaqui, como um “Pedro Pedreiro” (letra e música de Chico Buarque de Holanda) esperando, esperando um trem “...que não vem...” e ali chorou o pranto da desditosa sina de perder tudo para o preconceito do pai, sem dolo ou culpa sua, nem deste eis que súdito de uma era extremada de machismo exacerbado.

Lá pelas tantas descobriu que o próximo trem a sair tinha como destino Uruguaiana e o valor da passagem era de apenas uns tostões furados (como era bom e barato o transporte ferroviário, depois abandonado por incautos que fizeram muito mal ao País, inebriados pelo canto de sereias, digo, de estradas asfaltadas, da combustão do petróleo, da triste poluição e fuligem de desavisados e espertalhões); Ivo sabia que tinha de economizar tudo quanto fosse possível porquanto não sabia quando, e se, poderia ganhar “algum”, adiante e, também por isso, afora o fato de Uruguaiana ser a cidade polo daquela região, comprou passagem e aguardou a saída do trem que o levaria para lá (coisa jocosa, para não dizer peculiar, por falta de espaço às manobras, o trem se entrava na estação de Itaqui de frente saía de ré, se de ré, saía de frente; tal fato, pós Ivo, era maldosamente relacionado com sua homossexualidade).

Chegando àquela pacata cidade de Uruguaiana de então, fronteira do Brasil com a Argentina teve o privilégio de ser adotado pela “Tia” Vestina, dona de um modesto bordel na “Zona” do Meretrício, incrustada na beira do Rio Uruguai, quase dentro do riacho (acidente geográfico transitório que, nas enchentes, formava uma ilha que logo adiante desapareceria quando as água do rio voltavam ao normal). Detentor de criatividade incomum, digna e possuída por “marqueteiros” do futuro, se consideradas as décadas “40 e 50” quando tudo iniciou, pela mão e concessão da “Tia”, Ivo iniciou sua trajetória ascendente rumo ao estrelato no mettier abraçado ... Logo em seguida devolveu à bondade da Tia apresentando invulgar ascensão de lucro aos “negócios” da mesma, doutrinando as estrelas “protagonistas” dos sonhos buscados pelos desavisados, na condução destes para além do prazer carnal/sexual, reverenciando antes a imaginação adubada etilicamente pelo consumo de bebidas, geometricamente aumentado pelos strip-tease fugazes e repetidos à exaustão como “entrada” antes da consumação do “prato principal”, a atração final adrede preparada.

Inovando em outros quesitos, como em melhorar ou trocar colchões por novos e aconchegantes, roupas de cama limpas e perfumadas, diminuição da claridade irradiada de lâmpadas ou lampiões cujo foco foi direcionado não mais direto, todavia oblíquo e mormacento como os olhares da “Capitu” (imortal personagem de “Dom Casmurro”, criação do também imortal Machado de Assis); deu pausa à música ao vivo interpretada pelo trio violão, gaita e pandeiro, introduzindo som mecânico trazido por “toca-discos” ou "eletrola" que reproduziam discos de vinil, de 33 até 78 rotações por minuto (rpm), gravações de grandes intérprete da época, como Francisco (Chico) Alves (o Rei da Voz), Orlando Silva (o Cantor das Multidões, maior “voz” brasileira de todos os tempos), Vicente Celestino (do inesquecível “O Ébrio”), Nelson Gonçalves (cantando canções de Adelino Moreira, como “A Volta do Boêmio”, com parceria do próprio Nelson, ou “Negue”, com Enzo de Almeida Passos), Carlos Galhardo, Ângela Maria (A Sapoti), Dalva de Oliveira (a maior cantora brasileira até que, adiante, surge Elis Regina e lhe toma o posto e, para sempre, eleita como tal), Marlene, Emilinha Borba, etc., etc...

O bem elaborado e meticuloso plano deu certo e trouxe a casa da “Tia” Vestina e, por que não, às demais “Casas da Zona”, a modernidade e uma crescente movimentação, nunca vista. O inestimável serviço prestado por Ivo lhe trouxe a gratidão maior e o reconhecimento de todas as “Casas” e, para ele, a ousadia de se iniciar como empresário da noite, montando um estabelecimento próprio, vinculado, claro, à “difícil vida fácil”, que não seria como as demais “Casas” exiladas, separadas, segregadas à periferia da cidade de Uruguaiana, todas instaladas na preconceituosamente denominada “Zona do Meretrício”. Ivo, investido de uma coragem e intrepidez própria do jovem que então era, enfrentou o arraigado preconceito existente, alugando vetusto imóvel localizado na então Avenida Aquidaban, agora Av. Flores da Cunha (em homenagem a um dos maiores, senão maior, mais importante e sério homem e político gaúcho do início do século XX), próximo à Praça Argentina, colado ou integrante da área central da cidade, mandando-o pintar de cor-de-rosa e, no frontispício, pintar o epíteto de “Casa Rosada”.

Una-se a localização da cidade, fronteira com Passo de Los Libres, na Argentina, mais o fluxo constante de argentinos e brasileiros para um lado e outro, com o nome do Palácio de Governo daquele Pais, em Buenos Aires, e chegamos ao ápice da “sacada” de Ivo, lembrando ainda que ambos os imóveis igualmente possuíam sacadas. Ivo, em golpe de mestre de marketing, instalou sua “Casa” ou “Boate”, a primeira fora, totalmente fora, da “Zona do Meretrício”, muita mais Evita do que Peron, uma Casa Rosada plena desses encantos e mistérios que só a noite abriga.

Dentro instalou móveis de fino acabamento e designer, luzes seletamente colocadas à produção de grandiosos, maliciosos, oníricos e voluptuosos efeitos visuais nos desenhos e poster colocados às paredes objetivando suntuosos afrodisíacos psicológicos, impensáveis àqueles a quem eram endereçados, principalmente quem não tivera contato com a literatura árabe sobre o assunto, ou, pelo menos com o “Kama Sutra” e outros monumentos à sedução, aos intangíveis segredos de práticas sexuais ornamentadas pela sutileza, curvas e achados, voluptuosos véus em discretos movimentos.

Tudo isso, entanto, era quase nada se comparado ao quarto principal da casa, ocupado pelo dono da mesma, Ivo Rodrigues, Paredes internas revestidas por espelhos, que também revestia o teto por inteiro, de forma que, de onde se olhasse, sempre estaria angulada a situação em movimento e todos os detalhes expostos. A cama, redonda, entrava em movimento circular ao toque sutil de um botão que acionava motor e equipamento que a fazia girar lentamente ou em compasso pouco mais intenso acompanhando ritmo musical, muitas vezes de canção erudita como valsas vienenses, dos Strauss, vinda de aparelho musical, "eletrola" instalado à cabeceira da cama no único local onde não tinha “bibelôs” que Ivo colecionava compulsivamente e que eram dispostos de forma equânime e organizada, a partir da cabeceira da cama por sobre todos os demais armários que circundavam o quarto; diga-se que tanto o objeto musical quanto os “bibelôs” compunham um quadro, tela, ornamento de inexcedível beleza que davam visível qualificação e harmonia ao quarto elevado assim, com seus demais componentes, à categoria de “monumento”.

Esse quarto, pintado de cor-de-rosa, com cama redonda em maioria de vezes coberta por colcha de cetim de cor vermelha tipo sangue arterial, lençóis e travesseiros de azul celeste, era uma das maiores atrações turísticas do conjunto todo a ponto de atrair visitantes dos mais diversos locais e origens para conhecê-lo.

Tapetes cheios de arabescos e desenhos eróticos, parecidos vindos diretos das “Mil e uma Noite”, com toques sutis da imensurável lábia e imaginação de Scharazade, cobriam com “fofura”, a ponto de encobrir pés e sapatos que o pisavam, no chão quase intacto do quarto de Ivo Rodrigues e, por que não, parecendo ter saído direto de alguma das peças teatrais do genial Nelson Rodrigues (que não era parente ou algum dia viria a conhecer Ivo). Sem sombra de dúvidas, tudo isso compunha um inusitado bailado e requinte da luxúria explícita em seu maior grau, esplendor e delicadeza.

Como já citado acima, para os argentinos, porém, diretos como explicita o “jo te quiero” deles, a maior atração estava no nome ou apelido como dizem os argentinos, dado por Ivo, estampado ao alto do imóvel “Casa Rosada” como é conhecido o imóvel sede do governo nacional argentino (como para nós era o Palácio do Catete na antiga capital federal, Rio de Janeiro, e agora o Palácio da Alvorada, em Brasília) e que Ivo esperta e inteligentemente reproduziu em seu estabelecimento, bem assim e sem grande esforço dá para reconhecer a genialidade e sutileza, dentre tantas outras, criadas pelo mestre Ivo Rodrigues, o “Marqueteiro da Vida Fácil”.

Embora tudo isso, do sucesso, argúcia, perspicácia do itaquiense Ivo Rodrigues em terras uruguaianenses, atração turística pelo quarto montado dentro de indizível futurismo, no mais moderno atrativo mercadológico copiado pelos motéis de nossos dias, pesquisa no Cartório Registro de Pessoas Naturais atesta que inexistem, desde dele, recém-nascidos do sexo masculino com o nome de Ivo; neste caso, pelo menos por este ângulo, tal nome é o mais absoluto e inquebrável tabu daquela região machista.

Aliás, Ivo era exímio e valente lutador, especialmente armado com um facão o que impunha respeito aos frequentadores de sua casa, mesmo perante àqueles que, como os fuzileiros navais, integrantes da Marinha e aquartelados na cidade (por ser fronteira) que se juntavam em no mínimo quatro para promoverem brigas e confusões, aos quais, sozinho, enfrentava e expulsava, melhor dizendo "botava para fora", aos trambolhões e sem cerimônia, incorporando atitudes que deveriam ser e eram comuns e próprias dos "machões" da cidade, ainda que, aparentemente, fosse frágil por ser homossexual.

Como logo adiante se repete, Ivo desfilava pelas ruas de Uruguaiana sempre trafegando aboletado dentro de um carro Rainha (carrruagem puxada por dois cavalos nela atrelados), conduzido por um profissional dito “carreiro”, acessando-se seu interior, pelos clientes (ou passageiros), através de “estribos”, alojados em um banco “estofado”, de três lugares protegido por uma extensão projetada de sua própria carroceria traseira formando um teto e em um outro banco situado à frente daquele, na boleia inferior e às costas do condutor; nestes passeios diários, Ivo vestia “chambres” coloridos (quase sempre rosa ou vermelho – sangue arterial), estampados, floridos, todos de cetim. Enquanto no cotidiano, trajava vestidos dos tipos "prèt à porter", "soirée", "coco chanel" e à noite, em meio às atividades de sua casa, envergava vestidos longos e/ou gala de cor escura, em maioria de vezes a cor preta, usando sapatos de saltos altíssimos, Luiz XV, o que lhe tornava mais alto e um tanto quanto mais composto fisicamente desde que, embora de compleição física “retaco-moderado”, era muito vaidoso. Também portava bolsas femininas, de couro, de variados modelos, e quase se banhava em inefáveis perfumes franceses adquiridos na Argentina ou como diziam, no outro lado, em Passo de Los Libres.

Outra, talvez sua característica mais importante, Ivo era de uma generosidade ímpar, bem como muito desapegado às coisas materiais (exceto, claro, à coleção de bibelôs à qual dedicava uma paixão quase mórbida).

Tampouco tinha inveja. Solícito, dividia tudo o que possuía e auxiliava todos que batiam a sua porta. Apoiava, inclusive à concorrência, não tendo sido poucas as mulheres, que antes pertenceram a sua casa de tolerância, no exercício pleno da prostituição (e quantas a exerceram por necessidade e tantos outros motivos que passam ao largo, muito longe, do moralismo falso que lhes imputam epítetos pecaminosos), tornaram-se, como ele, “empresárias da vida fácil”, montando suas próprias “casas”, como o fizeram as "Tias" Amélia, Florzinha, Gessi, Isolda, Marina, Suzana (ordem alfabética) e outras tantas que fogem à memória, que por ele foram iniciadas, apoiadas e que o mantinham como perene fonte de socorro material e imaterial, enfim, o amigo que se podia contar, sempre, como todos os AMIGOS deveriam ser (pessoas que mereçam ser assim chamadas, AMIGAS – e ainda têm muitos que são assim, acreditem!)...

Há que se escrever muito mais sobre as várias facetas desse personagem incrível, não apenas sua generosidade marcante, seu senso de oportunidade manifestado por vários movimentos como o de, diariamente, passear pela Uruguaiana de então a bordo de uma carro Rainha exibindo duas de sua “Damas da Noite” e, quando alguma estreante iniciaria seu périplo por sua Casa Rosada, a apresentava através do mesmo passeio, durante dias, mostrando-a com seu melhor sorriso, pose, picardia, de vestimenta provocante, colocada à sua frente, no banco anterior à boléia onde o “carreiro” Raul, quase sempre ele, realizava o vespertino passeio das 16:00 às 18:00hs de todos os dias da semana, raramente aos sábados e/ou domingos; também quando de seu aniversário, ocupando a Rádio Charrua, durante toda a tarde, com centenas de “dedicatórias” musicais dirigidas a ele por seus afetos, frequentadores de sua Casa, outras tantas agradecidas pessoas que ajudara e muito mais gente que um biógrafo, com recursos financeiros – no caso do moleque, a pesquisa é de memória, amadora, mesmo - haverá de quantificar, explorar o fascinante brilho de uma pessoa que enfrentou e driblou o preconceito sem jamais deixar de ser ela mesma, poderá àquele, ainda ir muito além, falando muito mais, trazendo novas nuanças e qualificações desse ser que passou deixando marcas e saudades aos tantos que o conheceram, amaram e respeitaram.

Ivo Rodrigues que nasceu com a alma cor-de-rosa viveu sua vida inteirinha revestido dessa mesma cor; hoje seus restos mortais repousam n'um jazigo, dos mais visitados, no Cemitério Municipal de Uruguaiana, pintado também com a cor de sua alma, cor-de-rosa!

quarta-feira, 9 de outubro de 2019

ADÃO "CAMURRA" - O JOÃO SEM MEDO


Nascera ali, na Rua Sete de Setembro, quase esquina com a José Garibaldi, p’ros lados das antenas da Rádio Charrua, na doce e amena cidade de Uruguaiana, a Sentinela avançada do Brasil. Desde guri foi demonstrando intrepidez e desassombro, a coragem dos fortes ainda que nem tanto fosse. Rapazote, pegou em armas participando das revoluções de 1923, 1924, 1925 e 1930 com grande destemor e valia, condecorado pela admiração de seus companheiros de armas. Foi contra o sanguinário e cruel Presidente Arthur Bernardes e dizia ter lutado em São Paulo quando aquele mandou explodir a cidade lá pelo meio da década de 20 (1920). Não era tenente, muito menos capitão, mas apoiou o "tenentismo", muito especialmente pela coragem daqueles jovens, que no episódio histórico conhecido como os "18 (dezoito) do Forte" (de Copacabana,Rio de Janeiro) desafiaram a morte enfrentando forças militares muito superiores, quase todos a encontrando nesse episódio.

Gostava de alardear que participara, junto com o que dizia, Grande e Corajoso Chimango, o Caudilho e General Flores de Cunha (um dos maiores, senão o maior gaúcho, na sua definição e que foi prefeito de Uruguaiana) contra às forças revolucionárias dos Maragatos liderados pelo famoso e corajoso General Honório Lemos, da não menos celebrada Batalha da Ponte do Ibirapuitã, lá pelos idos de junho de 1923. Somente não participou foi da Segunda Guerra Mundial porquanto teria sido recusado por ser, então, considerado velho para tanto. De qualquer forma jamais se recusou a lutar pelo que acreditava, nem teve medo de enfrentar de peito aberto o que lhe era oposto (sempre se ressalvando que era isso que alardeava aos quatros ventos).

O destemido, João Sem Medo se dizia forjado no aço, na beira ou dentro das labaredas incandescentes das batalhas tantas que vivenciara; relatava, com indisfarçável orgulho que, certa feita, gravemente ferido, com sua tropa quase derrotada, levantou-se do chão onde fora derrubado e bradando palavras desconexas, aos gritos, baioneta acoplada ao mosquetão sem munição, investiu contra uma plêiade de inimigos, desbaratando-os, abrindo enorme clareira nas hostes sendo seguido pelos demais companheiros que, quase derrotados, fizeram coro àquele ímpeto de coragem de João, refazendo, neles, o efeito encorajador, o estímulo que reverteria o embate, surpreenderia o inimigo antes certo da vitória e agora batendo em retirada; dessa temerária ação ou dali, daquele momento, vitorioso, foi cunhado o apelido que lhe servia de anúncio e fachada. Desde então, ao João acrescentaram o “Sem Medo” com o qual, dizia, morreria deixando como testamento um único desejo que tal fosse inscrito na “Campa” em que o corpo, finalmente, encontraria o repouso jamais encontrado naquela vida de lutas e batalhas, muitas vezes sem sequer saber o porquê daquilo, das ordens recebidas e, sempre, cumpridas sem pestanejar ou se perguntar sobre as mesmas... ordens de superiores devem ser cumpridas, dizia no seu íntimo, afã e constrição militarista.

Assim contava o João Sem Medo, ratificado pelos parceiros de balcão que, sob os efeitos da “Branquinha” dele sempre queriam ouvir mais e mais das tantas histórias que, jurava João, eram a mais pura das verdade não sabendo explicar como, em inúmeras vezes saíra ileso, ou pelo menos vivo, daqueles combates tão sangrentos quanto desatinados; quem sabe, dizia, ungido pelo deus das batalhas ou pelo maior de todos que certamente o escolhera à sobrevivência e para ser testemunha e arquivo vivo daqueles tempos heroicos de que participara...

E não fora tais tempos, todas as batalhas, perguntava afirmando com convicção e a respeito do estado gaúcho, o que teria sido deste pedaço de terra, dos confins do Brasil, emparedado de um lado pelos irmãos da banda de cima integrantes da república do “café-com-leite” e na banda de baixo, pelos “hermanos” uruguaios, argentinos (mais estes do que os outros) e, até, chilenos que desciam em horda dos Andes e da Patagônia, invadindo a Pampa brasileira até aos contrafortes de Santa Maria, pilhando o que e quem encontravam pela frente.

Contava ainda, com inusitado e persuasivo semblante que, de tudo o que passara, era de pasmar o fato de ter lutado duas vezes, uma contra, enfrentando seus seguidores e outra a favor ou ao lado do caudilho brasileiro-uruguaio (doble- chapa ou de dupla nacionalidade) Gomercindo Saraiva, homem de imensa coragem e destemor, que participou de inúmeras batalhas tanto no Brasil, quanto no Uruguai, tornando-se legendário, interagindo através delas, politicamente nos dois países. Dizem que, se a coisa ficava um tanto quanto pior para si em um dos países, ele se bandeava para o outro sem qualquer preconceito, lá se envolvendo em novas refregas até que... e assim sucessivamente, no dito de João, o que a história respectiva, confirma.

Agora velho, usado, quase acabado, ali, começando o dia pelo “Boteco do Emílio” (esquina da Sete de Setembro com a 14 de Julho) e visando fechar o périplo no “Boteco do Agripino Pé Curto”, ao cair da tarde, lá estava ele escorado ao balcão e cercado por ouvintes curiosos, com um “liso” (*) de cachaça à frente para ser entornado para dentro da goela, de uma só vez como lhe era de costume fazê-lo, foi flagrado pelo poeta que de imediato o consagrou no poema:

“CHARLA DE BALCÃO”

Escorado ao balcão
bate charla João
jogando trela pra fora
Carneando problemas
falquejando dilemas
no copo da hora.
Vai gastando bombachas,
botas, cuscos, guaiacas,
gineteando ilusões
pela pampa da vida.
Na visão destemida
é o senhor das ações!
E o dia assim passa
sem saber como, passa
“à lo largo” de João,
quase nada é sentido
pois o que faz sentido
é o copo na mão!” (**)

(*) Copo de + ou – 250ml -(**) Poema publicado no livro “DEIXEM-ME O AMANHÔ de Itagiba José.

Ao fim da tarde, como sempre no ritual de todas as horas, chegavam seus fiéis e mais inseparáveis parceiros de “trago”, Jorge, o “Aviador do Lixo” (cuja história ou passagem é objeto de outro continho) e Xiru Grilo, o “Bob Nelson da Sete” (***) que funcionavam individualmente como poderosos alter-egos de João, o incentivando a contar e recontar proezas, forçando sua memória, pinçando pontos antes realçados e agora esquecidos no relato da hora (diga-se que, sempre e a cada novo relato, eram acrescentados mais detalhes, devaneios e, quase certo, mais bravatas – que a cachaça ajudava a florescer). Após alguns “lisos”, irmanados, os três seguiam seu périplo até o “Boteco do Agripino Pé Curto” e dali em diante, dizem, ingressavam na noite, ainda pelo Boteco do Agripino agora travestido de casa de tolerância e arremedo de “bailanta” onde choravam gaita e violão, sob ritmos ditados pelo pandeiro, no alvoroço dos “chamamés”, polcas”, “arrasta-pés” e outros ditos galponeiros em meio às damas da noite (que, como e desde sempre, era uma criança, adorável criança!).

(***) Bob Nelson foi um cantor muito conhecido no interior gaúcho, que usava como estribilhos sons produzidos oralmente carregados de falsetes formando um quase assovio (do tipo, oleriutiii, oleriutiii). Xiru Grilo berrava em ruas e madrugadas da Sete de Setembro, onde morava, seu famoso grito a pleno pulmões “bibibibiorrurru, bibibibiorrurru”.

João Sem Medo foi mais uma dessas personagens que o moleque guardou na memória e que vez que outra voltam a circular e viver em sua lembrança com uma certa nostalgia mas, certamente, com a alegria de tê-los conhecidos e, no caso de João, participado, ainda que no ocaso da vida dele, ouvindo aquelas histórias que ele contava e interpretava com inusitado entusiasmo e vivacidade, a ponto de trazer ao moleque a esperança de, quem sabe, um dia e que fosse pelo menos por um dia, estar ou sentir-se vestido daquela coragem, pelo menos, para enfrentar combates que esse campo de batalhas chamado vida impõe a todo o ser humano; e nem precisava ganhar todas, bastaria ganhar algumas, empatar outras e, das derrotas poder retirar o sumo do aprendizado... só isso.

Parecia, ao moleque que João Sem Medo conseguira tudo isso e não ofendam a sua memória se o maldizerem apontando a cachaça como o sumo e canal por onde escorriam tais histórias; melhor pensar que a cachaça foi, tão somente, uma das chave que destravava lembranças do quanto João teria vivenciado, colaborando, ainda, com o romanceio tão necessário ao épico que todos gostariam de ter ou fazer de suas próprias jornadas. Que o grande João Sem Medo, viva eternizado não somente em suas bravatas, muito mais naquilo que todos reconheciam como suas marcas e sinais: a sadia coragem e a retidão de caráter! (Itagiba José)