sexta-feira, 9 de abril de 2010

XXI Pensamentos

I. Parece que tudo é questão de pontos de vista, quando em verdade deveria ser, muito mais e tão somente, questão de vista nos pontos.

II. Ele que se diz cego, não carece de luz interior.

III. Rir dos outros é uma forma indolor de rir de si mesmo.

IV. Que todos tenham sua Páscoa sem jamais viver a dor da sexta-feira Santa.

V. Tua ironia é faca que corta meu entusiasmo.

VI. A luz que cega meus olhos deveria iluminar a estrada.

VII. O humor da sexta-feira é sempre cheio de fim de semana.

VIII. Ah, tempos velhos em que era moço o próprio tempo.

IX. Lembrem-se: Para "ver" o escuro basta fechar os olhos.

X. Chorar de tanto rir; eis algo que lembra sol e chuva simultâneos.

XI. Realmente não temos tempo, ao contrário, ele é que nos tem e não passa, nós passamos.

XII. Se o mal está na raíz de nada adianta podar a árvore.

XIII. No teatro das marionetes o ator principal é quem movimenta os cordões.

XIV. A tromba d'água se deve ao elevado poder de síntese de uma nuvem gorda.

XV. A carta é um monólogo com pretensões ao diálogo.

XVI. O buraco é uma ausência que se vê.

XVII. Sempre, nunca, tudo, nada, são palavras infinitas que nossa finitude material não tem condições de manter.

XVIII. O importante é estar vivo... o resto é conseqüência!

XIX. Devolvam minha ignorância. É preferível não saber do que pensar saber e se saber tão impotente.

XX. Amo o sonho que é a ante-sala de todas as realizações e o refúgio de todos os infortúnios.

XXI. Se queres o céu e te contentas com a terra, então não queres o céu.

Transmutação (Micro Conto/Continho)

Olhei o sol através de uma gota d'água e ele ficou multicolorido; a beleza está em que, a gota d'água, embora pequenina, transmutou o sol, aos meus olhos.

segunda-feira, 22 de março de 2010

Ato de viver

Não chores o passado
nem premedites o futuro.
Por pior que seja a realidade
a surpresa, por seu inesperado
traz um misto de vida
que renova mesmo doloridamente
a carne e o espírito.
Por isso, aprende a viver teu presente
como se ele fosse teu último momento
e dessa forma reterás todos instantes
e formarás a aureóla de felicidade
que todos pretendem encontrar:
nada escapará à vida, tudo será vida.
Não esqueças porém que o ato de viver
não impede o ato de amar:
Um é essência do outro!
Amar a vida deve ser não só um desejo
como também um oceano real e atuante
onde naveguem corpos, espíritos e sonhos
Um dia navios cansados, cascos arrombados
naufragaremos no desconhecido,
apesar disso o mar continuará nos retendo
e vez que outra olhos curiosos, despertos,
revirarão o pó e recomporão nossa paisagem.
A história não deixa em paz, perenemente,
seus integrantes. Vive pois o teu presente
que logo será passado, história, viagem
e de tua vida outros se ocuparão, por certo!

Perspectiva

Não se abraça a essência do vento
e ele impune nos bate no rosto
levando consigo nosso pensamento
que vaga no espaço de nossa ilusão.

Não se cobre o curso do firmamento
e ele impune cabe em nossos olhos
agindo em sorrisos perdidos, amados,
retendo consigo nossa imaginação.

Nem se vive a verdade da vida
que como o vento nos agita o rosto
como o firmamento nos cabe nos olhos
e como o amor ficou para amanhã.

Escuta

Quero que me escutes com os poros de teu corpo e alma
não quero que minha voz penetre em teu ouvidos
nem machuque teus tímpanos com ruídos estéreis,
quero ela penetrando em teu ser, louca e totalmente,
para tocar lá no fundo, que não mostras,
e ressoar, ecoar como sino que canta a aleluia
em tua emotividade e vibrar em ti, no teu querer.
Quero mais, que ela te envolva e me transporte
para o infinito que me acena de teus olhos,
para a espera e o sonho contido em teu gesto,
para a suavidade e a incógnita de teus lábios
e paire tranquila por sobre édens e solidão
e como nau exploradora do desconhecido de teu ego
traga-me, em sua volta, via eternidade
tudo que de ti espero e amo, traga-me a vida
em forma de beijo, o mel em forma de carinho...
Quero que me escutes com os poros de teu corpo e alma.

Velho menino

Velho menino, menino velho
de profundas rugas também n'alma
andas com calma, já não te apressas
foste guerreiro de um tempo antigo
e buscaste abrigo em ilusões.
Traz no teu rosto um riso vago
não é escárnio, nem ironia
é um riso morto, sem fantasia
que tantos dentes já abandonaram.
Veho menino teus desatinos, tua saudade
atrás ficaram; tudo passou, também passaste
no tempo imutável que te adornou
com a branca neve em teu cabelo
e te fez pai e te fez avô
renovando teu espírito enquanto
saldava a dívida em teu corpo.
Já estás cansado, só tens presente,
do teu passado só o bom recordas
e quando acordas no teu futuro
nem acreditas existir mais,
pois bem sabes, velho menino
que o corpo finda e a vida vai...
Inseguro então vacilas, não temes a morte
morreste tanto, temes a vida,
viveste tanto mas vendo-a fugir
por entre teus átomos sentes vontade
de viver mais pois apesar de não ser tão bom
é o que conheces, menino velho.
Não te preocupes, velho menino
terás outras vidas em teus descendentes
e, por igual, terá muitos, muitos dentes
pois meu menino o teu espírito é imortal.

Conjectura

Não é fácil explicar o que nos é insensível,
mais fácil é sentir o que não se explica.
Vejam o amor, por exemplo,
grafado pela ação humana
serve-a sob todos os pretextos.
Esse mesmo amor retirado da essência dos sonhos
não explica nosso egoísmo,
nem se consagra em nossa insanidade.
Ninguém diz: "Amo, porque..."
Ama apenas e nisso se basta!
E se não fora assim, toda a ilogicidade
e imprevisão da vida estariam fundadas
apenas na morte material...
Por isso que, sentir sem poder explicar
ou fazê-lo sem sentir é parte de cada um.
E quem sabe o homem elevado a tanto raciocínio
que lhe desvenda tudo através da lógica
consiga ficar isento de dor ou sofrimento...
... e não seria insípido e sem graça o ato de viver?

Prostituta

Prostituta tua luta, tua labuta é imoral
usa o corpo que parece a manchete de um jornal.
Eu te acuso mas te uso e te uso e te acuso de venal,
pecadora, desgraçada, sem-vergonha e marginal.
Prostituta te entregas a quem te paga à final,
te transformas na amante, na amada,
no refúgio, na esposa ocasional
e também no quebra-galho mais bestial.
Hoje o Pedro, ontem o Paulo... amanhã?
quem sabe quem! Pouco importa
corpo máquina, não pertences a ninguém.
Teu lar é a sarjeta, o teu corpo o ganha-pão,
tua alcova, teus abusos em qualquer lugar estão.
Prostituta filha pária, catalizas teus vinténs
o amor tu desconheces, só o dinheiro te convem
vives na promiscuidade e é dela que provens
sem jamais ouvir-viver o caminho que é do bem.
Prostituta, Madalena da era espacial
não tens pena, te condenas a viver pelo mal.
Vês a filha que geraste, que vida ela terá?
Seu futuro, oxalá, não seja o "trottoir",
não tem pai, não terá mãe, não terá nada...
Prostituta mais te acuso, mas te uso
embora queira te ajudar.
Prostituta tua luta, tua labuta é imoral
usa o corpo que parece a manchete de um jornal.
Prostituta te ajuda, volta a vida, te ajuda,
pede ajuda e perdão para os erros teus
prostituta te ajuda e te lembra, te ajuda
e te lembra que ainda existe Deus!

Sinto que estou só

Eu me sinto tão sozinho
desconheço os caminhos
onde minh'alma andou
é que eu estou perdido
tenho o coração ferido
porque ele muito amou.

Se beijar fosse pecado,
já estaria condenado
pois beijar muito beijei
há porém o desencanto
muitas vezes, entretanto
eu beijei, mas não amei.

Encontro-me inconformado
de tudo já bem cansado,
inclusive de viver.
E me curvo a realidade
é difícil em verdade
ser feliz e não sofrer.

Hoje estou envelhecido
da vida desiludido
sem carinho e sem amor,
só me resta a dura sorte
de esperar até que a morte
venha me livrar da dor.

Pois morrer se-me afigura
como um sonho que me augura
felicidade sem par,
desconheci na poesia
a sublime fantasia
que na morte vou buscar.

domingo, 21 de março de 2010

Andorinha (Microconto/Continho)

Fui súdito de sua beleza; fui certeza do seu amor. Hoje aceito dentro do peito saudade e solidão, qual andorinha ela partiu, p'rá ser rainha n'outro verão.

Anjos (Microconto/Continho)

No céu os anjos crianças foram patinar no gelo; na terra caiu granizo.

Acidente (Microconto/Continho)

O carro em alta, na rua baixa, canta pneu; o corpo rola feito bola, cheio de adeus. Baque surdo brada bem alto o que ocorreu. O carro em alta, na rua baixa, sangra pneu!

domingo, 14 de março de 2010

Bala Perdida (Conto/Continho)


Rita arregalou os olhos. Não podia crer no que via. Agarrada ao marido caído berrava o que lhe martelava o cérebro: O que era aquilo?... de vermelho, manchou o vestido... quase desmaiou... Em pé Marcelino, pálido e sem voz contemplava o amigo caído.

Na mão de Marcelino, o revólver...

Rita custou a se refazer da surpresa e estarrecimento. Só aos pouquinhos foi reaprendendo a respirar, reativar o tato... De súbito, pôs-se a correr desabridamente... Como um bólido desceu a rua e como se tivesse em mãos um megafone gritava a plenos pulmões: Mãenhêee! Mãenhêee!

Era inverno, quase dez horas da noite, os pais de Rita estavam deitados. Embora o prateado da lua brincasse de fantasiar o dia lá fora, o horário era tarde para quem levantava com o sol ou o chumbo da alvorada, ainda mais com o frio intenso que fazia. Tudo era silêncio, o sono chegava breve, agora perturbado por aquele som que chegava de longe pelo grito angustiado, aflito de Rita...Rita?... Mal sabiam os velhos do pesadelo que se avizinhava, recrudescido pelo som nervoso e inopinado que, agora, batia na porta, estalava na frente da casa e vigoroso invadia o quarto e a vida deles...

É a Rita - disse a mãe.
Escuta! - disse seco o pai,
Mãenhêee! - explodiu dentro da casa.
É ela - uníssonos disseram ambos, enquanto que, simultaneamente, saltavam da cama e passando por sobre tralhas que chamavam móveis chegaram à porta da sala do casebre, abrindo-a.

Diante deles, Rita desabou em grunhidos e soluços. as manchas vermelhas do vestido falavam mais alto que o vermelho dos olhos e do próprio pranto: É sangue!

O que foi?... O que é isso?... O que houve contigo?... - as perguntas brotavam em atropelos.

- O Gelcy... - Rita balbucia...
- O quêe?... Por quêe?... - berra o pai
- O que aquele cretino fez contigo? ... - incrimina a mãe.
-... mataram ele... - conclui Rita.
- O quêeee!... Quem?... Por quê? - berram os pais...
- Fala, pelo amor de Deus, fala... - berra a mãe...
- Calma, velha, calma, deixa ela... -
- Que calma nada, fala...
- ... Lá em frente de casa... mataram ele, mãnhêe, mataram ele... - prantos e soluços por toda a Rita a interrompem severamente.
- Onde ele está?... como foi?...Meu Deus... - diz atônito o pai...
- ... Na frente... o Marcelino ...tiro... caído... está morto...

Sai o pai correndo, vestindo calças sobre as ceroulas e meias, de chinelos e camiseta de mangas compridas; logo atrás, a mãe, lhe segue em corrida plena, com um casacão por sobre a camisola, também de meias e chinelos, junto com Rita, ambas em prantos. Os três disparando rua acima, densos de infortúnios.

- Pobre Gelcy, tão moço... - pensavam os pais enquanto corriam...
Rita não pensava. Sofria e corria!

- Compadre, o que foi que eu fiz... - balbuciava Marcelino agarrado ao amigo baleado e que sangrava abundantemente.

Pessoas surgiram de dentro da noite enluarada, quase dia. A curiosidade, antes da solidariedade reunira as pessoas. - O que aconteceu?... - Todos perguntavam e se perguntavam... - O que acontecera?... - Como? Por que? Houve briga? eram tão amigos e agora isso?... - Tantas perguntas e um fato: Gelcy fora baleado por Marcelino, algoz e vítima, que continuava agarrado ao compadre baleado, vítima acidental de um delito.

- Temos que levantar o Gelcy daí e levá-lo para o hospital - falou alguém, mais alto que o rumor do vozerio e letargia, normal, que afeta todos em ocasiões como essa...
- Mas será que ele está vivo? - alguém duvidou...
- Não é bom mexer com o corpo ou qualquer coisa da cena do crime, chamaram a polícia por acaso? - afirmou e perguntou um dos curiosos.
- Chamaram e é bom esperá-la - respondeu um terceiro.
Um vizinho se aproximando de Gelcy vendo-o respirar berrou - Que nada! Ele está vivo; sai Marcelino, tragam uma cadeira, vamos sentá-lo...-

- Tomávamos chimarrão e conversávamos... fui mostrar ao compadre que se acontecesse comigo o que ocorrera com meu mano a coisa seria diferente... Os navais surraram ele na pensão da Tia Florzinha... eram quatro e ele sózinho não arrepiou, mas apanhou tanto que até foi parar no hospital... - tentava explicar Marcelino enquanto alguém lhe assistia e dizia: - È melhor sair correndo daqui, agora, a polícia foi chamada e se te pegam é cana certa... é o tal de flagrante, homem...
- Mas foi um acidente - continuava balbuciando Marcelino - Eu ia mostrar ao compadre que se fosse comigo, e não o meu mano, eu pegava o meu Bagual 22' (marca e calibre de revólver de fabricação argentina) e, atirava nem que fosse p'rá cima, p'rá espantá-los... saquei a arma e fiz o gesto correspondente e a arma disparou com a bala acertando a cabeça do compadre... Meu Deus, meu Deus, o que foi que eu fiz, meu Deus!... matei o meu compadre, matei o meu amigo... e agora, o que faço agora?... -

Um espectador curioso ouvindo Marcelino e refletindo profundamente concluiu que ele fora epílogo de livro que não era seu e não tinha o direito de sê-lo e que por certo carregaria em seus ombros, pelo resto de sua vida sua vítima ou, quem sabe, um cadáver como, aliás, todos carregamos os nossos com o atenuante de nos sabermos apenas espectadores sem culpa ou dolo pelas perdas dos entes queridos próximos e, mais ainda, distantes de qualquer sentimento que não o da constatação estatística, dos terceiros incertos e não sabidos. Mas isso era mera filosofia de uma noite de inverno, muito fria, muito clara, enluarada...

Enquanto isso, levantaram o Gelcy e o sentaram na cadeira. Apertam-lhe no pescoço o orifício por onde adentrara a bala, querendo estancar o sangue. O velho Raul, vizinho, marido de D. Anália, carreiro de profissão, já aprontara o carro rainha puxado pela parelha de cavalos, o Solito e o Luar, com boleia e capota, estava pronto para levar Gelcy ao hospital como finalmente o levou.

Chegam, Rita e seus pais. - Ele está vivo! ... - exclamam! - Gelcy, fala comigo - implora Rita sem obter resposta...

...

Chega a Polícia. A confusão geral vai aos poucos se acalmando. Todos falam à policia, da vítima, do algoz, da poça de sangue que registra o local da queda de Gelcy (a terra sugara o vermelho do sangue de Gelcy e o devolvera como uma mancha negra que nem a noite prateada amenizara) Sai a polícia rumo ao hospital sendo cientificada pelo plantonista que lá, com muito esforço falara Gelcy que fora um acidente, Marcelino não tinha culpa... - Enquanto isso, mesmo com sua liberdade em perigo Marcelino vai com sua bicicleta até o hospital, ficando lá fora ao alcance de qualquer notícia, rezando pela recuperação do amigo.

Devagar o pesoal se afasta do local da tragédia, subidividido em vários grupelhos, encompridando a noite, no aguardo de resposta à curiosidade que detém... e as notícias não tardam... trazidas não se sabe como nem por quem, desencontradas e cheias de mistérios chegam todas ufanas em sua verdade...Gelcy morrera ao chegar ao hospital...ainda estava na mesa de operação lutando pela vida... o médico disse que o risco de morte é muito grande, tendo pouquíssimas chances de sobrevivência... a enfermeira disse que a coisa está tão preta que o óbito é questão de minutos...
A cada notícia, novas conjecturas, novos rumos. Aos poucos, cansados pelas elocubrações e notícias desconexas, na magia da noite que se esvai, os grupelhos vão se dissolvendo até que fica apenas o palco da tragédia iluminado pela lua que morre, pela alvorada que chega e pelo silêncio de um quase nunca mais...

Na sala de operações Gelcy sofria delicada cirurgia. A bala penetrara-lhe pelo pescoço alojando-se em um osso da base do crânio. Por milímitros a bala não lhe atingira a artéria, o que, tivesse ocorrido, o teria matado na hora. Por sorte não sofrera hemorragia interna.À cirurgia meticulosa, demorada, sofrida, não fora possível a extração da bala. Por algum tempo, enquanto convalescente todo o cuidado era pouco, para que a presença da bala na base do crânio não deflagrasse uma hemorragia fatal.

Marcelino foi processado e absolvido, em juízo singular pelo acidente causado. Gelcy, vítima, recuperou-se após algum tempo, do episódio e da lesão sofrida. Não teve seqüelas de qualquer ordem. Ambos continuaram amigos e compadres sendo que Marcelino jamais voltaria a portar arma; aquele Bagual 22' tinha-lhe dado o desgosto e amargura suprema de se ver assassino e
quase o transforma nisso e o que é pior, em cima de um grande amigo.

Gelcy e sua família, vencido o período e trauma inicial, voltaram ao cotidiano; tudo como antes. Ele, mestre padeiro, fazendo pão de qualidade na Padaria Rosa; Rita continuando a realizar seus afazeres de dona de casa e seus bordados nas calmas noites do lar, como àquela, agora distante, n'um frio dia do início de maio daquele ano quando ao levantar os olhos foi surpreendida pelo clarão e estampido de uma arma de fogo e, concomitantemente, com a queda do corpo de Gelcy, abrindo às portas de um inferno que rezava jamais viesse se repetir...

Sete meses depois daquela noite que pensara ter eliminado da lembrança, Rita se encontrava em trabalhos de parto no mesmo hospital, Caridade de Uruguaiana, onde Gelcy fora salvo. Era seu segundo filho e quando do acidente Rita não sabia que o esperava, grávida de dois meses. Olmir José (que seria Almir José, não fosse um erro do escrivão do Cartório de Registro das Pessoas Naturais) o filho recém nascido, segundo o médico obstetra, apresentava paralisia dos membros inferiores, com a possibilidade de ser permanente o que, juntamente com inoportuna e momentânea paralisia dos membros inferiores de Rita na hora do parto, prejudicara seu nascimento sendo o parto efetivado à fórceps. O doloroso diagnóstico viria a ser confirmado com o passar dos anos e catorze operações a que viria a se submeter (O)Almir na vã tentativa de andar com suas próprias pernas.

(O)Almir jamais caminharia fisicamente falando já que, como pessoa tornou-se bem maior e completo do que tantos que, ditos sadios, só sabem deambular com suas própria pernas sem sequer utilizar um átimo de sua imaginação e bondade. (O)Almir somente nasceu e ficou privado de uma condição física, comum a tantos, de resto foi e é superior às vicissitudes e preconceitos que enfrenta e vence!

O disparo acidental de Marcelino fizera mais do que uma vítima! Atingira também (O)Almir mais grave e mais fundo do que atingira Gelcy!

Ninguém desde aí pode eliminar aquela noite cujo prateado brincava de fazer dia. A vida pregara mais uma de suas peças e as muletas (e cadeiras de roda) de (O)Almir, seu sofrimento, suas limitações, formaram o painel e o fardo dolorido de todos.

Para Rita a beleza daquela noite até o momento do disparo, nunca mais se repetiu...

sábado, 13 de março de 2010

Pequena vingança (Mini Conto/Continho)


Hoje, véspera de Natal de um ano qualquer, nem sei se pelo evento maior da Cristandade ter-se transformado, como tudo o mais destes tempos de aflição, nesta corrida consumista insana, comercial, sem limites ou ética, nesta tropelia do ter e do quero mais que esmaga a espiritualidade pelo materialismo pagão e inominável, sei lá se somente por isso ou por algo mais que meu subconsciente esconde diante da futilidade destes tempos, veio-me a mente a história daquele menino, guri, piá que, aos nove anos, em um Natal à moda antiga ganhou de presente o seu primeiro par de sapatos.


Abra-se parêntesis para dizer que até ali andara de pés descalços enfrentando às agruras de solos duros, caminhos cobertos por pedras afiadas e rosetas, espinhos que a Pampa esconde, ruelas, becos, avenidas e trilhas, em verões quentíssimos e invernos gelados do qual quebrara geadas e fizera diuturnamente a via sacra dessas vicissitudes comuns a todos materialmente desafortunados, com as solas dos pés endurecidas, rígidas, rudes, calosas que o continuado enfrentamento proporcionara e bem assim amenizara em boa parte o sofrimento esperado.


E ainda que assim fosse e o uso continuado houvesse deixado as solas dos pés em "melhores condições" para o enfrentamento das intempéries, o frio intenso ou o calor inclemente, espinhos/rosetas, cacos de vidro, lascas de pedras e tanto mais, dilaceraram sua carne, vencendo a barreira natural da calosidade formada, criando chagas e cortes que o tempo, o único e melhor remédio, se encarregara de cicatrizar, até que e novamente, ocorresse um dos fenômenos perversos e doloridos, próprios dos cíclos citados.


O guri não se continha de tanta felicidade ao receber de presente seu primeiro par de sapatos. Mesmo não sabendo calçá-lo, verificou que logo se tornaria especialista nisso também. Ah, as modernidades, como é fácil nelas nos adaptarmos...


Pois bem, após calçado o sapato, não sem muito esforço inicialmente para ajustá-lo aos contornos daqueles pés até ali livres e soltos das rédeas por tanto tempo, o primeiro movimento do piá, o primeiro direcionamento dado aos seus passos agora ensapatados foram, firmes e resolutos, dirigidos à touceira de rosetas mais próxima e com uma satisfação estampada tanto nos olhos quanto na alma, caminhou sobre as rosetas, ao início lentamente como quem saboreia o movimento com total gozo, aumentando o ritmo do deambular com igual aumento de pressão, paulatinamente, até literalmente pisotear as indefesas rosetas que tantas vezes feriram seus pés,
consumando uma pequena, e doce para si, vingança...


Esmagou rosetas sem senti-las penetrando em sua pele; outras rosetas, é verdade, não àquelas que um dia feriram seus pés. Vingara-se nestas e isso aparentemente lhe bastava... Só não recuperara, nem poderia, as dores antes sofridas e tal ato, o de esmagar rosetas, não lhe trouxe lenitivo algum... Não se dera conta da inutilidade de seu gesto...


Iniciava o verão e o sapato seria a salvaguarda para seus pés estropeados; também no inverno quebraria geadas com gosto, sem dores, pés protegidos e sem peso na consciência... Aquele Natal, ao contrário da mensagem dos antigos Natais, de Perdão e Amor na sublimação do Ser, revelara ao guri o poder da retaliação da qual o mais forte sempre, ou quase sempre, lança mão sem se importar pelo desamor que a explode.


Como certamente o piá descobriria mais tarde, toda vingança, mesmo a maior, é inútil, descolorida, sem nexo ou efeito outro que não o de tornar infeliz o pobre de espírito que a comete. No episódio, a alma do guri ficara menor e o significado único trazido pelo presente que recebera, aquele par de sapatos, não foi vivenciado em toda sua extensão e magnitude, perdendo conteúdo o momento feliz vivido, pelo supérfluo de uma vingaça mesquinha... Quantos fazem isso, diariamente, em suas vidas?...

RELEITURA

Tu que vês e não enxergas
Pensas mas não refletes
Mais se quebra do que verga
Menos é do que parece.
Formas assim falso horizonte
Insustentável e sem prumo
Sem o amanhã que do ontem
Resulta desvendando rumos.
Do tanto vivido antes
Este hoje sem doçura
Realiza, dissonante,
Contra-senso, releitura.

Passam ao largo, vinhetas                      Que se encontram no infinito
N'um concreto apressado                        Nelas, o infinito meu
E no meio fio, na sarjeta,                        Descobre o nós, no seu
Navalhas cortam passados.                     Despido de qualquer mito...
Nem tudo é o que parece                        Sai, chega, vem, vai e volta,
O direito do anzol é torto                        Pelas trilhas desbotadas,
Perder a vida é estar morto                     Expandindo-se em estradas
Na morte tudo se esquece...                    N'um quê de natureza morta
Os trilhos são paralelas                           Que se acende e revigora
Com começo, meio e fim,                       No sim d'alma rejuvenescida
Em verdade, são assim                            N'um sopro que produz vida
com a aparência daquelas                        Com vigor de nova aurora!

Contato imediato

Assim que te vejo fico enternecido
Nada é impossível ou proibido
E psicologicamente desando
Sem defesa ou comando
No físico entumescido.
Nada mais vale tanto a pena
Senão alma e corpo, apenas,
Inteiros vivendo, sem alarde
Como se antes fosse cedo
E o adiante muito tarde.
A vida feita brinquedo
A química, o cheiro
Refletem o destempero
Do macho que se expande
E o desejo se faz grande
Imerso de alegorias
Pouco importa seja dia,
Hora, noite, quando ou onde,
O juízo não mais esconde
A esperança, o amor, a fé,
Nada foi! Nada será! Tudo é!

Presença

Um tudo que se foi no tudo que não veio...
Agora e sempre estou lembrando de ti e de mim
Por tudo que fostes e és em mim e fui e sou em ti
Pelo que poderiamos ter sido ao fim e ao meio...
Lembro-te pela fantasia do menino desde o início
Tu um anjo, cabelos claros, naquela alameda
À sombra dela o maior de todos nossos beijos
A inocência de nossos abraços, gestos e afetos,
Os nossos sonhos, receios, nossa tarde leda.
Dos teus olhos de sol graça e carinho se espargiam
Neles tua suavidade, paz, cumplicidade, reluziam
No imenso sonhos de ficarmos juntos à vida inteira
Que mesmo distantes um do outro foi consumado
Por se manter vivo, presente em nós nosso passado
Que se revigora nos encontros que temos à beira
De nossas próprias vidas e histórias em paralelo
E forma, para todo o sempre o indestrutível elo
Do que um para o outro fomos, somos e seremos.
Mal sabíamos então por qual razão, o destino decerto,
Nos condenaria a ser fonte e luz de outros universos
Sem retirar a doçura daquele amor que ainda temos.

Depressão

Na compilação destes dados tresloucados
Amargas horas que me tragam e esmagam
Não vejo ninguém comigo e desacompanhado
Inclusive do meu próprio ego ou mistério, sigo,
Sentindo meu sol se por em horizontes etéreos.
E do zênite deste universo torto, avesso, raso,
Não escapo ou fujo ao meu ocaso... nem reajo!
E como mosca presa à teia da viúva negra
Desando na agonia deste agora antropofágico.
N'um esgar quase trágico mordo a isca da ironia
No paradoxo de estar vivo e sem vida, um nada!
Sou muito mais do que estou agora à revelia...
Preciso crer que deste escuro virá a alvorada
Como em outras vêzes me condenando ao dia!...

Regras do agora

O dia foi destinado para ser vivido. Ativo.
A noite, para o descanso. Brando.
Do destino virá a morte, sem aviso
de quando e onde se fará o encanto
e o descanso, dizem, eterno será (?) ...
Dia ou noite, pouco importa quando,
vives pois as tuas noites e os teus dias
sem descanso ou dor, vivo e satisfeito
sem amargura ou agonias
neste mistério, graça e fulgor
que o agora te oferece e insiste
desabrochado do amor de que és feito
eis que o amanhã é mera fantasia
poderá vir, mas ainda não existe...

Mellyssa, Gabrielle e Luize (MGL-Mundos de Graças Luzídias)

Ao "M" que tenho gravado
No fundo do coração
Acrescentei o "G", forjado
No mesmo amor e afeição.

"M" de "Mel", na doçura
Marota de seus olhinhos
Saltita a inocência pura
Porto do nosso carinho.

"G" de "Gabi", pacotinho
de risos e de ternura
Em teu olhar adivinho
Tuas futuras travessuras.

Adiante, o "L" de lindeza
Que se espera sempre dure
Pintando o sete, a fortaleza
Da Poli-Gatinha, "Lule".

DVDs, filmes, brinquedos,
A infância, "Mel", "Lule", "Gabi",
A vivenciem sem medos
Pais e avós estão aqui!

Anjinhos de caras sujas
De feijão preto, churrasco,
"Cacácas" e, de lambuja
Fraldas e guardanapos.

Manhãs de sol e de vida
Que brilham no nosso céu
São amores, são queridas,
São nossas "Lule", "Gabi" e "Mel".

Gatinha-Gatinha é Mellyssa
Gabrielle Tri com meiguice
E p'rá completar a missa,
Poli "Lule" com a sua morenice.

Cresçam sem pressa meninas
Dos nossos olhos, que amamos
Sejam felizes, traquinas
E, adiante, o que desejamos.

sexta-feira, 12 de março de 2010

Um sopro de vida, apenas.

Mais que o riso, mais que a prece
Queria que tu me desses
Um sopro da vida que sobra em ti
Não precisa mais que tanto
P'rá recuperar todo encanto
Da vida que falta em mim.

Se deres o que te peço
Do zero ao tudo, recomeço
Na vida que estará em mim.
Ao contrário, deves saber
Condenas-me a morrer
Por falta do que sobra em ti.

Charla de balcão

Escorado ao balcão
bate charla João
jogando trela p'rá fora
carneando problemas
falquejando dilemas
no copo da hora.
Vai gastando bombachas
botas, cuscos, guaiacas,
gineteando ilusões
pela pampa da vida
na visão destemida
é o senhor das ações.
E o dia assim passa
sem saber como, passa
'à lo largo' de João
quase nada é sentido
pois o que faz sentido
é o copo na mão!

Balão de aniversário

Tu que tiraste e queimaste o negro sangue,
a seiva, a flor, no canto de tuas guerras
ouví os gemidos dos seres exangues,
e os tenebrosos rugidos do centro da terra.
Haverá de sentir, eu também e como,
na pele, n 'alma, em tudo o que somos
Os efeitos do mal que praticamos
Destruindo o planeta que habitamos.

A terra oca, desmatada, vazia
Flutua qual balão de aniversário
da rota do sol, perdido, à revelia,
Desnorteada, bêbada em seu eixo,
no espanto do agora, este rosário
Tropeça no buraco negro do desleixo
E a natureza cobra o seu preço...

Saga

Senhor,
não me agrida com sua barriga
cheia de reis e fartura,
contenha-se!
Sou o Zé que a fome adotou
e, aparentemente, Deus esqueceu.
Sei, e como sei, minha fraqueza
não vêm de sua prepotência e força,
ela vem de meu nome dispersivo
(e forte quando unido -quando?!!!),
de minha desigualdade intrínseca
e de uma vaidade que se deleita
diante da demagogia que a infla
e dilacera.

Senhor,
não me agrida com seus raios
cheios de trovóes e ameaças,
contenha-se!
Vê o céu encher-se de lágrimas
e o mar de céu,
o universo apresentar-se ali ao alcance
da mão e ambição da humanidade?
Escutou acaso o som
de minha humilhação contida,
explodindo minha garganta,
implodindo meu orgulho, minha fé?
(eis-me assim mais fraco, só
e arrebentado).
Caminho sobre brasas,
mas ergo o teu nome,
recebo cinzas e elejo à fome
meu cotidiano.

Senhor,
não me agrida com sua esmola
cheia de fugas e piedade,
contenha-se!
Não busque através dela saldar dívidas
que possa ter com sua consciência.
Não mereço carregar em mim mais este peso,
permita-me a irreverência de recusá-la.
Deixe-me pensar que assim respiro,
pequena travessura deste eterno menino,
este etéreo e intangível ar de liberdade.
Minha imaginação atropelada pela realidade
não fere sua passagem, não atinge sua paisagem.

Senhor, não me agrida com suas promessas
cheias de arco-íris e quimeras,
contenha-se!
Um minuto de seu silêncio
pelo silêncio de uma vida
(sem importância porque minha vida)
um minuto para mim, o seu escravo,
para todos os zés, escravos seus,
que seguirão sem sonhos, ao sabor da história
dela fazendo o embuste
que iludirá os descendentes.
Permito tudo. O que mais deseja? Porque me agride?
Os que virão continuarão a saga da hipocrisia
que me leva a serví-lo. Todos felizes, para sempre.

Stress

Correu célere em busca do amanhã
na doida certeza que o alcançaria.
Sem tempo a perder e tudo a fazer
preocupou-se e ganhou uma úlcera.
Fechou-se em si mesmo dobrando o ritmo,
cultivando a volúpia do poder.

Duro foi despertar sem identidade
naquele hospital que desconhecia.
Um corpo cansado, uma mente abalada.
Um nada ao quadrado!
Enquanto corria rumo ao amanhã
não se deixava viver o presente
nem ser ou fazer alguém feliz.

Recuperado, não buscou o amanhã antecipado
e viveu em cada segundo sua eternidade
compreendendo que a vida ou a felicidade
é o instante que fica, embora passado
é o instante que passa, embora presente
é o instante que vem pelo inesperado.

Cristo

Quem é Cristo?
Deve ser esta força
que impulsiona minha fé,
ou então essa tremenda
energia de mais de mil cavalos
que impulsiona meu motor;
um motor cansado, abatido
cuja última gota de gasolina
se foi há muito tempo;
um motor cujos pistões
tocam a música inaudível
do ronronar da incerteza
e cujas bielas foram soltas
pela ação corrosiva da desventura;
um motor que não merece
nem o óleo que consome e queima e não existe.

Quem é Cristo?
Deve ser esta força
que impulsiona minha fé,
não pode ser este mundo
que laureia minha descrença
e nem pede auxílio, nem auxilia!
Apenas mata ou entorpece
enquanto aos fracos reveste
dessa farsa passiva de existência.

Quem é Cristo?
Não diga que é o Filho de Deus
sem sentir o que isso significa
tornando-a uma frase vazia que o tempo
agilmente colocou entre o fanatismo
de alguns e o ateísmo de outros.

Cristo é o dia, é a noite (estrelada),
é a chaga, é a dor, a alegria, a beleza,
é o sorriso, é a paz, o meu corpo,
o teu corpo, é o espírito, é a prece,
Cristo, enfim, é o Amor em letras versais,
em todos os idiomas, sob todos os nomes,
sobre todos os mundos.

À minha musa

Lês os tolos versos que te escrevo
com o coração a ouvir baixinho
a canção ternura, a canção carinho
que neles a te ofertar me atrevo.

Sentes na maciez da pétala caída
o suave perfume de aroma agreste
e a naturalidade que ao poema deste
além da grande paz nele contida.

Vês nos versos que invadem o espaço
o teu perfil formado no regaço
da inspiração tênue que ele alinha.

Do infinito a luz a terra espreita
Tal qual meu sonho que de ti aceita
a sua própria vida, musa minha.

Visão

No trajeto teu trejeito
aromado e satisfeito
mesmo com este verão,
lá de longe eu te sigo
tendo como meu abrigo
este sol de tua visão.
Permito-me a eloqüência
sem deter a impaciência
que meu ser todo comporta
e, bem sei, é teu encanto
causa viva deste espanto
que à loucura me transporta.
Lamento que esta alegria
de te ver sempre de dia
não te faça perceber
que a noite, deprimido
qual demônio arrependido
de ti tento esquecer;
não adianta, és minha cruz
e em meus sonhos és a luz
que não posso segurar
entre os dedos reverentes
alma e corpo, convergentes,
és meu ponto de chegar.
Quando passas, não te chamo
tu não sabes, eu te amo,
amo teu jeito de andar,
amo teu rosto, os seios,
teus quadris e seus recheios
e tudo que não posso olhar.

Inventário

Parecendo distraída
Passeava meio perdida
Em meio aos devaneios
De sua mormacenta vida.
O vento batia palmas
Na tarde louca d'alma
E a sede que beija sua boca
Quase rasa, sem os recheios
Que um dia fizeram marcas
Perde-se no ultimato
Dessas lembranças amargas
Vestidas de lágrimas tortas
Despetaladas dos fatos
Lambuzados nas derrotas.

O que fizera de si?
O que fizera pra si?
A sensação de estar morta
Era só um de seus pesares.

Ao girar os calcanhares
Perdeu-se na desventura
Tonta, quase sem sentido
Não percebendo ter sido
Escolha, medo, tortura,
Gagueira no tanto ido.
Soube neste agora turvo
que o tudo que buscara
Só existia num nada,
No escuro dessa estrada
Em que sempre tropeçara...

quarta-feira, 3 de março de 2010

Finitude

E quando desces o sol
sobre a neve do meu cotidiano,
o gelo desliza, degela
inundando a primavera de cascatas
que soam um marulhar de sonhos e estrelas.

É tua presença, neste sol amarelo e vivo
quem aquece e reanima o tudo tido e ido
refazendo, célula a célula, o inomínável
(infinito e intangível instante de amor)
É tua presença em tudo isso, provocando
visão de centelhas de eternidade em mim,
ao gelo da tarde de ontem e de antes que morre.
A noite então, está distante
e a plenitude do sempre
rasga-se em luzes de agora
e o tudo é, existo, a vida é e transcorre...

Mas nada é definitivo, nem nós o somos
e as correntes de elos fortes rebentam-se
entre o peso e a dor do haver passado.
Nem mais cascatas, nem mais abismos,
a alvura da paisagem cega e os ombros curvos
abraçam a noite polar. E tudo é nunca mais...

Metamorfose

Espera que eu creia nas juras que faz?
Que pensa que eu sou?
Esgotou o seu crédito, sabia?
Lamento dizê-lo, simplesmente acabou!
Já não faço do vento uma parcela
de minha soma ou de qualquer total
nem castelos de areia abrigam minha crença,
e o mundo continua a girar, tudo bem, tudo igual!
Somente fiquei mais objetivo, temperado,
enfim eu mudei, não sou mais o mesmo.
Aquele passionalismo que foi minha expressão,
o arrebatamento, a ilusão acabou, acabou!
Vivi o bastante, errei outro tanto, mas aprendi,
as lições foram variadas, custou muito, mas aprendi!
Vê, não me venhas com juras, promessas,
não creio em você. Ah!, a grande vantagem
é que agora creio em mim e piso na terra.
De resto, agradeço a você
por ter feito de mim exatamente o que sou:
um ser racional que colheu do amor
um pouco de dor e muito de paz...
um ser que sonha dentro dos limites
que a realidade impõem.
Por isso, não venhas com juras que creio
em sua aptidão de jurar... por nada!
O meu sonho morreu em suas mentiras
e através delas você passou em minha vida,
passou, deve conformar-se com sua herança!
Adeus, suas juras não têm o meu crédito
e o amor feneceu na própria ilusão que ele foi.
Adeus a vida é isso aí, exatamente
e eu renascido para o mundo real
agora que aprendi, vou renovar o fascínio
que sinto, em outras paisagens, todavia
não usarei mais binóculos ou lentes de óculos,
verei por mim mesmo... e com estes olhos, ora!

Cavalos de batalha

As rodas de borracha deslizavam
mansamente na cidade grande
e nada chamaria mais atenção
naquela tarde de chumbo e sol
do que tanta miséria retratada
no todo daquela carroça.
Própria ironia como se buscando
um lugarzinho no asfalto,
se postara imediatamente atrás da carroça;
um carro importado buzinava,
queria empurrar o lixo à frente,
dobrar a rua, desviar, fugir ao contágio...
Percebido um gesto fugídio,
nervoso, da mão que varou o espaço
indicando entrada à esquerda,
o mundo parou como sempre
para a miséria atravessar a rua
sem saber qual o mais infeliz
se o cavalo ou o carroceiro
ambos desnutridos, desolados
puxando seus infortúnios,
um atrelado a uma carroça
o outro, sem saber como ou por que,
atrelado ao chumbo e sol da vida.

Projeto

Não farei tese, síntese ou quaresma,
nem quero lavar as mãos no sangue do mundo,
quero apenas mediar todas as questões
sem prevenção ou jurisprudência, isento!

Baseado nessas premissas
construirei meu silogismo
e conduzirei meus passos
à Lógica que amo tanto;
nem por amá-la, entretanto,
deixarei de traí-la em nome
da loucura primitiva que habita
o fundo de mim mesmo,
essa loucura que me faz procela,
eloqüência ou redemoínho e me projeta
sobre o norte de tantas paixões
com a ferocidade da revolta
e me esfacela, me sangra, me ilude
e me faz um ser inexplicável
cheio de vida e de morte...

Reconheço-me, assim, inimigo
de meu próprio objetivo
mas, talvez por isso mesmo,
detendo a força necessária
para vencer-me, conhecer-me, conquistar-me.

Incógnita

Quem és?
vens de uma noite
que ninguém entende
e dilapidas um dia
que ninguém viveu.

Quem és?
sorris ante a ignorância
e te serves dela como um trunfo
e te esqueces dela como um sábio.
Talvez sejas a solidão, a dor,
ou simplesmente a verdade
que não quero admitir
nem enfrentar. Quem és?

Ah, reconheço em teu aroma,
em tua obesidade, o volume
crescente de tua coragem
e, apesar de minhas negaças,
como o tempo, estraçalhas as mesmas
e surges imponente e grave
no manto que cobre tua nudez
e reduz o teu impacto.

Como uma artista de mil predicados
no strip-tease do tempo
deslizas o manto e te descobres
aos olhos curiosos do historiador.
Por que não me deixas tocá-la, agora,
tal como és, sem sombras ou dúvidas?
E em troca me dás, a minha certeza,
a verdade que os séculos cobriram de pó
e nem recompensas a minha procura,
ao contrário alimentas as minhas perguntas...
Quem és?

Fuga

Não estou p'rá ninguém
nem p'rá mim,
estou de férias de tudo,
de todos, enfim eu saí
lá p'r'os confins da terra,
lá p'r'os confins de mim...

Não estou p'rá ninguém
nem p'rá sonhos ou tragédias,
nem p'rá ritos ou porquês,
quero descartar a comédia
que me fez em um só tempo
ter amor e odiar você.

Não estou p'rá ninguém
nem p'rá minha solidão...

A infância perdida

O Itinha que eu tinha
hoje não tenho mais,
perdi-o nos labirintos
do mundo civilizado.
Presumo que o Itinha
afogou-se na vergonha
de ter-me alterado tanto
e mudado como cera
ao toque do cotidiano,
desaguando em tantos vícios
com status de adulto.

Por que é que não retive
o Itinha que ainda vive
no menino que eu fui?
O Itinha que eu tinha
hoje eu tenho na lembrança.

sábado, 27 de fevereiro de 2010

Amanhã (logo adiante)
fisicamente
estarei morto
e nada mais
terá importância,
nem tua ausência,
meu desconforto,
minha artrite
todas as ânsias,
tua inconsciência...
E serei, triste,
resto de estrada,
folha despencada
do firmamento,
não mais que um nada
de esquecimento...

Lua nova

Cansei de borrar meus sonhos com tintas do não fazer
e de irrigar os meus olhos com histórias do pode ser.

Cansei de viver na lua minguante do não viver,
pisar na febre das ruas do bem-querer, mal-querer,
da guerra do dia-a-dia pintada de insensatez,
de querer ser meio-dia na noite desse talvez.

De germinar egoísmo, cansei de morrer semente,
quero agora o ativismo de viver todo o presente,
tropear saudades, quimeras, abrir cancelas de aurora,
deixar de só ser espera, querendo e fazendo agora!

Estática

Molhava os pés, distraída,
nas águas doces do açúde
enquanto nelas, refletida
na mansidão na quietude
a inocência saltitava
- Que visão! Que encanto dava
aos meus sonhos de guri...

Agora, de volta, aqui,
às águas do mesmo açúde
não mais são cristalinas...
Nem a vida, que não pude
evitar de poluí-la...
Resta a imagem da menina
que nunca mais esqueci...

Pirilampos

Imagina pirilampos sem carga na bateria,
no fundo escuro do campo, na soga da desvalia.
Imagina pirilampos no pisca-pisca das horas
brotadas dos acalantos que tive e joguei fora.
Imagina pirilampos no lusco-fusco do outrora
boiando sobre remansos de passos idos embora.
Agora, pilchando o pranto desse leite derramado
sou um desses pirilampos na solidão arranchado.
Desgarrado pirilampo, desnudo de alegorias,
sem o abraço, o encanto, do quanto sonhei um dia.
Meus sonhos, pirilampos de luz e som apagados,
jazem solitos no campo do que foi sem ter passado.

Inverno

Tarde úmida, o Pampeiro sopra firme em Uruguaiana
E já faz mais de semana sem dar alce p'rá ninguém
Quem me dera o vento frio, com um sol pálido de estio,
Que só o Minuano tem!

Minha vida tem andado qual o tempo em Uruguaiana
E já faz tantas semanas, se arrebenta de ninguém
Quem me dera agora fosse tempo de colher pão doce
Que o meu cesto já não tem!

Como a minha Uruguaiana, p'rá esta ou n'outra semana
Espero venha o Minuano com o sol feito batom
Quem me dera neste Junho, com a viola que empunho
Festejar um tempo bom!

Ato falho

Saboreava o chimarrão,
solito, do fim da tarde,
folhando à toa o jornal,
despassito, sem alarde...
De repente o irreal
de um nome, qual tentação
saltou da secção "Recados",
repontando o meu passado...
Dizia a simples mensagem:
"Volte logo, meu amado!"...
Como pode tal bobagem,
deixar-me nesta agonia?
O amargo da fantasia
queimando amargo no amargo
- sal e mel, entreverados -
no sol posto do passado...
E a dor, sei lá, adormecida
por vacinas do ausente
voltou a dizer presente
na quadra da minha vida...
Até parece engraçado,
o meu amor exilado
voltou pleno no contraste
do nada desse recado
- que não foi tu que mandaste,
nem p´rá mim foi destinado...

Moleque engraxate

Tão cedo para a vida acordaste
moleque engraxate, tão cedo choraste
o choro que o mundo te provocou
moleque engraxate a ilusão terminou.
Caminhas inseguro, moleque engraxate
carregas na língua a fala que bate,
pequeno e sisudo, arguto e vilão,
apreendes e professas outro palavrão.
Proclamas a glória de saber lustrar,
tu que não sabes nem mesmo brincar
e o germe que viça no peito inocente
é o virus do ódio que por tudo sentes.
O amor, a infância, são coisas banais
sofres na carne da realidade punhais
e as feridas abertas não cicatrizarão
sucumbes ao vício, desconheces perdão.
Trabalhas agachado aos pés d'outra gente
por míseros centavos te tornas contente
e pensas que dinheiro, moleque engraxate,
a tudo e a todos convence e abate.
Ah! quando te olho assim na sujeira,
na altura do nada, criança fagueira
deploro esta vida de muitos madrasta
que divide homens em classes e castas.
Vejo-te moleque sem eira nem beira,
moleque engraxate entregue a fogueira
do mundo imundo que bate e tonteia
e te fez tão jovem conhecer suas teias.
É noite e ainda tu andas nas ruas,
perambulas sem dono, sem lar, continuas...
Apregoas tua fibra moleque falaz,
moleque engraxate, que pena me dás!

Esperando a primavera

Que improviso se fará em tua presença
e quantos sonhos levarão a inconsistência
destes tempos que de luz estão escuros.
Espaços todos ocupados pela descrença
de tanto usada repartiu-se a impenitência
em dupla crise, poluente e ar impuro.

Não que te bastem improvisos rebuscados
nem deles tenhas o poder já consumado
pelos acordes que retinem em teus termos.
É que a procura deste real, integralizado
em corpo inteiro, uno ou multifacetado
faz-se de atos e coisas que não vemos.

E assim, na dúvida e espera que vivemos
quando enfim chegares, bela e radiante,
trarás em ti o improviso que não temos.
Então, mais se fará a vida, cintilante
e ínfimo terá sido o inverno que vivemos.
E diante disso, tudo será daí em diante...

Meneios

Andar e dizer com o corpo
a prece dos insensatos,
assim te vêem, embora inocente
em tuas perguntas e anseios,
de todas as respostas escondidas.
Caminhas na leveza do firme pensar
enquanto a beleza descansa
os homens doidos por não ter senso
pensam demônios, luxúria
e escapam simplistas por olhares vagos.
E quando andas, no andar sinuoso
sem perceber ou pressentir,
o terremoto que teu corpo causa
os torcicolos que teu andar realiza.

A demissão (Poema/Mini Conto/Continho)

Apenas sei que quando me dei por gente
eu estava no mundo
e já conhecia um bocado de suas manhas.
Enquanto me chamavam de pobre moleque
eu, com a cara estampando toda a tristeza
tirava vantagem dessa necessidade
de apiedarem-se que as pessoas têm.
Que sabia de cinismo? só sabia que
uns olhos marejados, um rosto contraído,
uma máscara de amargura, enfim,
era o suficiente para assegurar-me,
ao menos por alguns dias, mesa farta.
Era um artista! Em dois minutos, no máximo,
lá estava resplandecendo em sorrisos
para mostrar a alva fileira de dentes
que naquela época eu possuía; aliás,
só tinha duas cáries, se tanto... não lembro bem...
O que lembro é da Maria-Pega, oh, se lembro!
e como pegava a Maria. Para mim, novinho
e cheirando a fraldas, como ela dizia,
ela foi a prima-dona verdadeira.
Naquela época só não gostava da chuva,
a cidade se escondia
e eu ficava sem aquilo que era a minha família:
o povo que escorria por entre as ruas
e que me sustentava, sim sustentava,
uma trombadinha aqui, outra acolá
e já estava garantido o "grude".
Especializei-me no ramo e tirei patente,
fiz o teste vocacional na prática
e optei pelo viver o mais possível
sem grandes esforços. Foi um erro
porque, na verdade, fiz muito esforço
para não fazer esforço e acabei cansando.
Um dia fui engavetado, como diziam na época
quando a pessoa ia para a cadeia...
e me tornei doutor! Entrei especialista
em trombadas e saí de lá cheio de solfejos
e teorias novas. Apliquei-as e foi dando certo
até que assaltei, no maior sangue-frio,
um velhote e seu dinheiro me fez muito bem
mas o que ele me disse me marcou, me incomodou.
Ele falou nesse negócio de ser tão jovem
e simultaneamente tão vazio, coisas assim;
o sermão foi longo e o tabefe que dei no velho
expressava, hoje compreendo, um tapa no mundo,
no mundo que eu conhecia. Perguntou-me
sobre o que imaginava a respeito do bem, essa coisas
e aceitou altivamente minha ousadia.
No fundo, no fundo fui eu quem levou aquele tapa
e até hoje acho que o velho se deixou roubar...
por que? sei lá, só sei que daí dois, três
ou quatro anos, não estou certo, encontrei-o
e lhe devolvi seu dinheiro, com juros e tudo.
Mas não foi só esse velho, foi também aquele menino
que me olhando com um misto de inveja e orgulho
disse-me naquela praçã que gostaria de ser como eu...
Ser como eu, essa agora!...
O que realmente sou? acho que nem sou, pensei...
O pequeno marginal que vivia em mim
começou a morrer nessas passagens: o velho,
o menino, o medo da cana, tudo crescia
e tudo me empurrava para outro caminho,
um caminho que não trilhara e nem sonhara,
Banquei a coragem e meti a cara com vontade,
assaltei mais um, com a intenção
de começar nova vida, com outra base
mais sólida do que a primeira quando surgi
para preencher um espaco que,
se existia, nem precisava ser preenchido...
No assalto me dei mal e novamente fui preso...
O Juiz de Menores me repreendeu severamente
e acho que me enviaria para o Reformatório
não fora o que tentei lhe explicar.
Ele deixou-me e, com um pouco de relutância,
acreditou no que eu lhe dizia.
Daí em diante me orientou, se preocupou, me protegeu
me deu a chance e foi um pai para mim.
de minha parte fiz o possível para não decepcioná-lo!

Vejam como, com tal experiência, estou aqui
julgando outros menores, orientando-os,
já fui como eles e sei bem de seus azares
e por mais que me esforce não consigo
empurrá-los para um Reformatório
enquanto não o consigamos mudar
o fazendo instrumento de recuperação real e adjetiva;
real porque objetiva, adjetiva porque com amor.
Lutei, lutamos, mas estou desistindo,
desistindo de julgar por não concordar com o método de hoje
que continua sendo o mesmo de meu tempo.
O Reformatório precisa ser reformado
e não desisto de lutar por tal desiderato,
apenas sinto que materialmente nada posso fazer
e dessa forma chamo a atenção para o problema
com este gesto medido, calculado e, quem sabe, inútil,
um gesto considerado por muitos, possivelmente, tresloucado:
Solicito minha demissão do cargo vitalício
por ser incompatível meu dever
(o de mandá-los para o Reformatório)
com a justiça que creio justa e nobre.
Talvez não possa reformar o mundo, nem o Reformatório
mas tenho convicção, terei colaborado para chegar a tanto.
Adeus, a todos!

Ninguém

Sou um nexo sem causa ou efeito
E recebi as surradas teses filosóficas
Da humanidade, de uma só vez
Como recebera, nem embrião,
A herança genética de meus ascendentes.
Enquanto massa, não tenho face
Nem a perspectiva histórica
Que alimenta a ficção e a realidade;
Enquanto indivíduo não tenho massa suficiente
Para deter o que passa em sentido inverso
Ao meu destino. Não detenho nem a mim mesmo, creio.

As paisagens são sempre as mesmas
Para quem não consegue mudar os olhos
Nem a forma de olhar. Devido a isso,
Materializado no nada encontrei meu tudo
E transpus o impossível. O absurdo é que,
Apesar de reconhecer-me no vácuo,
Respiro o oxigênio da vida
E me alimento dele com a febre dos que creem
E vivo dele com o delírio dos viciados.

Todas as minhas mentiras se fundiram
E criaram essa verdade irreversível para mim:
Eu passo! ... Oxalá, não tenha sido tudo inútil!

Morte natural

Morreu como tanta gente
sem campos de batalha,
sem cama, sem palavras,
no anonimato.

Em troca das flores,
velas ou lágrimas,
comuns diante da morte,
ganhou o aparato policial,
a curiosidade popular
e a manchete do jornal.

Ele que pouco ousara
ter tempo de beijar os seus
beijou o asfalto à cem por hora.

Morreu como tanta gente,
no anonimato,
atropelado pelo progresso.

Reconhecimento

Olha para ti mesma,
o corpo ensina bem mais
do que compêndios ou enciclopédias.
Não fora a conjugação de esforços,
desde as mais simples células
aos mais complicados organismos,
por certo tu não existirias
a vida não existiria
e a comunicação, a convivência,
a descoberta, a participação,
não teriam essa vivência educativa
e eloqüente que teu corpo abriga.
Pior do que ser um nada
é sentir-se como um nada;
na verdade, somos tudo
porque somos a própria vida
e a partir daí, tudo é possível.
Olha para ti mesma... entendes agora?

Ponto e vírgula

Estava na rua
e a frase surrada dita pelo velho amigo
soava aos meus ouvidos antes como advertência
do que consolo; não te preocupes, dissera ele,
se uma porta se fecha, dez se abrirão.
A fixação era que aquela porta fechada
ainda há pouco presente, agora era passado
e as dez referidas sem a precisão matemática
representavam um futuro incerto e não sabido
escondido no mutismo próprio do futuro
todavia encravado em tantas vicissitudes
que rigorosamente escapavam ao meu domínio.
Analisei a situação, poder-se-ia dizer
que me encaminhava às férias tantas vezes negadas
mas não era essa espécie de férias que desejava
e nada mais injusto do que tal descanso.
Não era ponto final, isto eu sabia,
no máximo aquilo representava um ponto inconsequente
interrompendo uma frase quase período.
Era evidente que gostaria de minimizar o fato
dando-lhe a amplidão restrita de um ponto e vírgula.
E lá estava eu, na rua, enfrentando a busca de,
pelo menos conservar o status adquirido,
sabendo de antemão que entre a oferta e a procura
eu poderia oscilar na defasagem do tempo
e me reter demais na indecisão.

As grandes questões econômicas e políticas
continuavam a gastar as energias do meu País
e a minha questão, de mera sobrevivência
gastava a energia do meu e de outros corpos
próximos, além de muita sola de sapatos.
E o mundo repassa em minha retina e percepção
voltadas ao jornal de empregos,
estava na rua como tantos outros
e o ponto e vírgula quase significava
um obstáculo gramático de rara proporção...
E a minha questão se confundia com a questão
maior do meu país subdesenvolvido,
lá estava eu, com mil portas por abrir!...

Cata-vento

Resumia-se o outono no cair de folhas
e em tardes mornas, nada além.
Um dia, fez-se um pé de vento
e me colocou na estrada
e desde aí não parei mais.
Como redemoinho procuro meu epicentro
sem me livrar de tantas voltas
e percorro a vida como se esperando,
a cada instante, a calmaria.
Enquanto o sopro da esperança
empurra-me para a frente
o vento da decepção me estanca,
a brisa da moral me reanima.
Sigo em frente, ou ré, mas sigo
e por vezes tomo o rumo de todos os pontos cardeais
rodando pela cruz, sem destino ou abrigo,
sem encontro ou recado. Indo.
Tento multiplicar o pão sem o trigo
e apenas consigo o milagre de estar vivo
o que, apesar dos pesares, gosto muito
porque o inverno sei ao chegar resumir-se-á
em um fechar de olhos e em tardes frias,
nada além...

Inconsciência

Acorda que a vida aqui fora te chama!
Acorda, de qualquer forma terás o sono eterno e o drama
extingüir-se-á como um sopro de acaso.
Acorda, não te entregues a esse sono que te fará perder a consciência,
entrega-te ao amor que fará perder o ódio e o egoísmo.

Acorda, quero te ver desperta, acesa, desnuda de incógnitas,
descoberta para mim que não tenho o sono que te rouba,
descoberta para mim que não tenho o canto que te ganha,
descoberta para ti que deténs a alegria que me falta.

Acorda, estou esperando e já faz uma vida que espero
e, parece, teu sono é tanto que não te dás conta, enquanto dormes
o sonho mais lindo sou eu quem tenho.

Acorda, eu espero a tanto tempo...

Imaginação

Encontrara sua amada
após buscá-la inutilmente na realidade,
reduzida a uma fotografia antiga
em uma casa de antigüidades.

Aquele rosto fotografado
no alvorecer da arte fotográfica
espelhava a candura, a ingenuidade
que ele sonhara haver existido.

Apaixonado por àquela imagem
sabia que não a veria em carne e osso
mas acreditava que a encontraria
em um canto qualquer do infinito,
lá onde os mortais penetram
apenas com as asas da imaginação.

Um dia, após violenta tempestade
à sua frente fez-se o arco-íris
rapidamente alçou-se à estrada colorida
percorrendo-a em um sopro de vida.

Com a chave que não soube explicar
como viera ter às suas mãos,
abriu a porta do céu e encontrou sua amada.
A fotografia do início de um século
transmudara-se para aqueles braços
que o envolveram em sua paz e amor.

A cidade inteira, enquanto isso,
penalizada comentava que perdera
seu cidadão mais pitoresco:
um bom sujeito, louco e inofensivo
que amava, como se o ato de amar
por si só não fosse uma loucura,
amava uma fotografia!

O direito de estar só

Um dos gêmeos, revoltado resmungava;
o outro, mais humilde, permanecia quieto.
O primeiro estendeu-se comprimindo o outro
e tudo não passava de uma provocação.
Não estavam delimitadas suas áreas
e nem cabia acordo. Ao mais forte, tudo!

Enquanto se dilatava o ventre da mãe
um sugava o alimento, o outro a fome;
um o poder, o outro a servidão;
um a exuberância física, o acinte,
o outro a fraqueza, a humilhação;

E quando vieram ao mundo
ultrapassando o portal do indizível
o esfomeado engoliu o seu ódio,
o opulento engoliu seu orgulho
e mesmo assim conseguiram permanecerem sós.

Abortados, jamais viriam a saber
que repetiram em um ventre de mulher
o drama do ventre do mundo.

Sol posto

E cai a tarde assim
como a zombar de mim
mostrando o que perdi,
suspenso por um triz
o sol morre infeliz
como eu também morri.

E tanto encantamento
da dor, neste momento
registro a olho nu
e a cor da tarde calma
esvai-se como a alma
da tarde que foi tu.

Mas, amanhã é certo
o sol aceso, esperto,
inteiro e renascido
virá banhar de luz
a vida que seduz
a todos os sentidos.

Cá dentro meu sol posto
expulsa para o rosto
a noite em que estou,
nenhum sonho me diz
à frente o dia feliz
da tarde que voltou.

sábado, 20 de fevereiro de 2010

Poesia em preto e branco

Olha teu retrato refletido no vermelho
desses lábios
e a plenitude do mistério na escuridão
desses cabelos
e a alvura do silêncio transitando
nessa pele.

Olha o rumo e o tempo do vislumbre
desses olhos
e o mundo que repassa em rimas
nesses sentidos
levando em si o encantamento
desse corpo.

Olha a luz em contraposição
nesses labirintos
e a lucidez da fronte altaneira
nesse etéreo
formando a mulher no negro e branco
da poesia vida.

À luz dos caminhos nossos

Eu quero sufocar tua boca
em beijos mastigados, tontos
sugar, na carícia louca,
o sol deste reencontro.

Eu quero refazer o dia,
rasgada a loucura tanta,
em céus de estrela guia
no amor que comigo canta
e assim percorrer a vida
à luz dos caminhos nossos!

Eu quero engolir-te inteira
e sendo engolido tudo
fazer do infinito a esteira
do nós sem apelos surdos.

Eu quero explodir sementes
de sonhos em realidade amada
viver nosso presente,
matar esta dor cansada
e assim reviver, querida,
à luz dos caminhos nossos.

Mulher

E assim te vejo e sinto, carne e sonho
na lascívia do infinito chamado agora
e do fundo de teu olhar, toda a vida
e o desejo encontram a recíproca,
revisitados no canto deste despertar.

Tu mulher agora, bem mais que antes,
ao acordar explodindo em meus braços
não mais ouvirás murmúrios ou queixas
de coisas e risos não feitos
nem o lancinante grito de haver passado.

Ao acordar, o corpo dirá, enfim corpo
e o mundo será, enfim vida!
E nos teus lábios e nos teus olhos
a languidez de se saber enfim mulher
e, em mim, o infinito de ser o homem!

Lua cheia

Nem de perto sonhar
mas é noite de lua cheia
e a prata teima em ficar
no espanto da escuridão.

Pende em mim o acalanto que restou
preso em meus braços, entre meus passos
à lua cheia dos teus abraços.

Afago mistérios passeando-os ao léu
em céus que a escuridão desmente,
plenos de luas e estradas curvas
onde, por vezes sóis irrompem diletantes.

Atento, não me visto só de devaneios,
enquanto brilha fora um luar errante,
cá dentro, meu peito esmaga os teus seios.

Inverossímil

Andar entre andares, mudo
sendo a impressão do que se guarda
no fundo, ao buscar-se o tudo
lambuzado de sentir-se um nada.

E se viver nisso, no milagre
da alternância do incontrastável
explodindo a cheia que consagre
o impossível e o improvável.

E continuar entre os absurdos
(surdo a apelos, entre outros surdos)
colado ao pêndulo das horas
chegando e tendo de se ir embora.

Do paradoxo, na banalidade
do ser-não-ser desta eternidade
viver o agora é o grande prêmio
da loteria do passar efêmero.

E a música segue, algo diluída
entre harmônica e dissonante
nos infinitos presos aos instantes
indefinidos que chamamos vida.

Títeres

Antes, embala os rumos do agora
pela destreza dos ventos
e não te envergonhes de ser criança
eis que é duro deixar de sê-lo
e nada se acrescenta quando,
exceto que tudo se perde.
Não me julgues pior do que sou,
nem envenenes meu pecado
com o mal que não tenho.
As questões se bifurcam
desdobrando estradas e vias
sequer sonhadas ou queridas,
levando-nos aos mistérios
de amanhãs insuspeitados
e a presença do inusitado
determina, no bailado da vida,
a extensão do palco medido
nos milímetros da corda bamba.

Logo ali ... o inferno!

Eu não sei

Eu não sei se pensa em mim,
mas eu em você penso sim.
Eu não sei se sonha comigo
mas eu muito sonho consigo.
A flor nasce à vida? à morte?
O homem tem ou faz sua sorte?
Eu não sei e nem compreendo
a dor que sempre vou tendo.
Eu não sei, confesso não sei
se foi o bem ou o mal que dei,
se tudo o que tinha a dar
eu consegui ou não realizar.

Quem não sentiu no amor
um gosto amargo de dor?
Quem nesta vida que passa
não conheceu a desgraça?
Quem não deixou na esperança
um sonho sonhado em criança?
Eu não sei se existe a saudade,
se a vida em si é bondade.
Eu não sei se vivo ou se morro.
Eu não sei se páro ou corro.
Eu não sei se sou o que sou.
Eu não sei se fico ou se vou.
Estou perdido na vida, no nada,
não encontro saída ou entrada,
até o vento me consegue levar
e não sei onde e quando parar.

Eu não sei se sou Deus ou sou pó
Eu só sei que me sinto táo só.

Lume

Não tenho medo de morrer!
Tenho medo de não viver!
Eis o pecado que não quero
na ânsia do ser e do que espero
deixar escorrer entre os meus dedos
o agora desta vida que vai cedo!

Viver e estar vivo são diferentes
sem ser conflitantes:
Estar vivo é significativo!
Viver é significante!

Pingos de céu

Chovia.
A chuva açoitava,
com grossos pingos,
a vidraça da janela.
Um pingo
correu celeremente
em toda a extensão
do vidro frio ...
Perdeu-se no anonimato.
Outro pingo
recebeu companhia,
cintilou, reviveu
provou que, ainda,
dois é mais que um.

Tantos pingos,
alguns sós
outros acompanhados,
descendo açodados
a vidraça impessoal
para reunirem-se
na esquadria,
para perderem
a forma,
a individualidade
em holocausto ao todo,
ao infinito.

A humanidade é pingo
na vidraça do mundo.
A vida é a janela
para a eternidade.
Quantos pingos
correm celeremente
e se perdem
no anonimato?
Pingos desiguais
no formato
mas, no fundo
igualados
pela procedência,
todos irmãos da razão.
Pingos sós
e acompanhados
marchando
na lividez do tempo.

E, após percorrida
a vidraça impessoal,
chegar à esquadria
não importará o porte
e sim a substância
sem ânsia, na morte
da matéria
o nascer para a vida
que é o destino,
uma célula apenas,
do Universo divino.

Acidente

Um carro em alta
na rua baixa
canta pneu ...

Um baque surdo
bradou bem alto
o que ocorreu ...

Um corpo rola
como uma bola
cheia de adeus ...

E o carro em alta
na rua baixa
sangra pneu ...

Diálogo

"- Cada passo é um passo
rumo ao tudo ou ao nada;
cada finta é uma deixa
de todas as queixas
ou de contos de fada;
cada gesto um abraço
ou um triste rechaço
de alguém em alguém;
cada seio é um regaço
de quem vai ou quem vem."

"- O que sabes da origem dos mundos?
do como, do porquê do profundo
filosofar que te envolve e tantas vezes te cala?
Anda, brinda com tua fala, desenvolves o brilho
no ouvinte zeloso que embora orgulhoso
de ver o filho com tantas opiniões,
sem querer uma polêmica lembra-lhe
que há situações em que a lógica acadêmica
com aparente razão não nos deixa sentir
importantes mensagens vindas de nossos corações.

Por isso pergunto o que sabes de tua própria origem?
Que sabes dessa coisa gozada, engraçada, indolor
para alguns e tão complicada chamada Amor?"

"- Pai o amor é ..."

"- Não, não tentes defini-lo porque de um mortal
Ele não merece uma definição; tente senti-lo,
apenas senti-lo, é nossa mais humana ação;
talvez não descubras a origem dos mundos,
mas descobrirás tua própria origem
e analisando mais fundo verás que o nada
só existe onde falta o Amor!"

"- Puxa, pai, o filósofo era eu assim eu pensava,
mas você ..."

"- Sei disso filho, mas vê um filósofo sem amor
é uma casa sem vida, é a noite de um dia.
Para que não seja vã tua filosofia,
não seja pagã, nem noite de um dia,
meu filho, jamais esqueça:
some o coração à cabeça!"

"- Obrigado, meu Velho,
cada passo é um passo rumo ao tudo,
cada finta é uma deixa de todas as queixas,
cada gesto, um abraço de alguém em alguém,
cada seio um regaço de quem vem e não vai!".

Diretriz

Quebra a estrutura do não
e repete o prodígio do som
nos lábios de tua aurora.

Não te prendas no ontem
eis que teu amanhã é
e o vento acaricia teus passos.

E o rumo é o sempre!

Basta de improvisos e improvisar-te
sendo antes o que não és,
depois o que não foste.

Identifica-te no rimar dos sonhos
e na busca da realidade
sendo hoje o que mereces.

Quebra a estrutura do não
e repete o prodígio do sempre!

Do ponto de vista do criminoso ocasional

Sinto o peso do mundo sobre mim,
pesa-me uma vida mais que a morte.
Tudo se conjugou para o resultado
que extingüiu o sonho, extripou a força
e, sem ânimo, prostou a realidade.
Vertiginosamente ruiu a fé, o poder
e me vi impotente diante de um corpo.
Só e fraco, vazio e torpe, vi meu ego
retratado em tantos monstros.

Instrumento, causa ou conseqüência,
não importa, fui cada uma das coisas
ou adjetivos, todas elas, tudo.

Interrompi uma trajetória, uma luz
que não era a minha e, mesmo que fosse,
não tinha tal direito. A partir daí
fez-se tarde, falta, fardo e medo
fez-se ausência de quem nunca tive.
Fui o epílogo inesperado e algoz
inserindo em meu próprio livro
o amargo capítulo de minha culpa
e a certeza triste de não haver desculpa.

Continuarei a caminhada, a dois,
levando minha vítima comigo,
eu também vítima do meu passado.

Rota

Estrela cadente
que engana o viajante
que busca no céu
os caminhos da terra,
os caminhos da vida,
os caminhos da luta,
os caminhos da sorte,
estrela caída
de uma quimera.

Estrela cadente,
ideal de ventura
que vi e vivi
em dois olhos morenos ...

Lenda da geada

Na noite tão linda
Vestida de prata
Caiu o orvalho em forma de pranto
E toda de branco minha pampa adornou
E a noite de prata mais prata ficou.

Piazito eu era vovô desvendava
Os mistérios do mundo p'ro neto guri
De todos os contos o mais lindo que ouvi
Dizia que a geada era um choro gelado
De um qüera que há muito tempo atrás
Foi tropear o Cruzeiro do Sul.

E apesar da beleza do campo celeste
Do fulgor, da magia de sua tropilha
Por vezes retorna em sua retina
A imagem saudosa do pago terrestre

E quando ele chora o rebanho acompanha
De tanta tristeza que a tudo resfria
Parando o minuano na noite que é dia ...

E quando geava, vovô repetia
O qüera de novo da pampa lembrou
e a paz do seu pranto a pampa abraçou...

O minuano murmura no ventre da terra
Enquanto ele chora a saudade incontida
Cantigas de inverno, história que encerra
A alma gaúcha no cíclo da vida.

De óculos escuros

Hoje, estou a olhar o mundo de óculos escuros
e vejo tudo cinza...
Desanimo ante a perspectiva de enfrentar meu dia
e a natureza contribui para esse desânio,
está quente, grave, abafado.
Apesar disso tenho de fazer o que faço sempre
agir no mesmo diapasão
e dedilhar o conhecidissimo teclado
da velha máquina de escrever,
cair na mesma rotina cheirando a mofo.

Quando menino colori meus óculos de cor-de-rosa,
depois várias cores alternaram-se nas lentes
exceto a rosa que, agora sei, não mais virá.
Ao verde da adolescência sucederam o vermelho,
o amarelo, o lilás e este cinza que me cerca
e me força a usá-lo cada vez mais
mantendo-o, possivelmente como símbolo
do azedume recolhido ao interior de meu ego
durante minha própria campanha na vida.

Espero que minha decadência física,
amanhã, seja minha ascendência moral
e possa cobrir de branco o contúedo inócuo
trazido nas lentes da reminiscência.

Por enquanto e pelo menos, hoje,
estou olhando o mundo de óculos escuros
e posso afirmar, com toda a certeza,
não há beleza no que vejo!

Mutante

Sou tão velho quanto o tempo
e tão novo quanto a eternidade.
Não sou a medida cronológica
que querem me atribuir;
não me divido em partes
sou um todo! E com essa responsabilidade
a cada instante me renovo,
me transformo em mais eu mesmo.

A todo instante me submeto
ao teste de viver; renasco
em cada esperança, após morrer
em cada decepção; com isto,
sou velho e moço, simultaneamente
e misturo minha finitude
com o infinito de minha própria extensão.
Eu!

Andorinha

Eu fui um súdito
de sua beleza,
eu fui certeza
de seu amor
e caminhei
sob a leveza
sem ter tristezas
por seu amor.

Hoje, aceito
dentro do peito
esta saudade
e a solidão,
qual andorinha
você partiu
p'rá ser rainha
n'outro verão.

Forças

Arrombaram sua intimidade
e retiraram o hímen de sua fé e força.
Desnaturada manhã em que o sol não veio
e o sonho trombou com a realidade.

Estava ali, tresloucada, deteriorada,
como gente sem adjetivos, fria e chuvosa ...
Conhecera a fome material, imaterial,
a fome de tudo. Era carente de si mesma.

Aquela água passava sob a ponte,
quisera ser ponte mas se confundiu tanto
com águas passadas... as esperadas nunca vieram.

O rio a chamava, a vida lhe fugia
em meio a ficção que revestira sua brisa.
Agora tudo era iminente e sujo e fraco ...

A cabeça, o pensamento, a empurravam:
Passa da ponte à água e tudo será passado,
molha o corpo apaga a idéia. Descansa, enfim!

O mundo passando pela ponte, apressado, problematizado,
se enfrentando, dilapidado, indo.
O corpo inerte, fraco, ali permanecia quieto,
cabeça e pensamento revoando sobre as águas
que, mansas, pareciam dizer "Vem! ... Vem!" ...

De repente, dentro de si o chamado à vida, à luz.
Passado o êxtase do desencanto, atrelou-se ao sol,
lá adiante a vida continuava distante e alegre,
triste e presente. Rindo. Chorando. Vida!

Ponte e estrada aceitou o convite
e se perdeu na multidão.
A fé se revigorara na dor solitária e aguda do desespero!

No espelho

Tu que me falas desse modo
com a autoridade da aparência
e, na essência, te manténs indiferente
nesta estampa que deténs: Nada és!
E me informas: Nada sou também!

Do espelho, essa imagem me provoca
e desloca à estampa envelhecida,
os pesares que os anos a cercaram.

E assim, muda, falas e me espantas
dançando impune na frieza do aço
escancarando essências transparentes.

Tu, oposto e aparente, percorres o fio
da existência que passa ao largo
em vicissitudes que os fulcros mostram.

Tu em mudança, o eu que está agora,
o eu chegado do que tu demonstras,
aparentemente, em verdade, aparentemente...

Desilusão

Eu o forte.
Nada vendo em teus olhos,
vi além, o reflexo dos meus.
E me enganei!

O espelho assim me trouxe
ilusão e o irreal.

E sózinho amei,
inventei
e arrebentei de nada.
Eu o forte. Eu meu nada!

Enquanto me amas

Enquanto me amas
eu sou a essência e a substância
do sonho.

Enquanto me amas
a saudade fica de fora
e o vazio se ausenta.

Só tu existes. Só tu és mundo.
Eu vivo o doce de teu beijo
e o linguajar sublime
do teu corpo.

Enquanto me amas
eu sou o amor
e nós, o infinito!

Bolinha de Vidro

Novinha, a bolinha de vidro era usada alegre,
Batida, estalada, entre as bolinhas
Companheiras ou inimigas
Das mãos do menino às mãos do acaso era jogada
De tanto usada, de tanto batida, acabou lascada,
Jogada, esquecida, na lata do lixo.
Da lata do lixo para o lixo da terra
E lá se vai o tempo, não se vai a espera.

Enfim, chega um dia, improvisado
No menino usado que revolve o lixo
Buscando o alimento, o brinquedo, o quem sabe
E descobre a bolinha de vidro lascada e sua.

Usada de novo, batida estalada,
Lá vai a bolinha , nas mãos do menino,
Feliz o menino, nas mãos a bolinha
Que se refazia no cíclo da história.

E o cíclo se fecha. A bolinha de vidro
fragmenta-se e pronto, mas não perde o encanto:
Reflete colorido o sol
Que, atrevido, a possui sobre o lixo.

ELIPSES

E assim a força centrífuga me atinge e o mundo roda
E a roda sou eu...Em nada sei e penso.

Embora o receio e a curva,
Sigo empurrado e sacudido por sonhos
E o sonho sou...Em tudo sei, o escuro...

E o remoinho dos passantes e certezas
Aderem-se ao menino
E o menino sou, de espirais incertos.

E perplexo, consigo o nada e o tudo
Inventando a vida
E a vida sou, desfolhando cinzas.

E rodo à curva, o tempo corre
E movo o novo do infinito hoje
E o hoje sou, em amanhãs que tenho...

E o mundo meu se chama enigma
E rasga o antes e o depois
E o antes e o depois sou, em mim o espaço
Como tempero de todos os meus tempos
Que este tempo urde
A curva próxima espera-me em seu todo
De recriar mistérios ao menino moço...

MONÓLOGO

Neste jeito de conversa
Bota a tristeza na mesa,
Não reduz o teu talento
E dispara teus momentos.
Solta a língua com vontade
Contrariando este recato
Que manténs por conveniência
Diante da auto censura
E te afasta da mesura
Que te envolve como ciência
Levando o teu evento
Ser apenas marco chato
De um mesmo cotidiano
Que repete este teu dia
Transformado em teus anos
Tudo igual sem consequência.

Neste jeito de conversa
Bota a saudade no bolso,
A estrada em tua mão,
O teu eu em teu retrato
E te despe e te refaz
Sem ser tema nem parágrafo,
Fala o quanto tu quiseres
De escutar estás morrendo...

Fala que eu estou te escutando
E não sou a tua consciência
E não sou o teu passado
E não sou o teu momento
E não sou o teu não sei...

Fala que eu sou o vento
Sou tão forte e tão vazio,
Sou o céu que nada escuta
Sou a estrela que iludiu...
Quem afirma que caiu...
Sou a cama que te abraça
Sou o sono que te envolve
Sou a lágrima que é graça
Que ao riso te descobre.

Bota a tristeza na mesa,
A esperança em teu rosto
E sorri para o teu jeito,
Para o jeito do teu mundo
E compreenderás que o tudo
Não existe sem o nada!

Fala tudo que te escuto,
Sou a tua alvorada
Que escapou de tua noite
E vem brincar em teu dia,
Na magia do vermelho
Desses olhos ora inchados
Pela chuva do passado.
Neste jeito de conversa
Manda a tristeza à mesa
E teu tempo será o outro
Fala tudo que quiseres,
Solta a mágoa para o mundo
E teu tempo será outro...

quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

CAMINHADA

Venho de longe, de viagens repetidas
resultante que sou de vindas e idas.
Chego onde o braço me alcança
e a criança que fui torna-se adulta.
Não trago migalhas ou vetos,
nem portas ocultas ou gestos de nada,
sou apenas minha própria história
de pureza entretida e pecado formal.

Sou um pouco distante do tempo de espera
e agito o vernáculo na ânsia de ser ouvido,
rebatizando o cotidiano na fé e na força,
trazendo o inusitado como incerteza.
Venho do meio da plebe, assumindo os riscos
dos tempos verdades, etapas concretas e rimas.
Sem prevenções, não me visto de alegorias
que não a do pão, do circo e da vida.

Venho e continuo vindo como tudo que passa.
Olho a destreza do sonho e da realidade
vagando em meio às minhas tormentas.
Sou parte, jeito, antídoto e veneno
sou todo e todo me entrego, me abro, me fecho,
caminhando meu rumo, no rumo de tantos.
Sou o que sou, o que fui e serei,
venho e continuo vindo como tudo que passa...

Pedido

Não quero ser resposta de tudo
nem metrificar o infinito,
antes quero transitar o verde
e viver o simples. Só isso.
Para que mistérios e sofismas
se a vida é gratuita?
De que vale o brilho, se cega
e afasta os outros de mim?

Não quero ser mito, nem mitificar-me,
antes quero ser eu, e viver-me.
Para que mistérios e sofismas
se o amor é gratuito?
De que vale o ódio, se corrói
e expulsa a luz de mim?
Não quero ser o só de agora,
sem a fantasia do tudo adiante.

Requiem para Ezolda

Quisera ser doçura
pintar de cor-de-rosa
toda esta amargura
estampada, dolorosa...

Mas, que dizer enfim
senão banalidades
a dor desta verdade
dilacera tudo em mim.

Quando um coração pára
calam-se as palavras
e a chuva da saudade
irriga a realidade.

É um sonho que termina
na vida que se vai,
silêncio que alucina
no frio do nunca mais...

Mas que fazer enfim
senão juntar momentos
guardá-los aqui dentro
e continuar tua vida em mim!

Adeus

Vai,
caminha na abscissa do tempo
e na vertical da vida
da resultante faça a tua extensão.
Ascende-te ao firmamento,
porém nao tentes esquecer
que na horizontal
viveste e viverás
teus melhores momentos.
Anda ordenada,
na desordenada devassidão
do deus social,
não esqueças o bem,
não penses no mal.
Prove o tempero da distância
ou a ânsia da volta,
não lastimes a espera,
mantenha o otimismo,
pois o sal usado no batismo
dá a pureza,
o usado na vida, o mérito.
Delicia-te com a doçura do reencontro
ou do descobrimento.
Vai,
o teu passado tornará
na curva do caminho
e o teu futuro é a incognita
da perfeita equação
que é a tua (a minha) vida
e que enjeita a solução
barata ou incoerente.
Anda durante, pelo menos,
um segundo na felicidade
ilimitada e terás vivido bem mais
do que muitos pensam tê-lo feito.
Não mudes porque as coisas mudam
e sim pela necessidade, pela procura
da autenticidade. Não sejas poliédrica,
mantenhas uma face!
Tente sempre a perfeição
embora ela seja também, imperfeita
por nao dar nenhuma chance
a qualquer de nós alcançá-la.
Busque o amor sem explicá-lo,
o perdão sem defini-lo. Se possivel,
busque o prazer de viver
sem a passividade dos fracos,
com a vitalidade dos fortes,
todavia evite exageros
- os extremos são perigosos.
Se acreditares, siga para o norte,
apesar de te apontarem o sul.
Ajudar a quem sofre é uma forma
de evitar a própria dor,
mas se ela teimar em conviver em ti,
abriga-a como uma dádiva,
ela será a chuva que regará
o teu jardim, revigorará tua crença
e reflorescerá tuas cinzas.
Vai,
a despedida não existe
quando levas de mim uma lembrança
deixando de ti, esta saudade.