sábado, 8 de fevereiro de 2020

UM CONTO DO MOLEQUE - O IMPOSTO INFALÍVEL


Em uma aldeia perdida no tempo e na geografia, quem sabe na Andaluzia ou na região de Castela ao tempo e ainda sob o comando da grande Rainha Isabel, surgiu um valente e astuto cavaleiro de nome ou apelido Pinho que, sem muito esforço é verdade, porém com muita lábia, logo se tornou conhecido e, também por sua grande aptidão à doma e notável esperteza, desde então exercia respeitável liderança. Daí, foi só um pequeno pulo e lá estava ele tomando o poder municipal, transformando tal aldeia em seu pequeno reinado; seu poder atingiu descomunal tamanho que sequer o Cura, grande voz e autoridade eclesiástica da aldeia, conseguiu refreá-lo, ou contê-lo, ou enfrentá-lo, submetendo-se ao mesmo, aliás como todos os demais que de uma forma ou outra obtiveram migalhas como benesses, farelo do bolo que só o Pinho tinha acesso e fruição e do qual distribuía fatias aos filhos e outros mais chegados.

O Alcaide, como se auto definia com relação ao exercício do poder municipal, convenceu a todos que para alegria e satisfação dos cidadãos, era necessária a contribuição de todos à arrecadação, panaceia da igualdade quanto a distribuição dos benefícios que resultariam de tanto, sem distinção de qualquer natureza; parecido ao lema dos “Três Mosqueteiros”, que surgiria bem adiante dessa época, criou o lema “todos, por todos” dando uma dimensão ou conotação sem igual na questão tão cara a tantos que presumem igualdade entre os seres humanos mesmo quando a realidade impõe revisão do falacioso conceito, pois às escancaras os sabemos diferentes entre si, sendo que, por paradoxal que seja, os seres humanos são iguais apenas em suas desigualdades (é inquestionável que todos temos defeitos e virtudes, todavia estes por sua vez e aqui está o que nos diferencia, são diferentes e cada uma pessoa tem sua própria digital a respeito). Ponto para o esperto Alcaide Pinho que, servindo-se dessa aptidão que quase todos têm de se deixar iludir pela facilidade da acomodação, focando sem olhar ou considerar o contexto, deitou e rolou criando condições para arrecadar mais e mais, inclusive mediante fraudulentos contratos com grandes empresas, enchendo as burras do seu bolso e destinando, para não levantar suspeitas, nacos de “cala-te boca” para os “chegados” sem esquecer de, também, destinar um pouquinho do arrecadado para o tesouro municipal que, como tudo o mais, estava sob seu imperial comando.

Durante um largo tempo tudo funcionou bem, pelo menos para o líder e seus sequazes eis que o povo em geral demorava a perceber ou sentir os efeitos de seu empobrecimento precoce, sem receber contrapartida, serviços de qualidade cada vez mais precária, aos poucos dando-se conta que os seguidores e adoradores do Alcaide, ganhavam as melhores “bocas” sem terem um mínimo de competência para geri-las e, pensando apenas no ganho fácil, força e prestígio que usufruíam, sabiam-se isentos de qualquer punição pelo menos enquanto mantivessem a devoção àquele que era um incapaz, ignorante, exceto no enorme carisma que cultuava e se sabia possuidor... disso tudo decorria desqualificação dos serviços públicos. O que esperar se Pinho era um desqualificado, até mesmo moralmente falando, mas de um encantamento diabólico, próprio dos animais peçonhentos como uma naja., senão que a meritocracia fosse para o espaço e nada medisse nos efeitos reais para benefícios do povo como um todo, por isso, muitos pagavam para poucos privilegiados usufruírem. Retorno: é claro, nenhum, só “papo furado”, conversa fiada, sem base ou realidade.

Mas, como tudo na vida se acaba, até a própria, a luz daquela escuridão (permitam-me a blague) também começou a definhar, empalidecer; as despesas desde muito já superavam a arrecadação, os cofres públicos começavam a ser raspados, o mês tinha menos de trinta dias para as despesas e noventa para a arrecadação, o caos se avizinhava ou já estava instalado; não sobrava nada para investir nem mesmo para o bolso do governante. O líder, então, desperto de seu longo sono em que mergulhara na corrupção e outros quesitos, exigiu soluções aos seus comparsas enquanto oferecia alguns deles ao holocausto de pagarem os malfeitos feitos, a si assegurando os bem-feitos, nem tantos, feitos... Todas as soluções apresentadas eram pífias como pífios sempre foram seus escolhidos... Conselhos de cortes às despesas (ninguém oferecia sua carne para cortar e como sempre neste tipo de sociedade, indicava a carne dos outros), e em esmagadora maioria, dos sem criatividade, aconselharam fosse criado um novo imposto. Mais um... qual?... O que?... como?... se a malha ou saco sem fundo dos impostos já estava saturada, não cabia mais um... E o povo, o que diria o povo a respeito... Tal preocupação não era verdadeira, o povo que se lixe...

O tempo disparava (não se sabe bem ao certo, todavia, é sempre assim, quando a água sobe encobre com maior rapidez ao pobre e esfarrapado afogado e a reação deste é imprevisível), nenhuma solução havia sido encontrada. O líder então, detentor da sagacidade própria de sua esperteza, buscou no fundo desta a solução mais simples e sempre praticada ou tentada praticar por dirigentes de pouca inteligência (há que se considerar a infinita distância entre esperteza, praxe do Alcaide que egoisticamente visa benefício próprio e quase sempre com um pé no delito, e a inteligência cuja pratica exige inicialmente honestidade, depois estudo, cultura, planejamento, objetivo sadio que resulte em benefício de todo e qualquer ser vivo, da natureza, etc.), qual seja, a criação de um novo imposto cuja totalização aumentasse consideravelmente a arrecadação, por isso, atingisse a todos, inclusive crianças (por elas respondendo seus responsáveis legais). Falando ao conselho reunido, ao líder foi perguntado que imposto seria este já que todos estavam sendo utilizados, e saturado o mercado inerente? Ousaram alguns a, na mesma reunião, emendarem propostas, com todos as ressalvas e mesuras nunca negadas ao supremo líder, quem sabe não seria a hora de taxar as grandes fortunas distendendo-se em favor dos mais pobres (a grande e infinita maioria), os donos de todas as riquezas (ínfima minoria que detém a quase totalidade dos bens materiais da aldeia), os grandes capitalistas, esquecidos que, o líder tinha ascendido a tal condição no exercício do poder e que, a esta altura, já era um daqueles e, nunca, em tempo algum, aqueles afortunados de raiz e isentos de qualquer taxação fiscal, tiveram tantas benesses e cresceram tanto quanto na gestão do agora milionário Pinho; claro que foi tiro n'água ou no pé, como queiram! Todavia, de nada adiantaria a intempestiva peroração desde que Pinho trazia a solução que segue e que deveriam aprovar sem ressalvas: o novo imposto seria sobre o Cuspe! Sem discussão! Decisão tomada, decisão a ser cumprida, sem outra alternativa!

Todo cidadão seria penalizado ao cuspir fosse no chão, na rua, nos bares e restaurantes ou até mesmo em sua própria casa, recebendo mensalmente a conta/tarifa disso decorrente cujo prazo para pagamento era estipulado até o dia dez do mês subsequente à cuspida. O controle de tanto era efetuado originalmente por agentes municipais contratados especialmente para isso, todavia, poderia ser denunciado o cuspidor por qualquer pessoa que tivesse presenciado a cuspida, independentemente de raça, cor, credo ou casta social, cabendo ao denunciante, por isso, habilitar-se à inscrição no quadro mor respectivo, de contagem de denúncias, cuja apuração ou totalização, obedecida a tabela própria, gerava bônus ou ganhos. Claro que ganhou imensurável força a turma dos denunciantes, cuja palavra era muito superior a dos denunciados que necessitavam provar não terem cuspidos enquanto àqueles bastava denunciar; em pouco tempo, os denunciantes não contratados como funcionários municipais tornaram estes obsoletos o que serviu como argumento a desnecessidade e demissão deles.

Ocorre que, diante de tudo isso, imperou a confusão e caos, eis que os denunciantes, em antropofagia deletéria e histérica, começaram a apontar suas baterias uns contras os outros e em pouco tempo todos estavam devendo tal imposto e todos também tinham bônus ou ganhos e, confrontando tudo, nada sobrava aos cofres públicos desde que e de novo a arrecadação estancara porque, segundo constava o povo parara de cuspir, continuando o avassalador crescimento das despesas e a consequente diferença entre um e outro crescendo geometricamente. Pior ainda do que tudo isso, o próprio povo começou “desconfiar” que algo não estava indo bem e que o líder Pinho e seus comparsas, até agora isentos do incrível imposto, também deveriam ser tributados, vindo à tona as histórias repassadas à boca pequena, de que o líder nada mais era do que um reles ladrão, era só olhar seu histórico de cavaleiro sem cavalo quando chegou e agora com manadas e manadas de cavalos e outros bichos, fazendas, sítios, fortuna imensurável, etc, ele e muitos de seu familiares, amigos e amantes, milionários e em pleno exercício de uma vida de prazeres sem igual... Era preciso agir e rápido...

Assim e novamente, em meio ao caos e desconforto de uma economia em frangalhos o esperto Alcaide tirou do alforje ou coelho, uma cartola mais poderosa do que a primeira, a do cuspe externo, agora taxando o cuspe interno desde que, ao parar de cuspir para não pagar o imposto referente certamente o povo começou a engolir a saliva o que significava, concluiu, cuspir para dentro, por isso, continuava cuspindo agora em direção oposta o que não queria dizer nada pois o essencial é que o ato de cuspir continuava, portanto... O difícil controle para efeitos de estipulação da taxação é que inicialmente criou pequeno embaraço, pequeno porquanto do mesmo coelho saiu uma nova cartola que simplificou tudo extinguindo a turma dos denunciantes independentes e os já extintos e desnecessários cargos públicos exercidos pelos fiscais do cuspe. Devido a falta de condições para controle do cuspe interno ou melhor dizendo, do engolir a saliva a partir daí, independentemente flagrados em de cuspir ou não, todos os cidadãos pagariam o equivalente a média que abalizados estudos determinara, isto é, duas cusparada por dia formando débito fiscal de 1,00/dia, pois cada cusparada teve seu custo orçado em cinquenta centavos o que, ao final de cada mês representava 1,00 X número de dias do mês considerado (30 ou 31 e 28 do mês de fevereiro que, nos anos bissextos, tem 29 dias).

Publicada, de imediato a lei passou a vigorar, eis que não tinha essa história de legislar sobre impostos em um ano com a aplicabilidade a partir do próximo, isso era luxo de regimes democráticos que nunca passara por lá. Todavia, diante dessa atitude, a revolta do povo, tal como a imediata aplicabilidade dada à indecorosa lei, foi instantânea e avassaladora, de tal ordem que os distúrbios não cessaram e duraram muitos dias, até que essa maioria silenciosa que tudo aceita e pela acomodação parece não existir, tomou as rédeas do poder, expulsando o Alcaide, o cavaleiro que não tinha cavalo e agora era dono de manadas e manadas deles e de outros bichos, terras, joias, ouro e móveis, colocando-o sob julgamento judicial, como também seus seguidores e, mais do que puni-los com a cadeia, que mereceram pegar, os obrigaram a devolver todos os bens materiais obtidos através da corrupção e desmandos que, como todo malfeitor, pensavam jamais seriam alcançados ou penalizados. Acredita-se que a devolução de furtos e roubos cometidos pela canalhada que usou e abusou do poder vivenciado pela esperteza e carisma de um delinquente, foi o que causou maior sofrimento àqueles embusteiros; vergonha ou arrependimento pelos malfeitos jamais tiveram e a questão da perda da liberdade bem o sabiam seria temporária... o real, eficiente, justo castigo foi a perda, devolução integral, dos bens materiais adquiridos à larga pela corrupção passiva exercida às custas de toda a comunidade, lamentando-se, apenas, não ter sido possível encontrar uma forma deles devolverem a boa vida que levaram enquanto descaradamente assaltavam o erário em detrimento e prejuízo de todos os infelizes idiotas, integrantes da maioria silenciosa que dorme o sono dos insensatos ou da inanição, que assim permitiram houvesse sido...


OBSERVAÇÃO: Queremos deixar claro que o continho ora apresentado, em sua essência, quer dizer, no que se refere aos impostos objeto da sanha arrecadatória do Alcaide Pinho, mais a corrupção que pautou sua vida e a de seus seguidores, bem como a punição pela devolução de todo o produto do furto, roubo, corrupção, etc., foram escritos pelo Moleque enquanto guri por insistência do Professor Ledur, de Latim e de Português, no Colégio Estadual Dom Hermeto, de Uruguaiana, a quem foi apresentado, valendo nota, ao final da década de l950 . Agora, o continho foi, digamos, aperfeiçoado na ordenação de frases, no português e, pelo menos, em alguns dados nele contidos que, por força da passagem do tempo e da não conservação por escrito do mesmo, fugiram da memória, sem contudo, inová-lo ou alterá-lo, mantido conforme foi imaginado e escrito, então, pelo moleque. Registre-se, ainda, que, pela proximidade e convívio com a culta Argentina, a difusão da cultura e história espanhola deu-se com maior intensidade, inclusive cultuando-se a liderança exercida por Isabel, rainha de Castela, casada com Fernando de Aragão, na expulsão dos árabes que ocupavam parte da Espanha, na sua inabalável fé cristã, católica devota da Virgem Maria que era e, principalmente, pela decisiva atuação à descoberta da América pelo genovês Cristovão Colombo. Itagiba José , fev/2020.