quarta-feira, 22 de dezembro de 2021

GARATUJAS

Manhã de calor, sol intenso, céu límpido / Pintado de garatujas brancas, muito brilho, / Que trazem à memória aquelas, do olimpo / Da infância de crianças, dos meus filhos / Pintando paredes da casa e fugindo / Para o abrigo do pai, com a mãe rugindo. // Agora, nesta quadra da existência às repenso, / Minha memória, nem tão manhã ou sol intenso, / Nem tão céu, pintada de garatujas acumuladas / Nem tão brancas, já sem brilho, repousadas / Na parede do passado onde busco meu refúgio / Na contramão do ontem, no abrigo dos meus filhos.

quarta-feira, 24 de novembro de 2021

DOWN

Arre! Eu sou um todo poderoso de "araque" / Herói de "gibis", de almanaque, / Que me perco em minhas próprias entranhas / Sem me dar conta que recontadas façanhas / São mentiras que a ilusão e a vaidade / Inventaram e penso ser verdade. / Arre! sou um nada à esquerda do nada, / Inflado de frivolidade e conversa fiada, / Batizadas no vácuo da inexistência, / Vazia forma de vestir a consciência / No traje roto, no traje desbotado, / Do inseto amorfo ao inseto despojado! / Arre! Enfim desenho como última desculpa / Vendo-me como humano, vítima dessa culpa / De me perder na maluquice de estar vivo / Enquanto aos poucos morro, enquanto sigo / Pelo labirinto da Creta que em mim habita / Sabendo, logo ali a escuridão da cripta.

segunda-feira, 15 de novembro de 2021

OUTRA DO MOLEQUE - REPORTER ISSO/A TESTEMUNHA OCULAR DISSO


O amigo do Moleque, o Guirland, não fora ao Colégio sabe-se lá porque. Ao sinal do início do recreio e a debandada de todos ao pátio de escola, exceto o Moleque que, como era do costume seu e de seu amigo, ficou na sala para realizar, desta vez sozinho, a troca do material escolar de cada colega, de uma para outra “carteira” ou “classe” de forma a provocar a hilária confusão pós recreio, que atrasava o reinício dessa aula com aquela balbúrdia do “onde está meu material, este não é meu, é do fulano ou da fulana”; por sua vez os fulanos e as fulanas também procuravam seu material e dissimulando, também o Moleque que quase sempre trocava seu material escolar, adivinhe com quem, claro, com o amigo Guirland. Essa espécie de jogo ou brincadeira podia não ser muito aconselhável, todavia, tinha o componente pueril da pura molecagem que a sustentava e derrubava possíveis interpretações puristas de terceiros que, parece, nunca tinham sido moleques, e viam nisso maldades que só eles portavam no coração e na alma. Por tê-las praticado o Moleque inúmeras vezes teve que comparecer perante D. Marília, a Secretária do Colégio, responsável pela disciplina e quase sempre advertido verbalmente e, mais raramente, por escrito para que não mais às repetisse. Ocorre que, nas vezes em que foi vigiado, aconteceram as “trocas” de materiais, com isso sendo “limpada” a ficha do Moleque e criando dúvidas sobre se realmente ele alguma vez protagonizara o ato; o aforisma “In dúbio, pro mísero” aplicado não com uma certa desconfiança todavia com visível prazer por D. Marília em favor do Moleque o salvou da aplicação de penas mais severas.

Abra-se parêntesis para dar o indicativo inicial ao sub-título supra. Na esquina do Colégio, pela Rua Flores da Cunha, se localizava um Posto de Combustível, “Posto Esso” marca petrolífera muito conhecida então e que patrocinava o mais famoso e acreditado programa radiofônico, de notícias, o “Reporter Esso” que era anunciado por uma cortina musical reconhecida até pelas criança menores de dois anos, seguida pela voz grave do famosíssimo locutor (“locutouro” pela gozação da gurizada ou speaker que os uruguaianenses entediam dar a sofistificação desejável), com o som irradiado a milhares de decibéis nos alto-falantes dos Postos Esso, inclusive naquele da esquina da Rua Flores da Cunha, próximo ao Colégio, em horários regularmente estipulados.

Feche-se o parêntesis e voltemos ao solitário Moleque preparando-se à azáfama pré-concebida da “troca de materiais”, antecipando-se ao gozo malicioso do transcurso do evento decorrente da brincadeira e algaravia resultante. Nesse momento, porém irrompe dentro da sala o inconfundível som da cortina musical do programa trazendo o inusitado de uma notícia extraordinária: “No ar, o Reporter Esso, a Testemunha Ocular da História, em Edição Extraordinária...” e daí veio em jorros harmoniosos, na brilhante voz do não menos brilhante locutor Heron Domingues, notícias de ocorrências políticas na Capital Federal, Rio de Janeiro, mais diretamente do Palácio do Catete, a sede do governo, consideradas extraordinárias, que de tão importantes sequer naquele momento, muito menos agora, o Moleque não conseguiu gravar, porém ficou martelando na cabeça dele o “ratatatatata, ratatata ...” da cortina e o vozeirão do locutor anunciando o “No ar …” e o nome do noticiário complementado pela orgulhosa chamada “Testemunha Ocular da História”; disso, veio-lhe a ideia de, quem sabe, reproduzir textualmente e por escrito tudo isso, mudando um pouco o Esso por Isso, a cortina musical pelo “ratatatatata” e a “Testemunha Ocular da História” por “Testemunha Ocular Disso”... E, vendo possível tanto, lá se foi o Moleque ao quadro negro, munido de Giz e apagador, iniciando e complementando, não sem antes preencher o meio disso tudo, o texto que segue e que, por ter sido considerado jocoso, amistoso, quase uma charge explícita, verbalizada e não desenhada, o salvou de pagar com suspensões e quem sabe até expulsão do colégio, porque, mesmo sem assinar, o texto lhe foi dado como de sua lavra, reconhecido pelo professor "Catilinárias", que não teve a menor dúvida de quem era o autor, também por D. Marília, D. Dirce - autora da inconfidência do apelido detestado pelo Diretor -, por Mister Olivier, enfim, por quase todo o corpo docente do Colégio. O texto original foi apagado do quadro negro ainda ao final daquele dia e o infra reproduzido chega vivo, no conteúdo pelo menos, na memória do Moleque:

No ar, em Edição Extraordinária, O Reporter Isso, a Testemunha Ocular Disso! ATENÇÃO, foi determinado pelas Autoridades Municipais, Estaduais e Federais que, até nova ordem: D. Marília não mais poderá exercer ação disciplinadora contra quem quer que seja, mesmo que sejam estudantes que esteja acostumada a punir; a partir de agora, todos terão ficha limpa e nada lhes poderá manchá-la nos próximos três anos. De seu lado, a Professora de Matemática retirará a queixa referente ao incidente que diz ter sofrido quando ao abrir por completo a semi-aberta porta da sala de aula, caiu-lhe sobre sua cabeça, emborcando-a, a cesta plástica do lixo, sem lixo e por essa razão sem que houvesse sofrido qualquer dano, exceto pequenos susto, crise nervosa, constrangimento e exagerada indignação advinda disso tudo, determinando-se, ainda, que às investigações sobre o evento, cessem imediatamente desde que, está decretado, não se pode afirmar com certeza se a cesta de lixo foi colocada de propósito ou se algum pé de vento maroto a depositou sobre a porta entreaberta. Da mesma forma, o Professor Fidélis, deverá deixar a pretensão de penalidades minimizando pretensos efeitos causados pelo “cavaco” de madeira, de origem desconhecida, que caiu por sobre sua caneta quando fazia a “Chamada” e que diz causador de grande borrão no livro próprio, dando por encerrado o incidente, sabendo-se também que nem a caneta foi prejudicada e que, isto sim, pode ter sido ela a única culpada pelo vazamento da tinta. Fica proibida a entrada no Colégio por indisponibilidade de coleiras e canil, dos cães policiais da professora D. Domingas, aceitando-se com ressalvas sua forma dura e enérgica de ser, quem sabe por ser baixinha. Determina-se ao Professor de Moral e Cívica que deixe de ranger os dentes ao ouvir sussurrado o apelido de Morcegão entendendo-o como afago que, no mínimo, diz de sua qualidade auditiva, impar. A próxima edição deste Reporter tratará e trará notícias e determinações, dentre outros, ao ao Diretor Pinho (opa, ele detesta o apelido, segundo a esposa, D. Dirce), ao Monsieur Puig, à D. Norma das muitas Histórias, ao Mestre “Catilinárias” Ledur e especial autorização à grande Professora de Música, D. Ieda, que poderá obrigar, com o aval de toda classe estudantil do baixo ventre, a todos participarem e apreenderem a cantar, desafinado ou não, os grandes clássicos da Música Erudita, também as músicas de Serestas e outras modernosas de nosso dia-a-dia como “Marcianita” (*) cantada por Sérgio Murilo ou, “Corina, Corina” (**) por Demetrius, tudo no seio do Canto Orfeônico Villa Lobos, que poderá ser acompanhado pela Banda Mista do nosso Dom Hermeto. Outras Ordens Ordinárias/Extraordinárias Serão Objeto de Novas Edições do Reporter Isso, A Testemunha Ocular (também Auditiva) Disso. Amém.”.

Registre-se, que o texto original deve ter sido menor do que o supra apresentado, quiçá, aumentado; porém, aplique-se a bela desculpa trazida pelo velho ditado, “Quem conta um conto aumenta um ponto” e o fato desse fato ter sido narrado tantas vezes a tantas pessoas que, quase certo, vários são os pontos que lhe foram acrescentados sem todavia lhe alterar o propósito, cerne e conteúdo de uma chacota plantada e urdida à luz de uma inocência e molecagem irresponsável e até ali sempre presente!

Excertos das letras de * Marcianita: Esperada Marcianita/asseguram os homens de ciência que em dez anos mais tu e eu/ estaremos bem juntinhos/ e nos cantos escuros do céu falaremos de amor/Tenho tanto, te esperado/e serei o primeiro varão a chegar até onde estás/pois na terra, sou logrado/em matéria de amor eu sou sempre passado pra traz./Eu quero um broto de Marte que seja sincero/que não se pinte, nem fume, não saiba o que é rock and roll/ Marcianita, branca ou negra...

** e de Corina, Corina: Oh, oh Corina, como vai você/ Pra mim/eu quero Corina/ como vai você!/Quero te encontrar/ Seja onde for/ Minha Gatinha,/oh! oh! oh! minha Gatinha/ …

OBS: Corina, Corina foi a primeira canção que chamou a namorada de Gatinha, forma carinhosa de chamar até hoje usada (talvez em desuso) e foi incorporada pelo Moleque que usa tal forma carinhosa para chamar as mulheres de seu afeto que admira ou, como sua filha, mais que isso, ama.

sábado, 30 de outubro de 2021

PASSAGEIROS

 

Tudo passa, repassa, exceto o tempo,

Ela passou e a dor de sua ausência

Também passará, como contratempos!

Os mil momentos dos sonhos, à essência

Dela e meus, balançam, indo e voltando

Em meu eu, enquanto sigo passando...

Passa, passará, passou, não temos escolhas

No repassar de águas, sóis ou sombras!

GIRANDO


Vez que outra, calmaria,

adiante noites e dias

seguindo rumos e teias

onde anjos e demônios

dominam cenas e areias

às orgias desenfreadas

da explosão dos hormônios,

logo ali a encruzilhada.

E tudo que passa agora

e tudo já foi embora

como ogivas nucleares

entre minha sorte ou azares

corroídas em meu nada

que já foi ou é morada

de antigas falhas, pesares,

desses seguidos andares,

até que a morte os pare,

na vida que assim estanca

por entre acasos, barrancas,

em fim de caso, não raro

à noite do meu desamparo.

terça-feira, 17 de agosto de 2021

PEDRO E PAULA

PEDRO E PAULA

(Itagiba José)


Assim, Pedro e Paula se encontraram

Ele nem tanto pedra, ela nem tanto água

E se envolveram tanto que se amaram

Tanto, até que a rotina lhes disse: Chega!

Desde então, Pedro e Paula se separaram

Ele nem tanto santo, ela nem tanto igreja

Desiludidos, a ninguém mais amaram

Até que a solidão lhes disse: Chega!

Pedra, água, santo, igreja, o que mais seja

Na pia do desencanto, ora desencontrados

Cada um no seu vazio metro quadrado

Semeou esperas nas águas das "horas vejas".

E, peças menores desse tabuleiro de xadrez,

Tomaram o “cheque mate” da insensatez!

quinta-feira, 10 de junho de 2021

VIAGEM

... Quando olho a lua cheia, no céu, plena

de luz, bela, alva e radiante, creias,

vem à minh'alma tua imagem ofegante

vivendo o amor que nos oferecemos, cenas

da marcante viagem de afetos indomáveis,

carinhos, paz, paixâo, nela inomináveis! ...

Eis-nos ali, libertos, puros e serenados,

envoltos na simbiose de nossos universos

no sim do agora e sempre, inolvidáveis,

perenizados no infinito destes versos!

sábado, 1 de maio de 2021

SURDEZ


Aos poucos foram se apagando de mim os sons da natureza,

ficaram muito distantes, quase sussurros aos meus ouvidos

e os que ouço são zumbidos de mosquitos, sem a sutileza

ou a ternura de promessas que inebriavam meus sentidos.


Apenas sei que estou passeando no imutável tempo,

nas recentes descobertas do presente, perenes e tardias,

muito mais plenas de vivência em meio a contratempos

desta mistura discreta de morrer noite, de nascer dia.


Enquanto passo, neste quase findar desses meus passos,

Sentindo o insondável silêncio externo vir ao meu encalço

Reparto-me em luzes em meu interior de som deserto.

 

Porquanto aprendo na linguagem Braille dos teus espaços

o som, que me fazes sentir saindo dos teus abraços,

deste amor que me faz ouvir as estrelas bem mais perto.

NO FUNDO OU MEIO DO POÇO?

Prefiro o fundo, ao meio do poço!

No meio convivem medo e esperança;

o medo a supera em geométrica escala.

No fundo, só a esperança salva!

Em quase toda a vida, desde moço,

vivendo entre o meio e o fundo,

nem mesmo por um segundo titubeio:

melhor estar no fundo do que no meio!

 

Lá no fundo do poço, à sina do sapo

esperando o golpe do balde” na vinda,

da esquiva à carona apenas um salto,

na boca do poço um novo salto à saída.

No meio do poço, o nada está escrito,

é tudo obscuro, sem luz, nem sinalização,

às vindas e idas do balde não têm registro

acima ou abaixo, sem se saber a direção.


Melhor mesmo é estar no lado de fora

isso é para nenhum ou muito poucos

e a experiência que se renova na hora

exalta as diferenças do certo e do louco,

daqueles que têm bem além do além,

outros às sobras do baile, do esboço,

vivências de rimas de nada, ninguém,

morrendo de tudo no fundo do poço.

OUTRA DO MOLEQUE-HISTÓRIAS DA GALÁXIA "H"

 

Bhalthazar, disfarçado como esperto papagaio de D. Heloah (assim mesmo, com dois agás, como era dos usos e costumes daquele planeta daquela distante galáxia), motivava cobiças por sua camaleônica forma e pretenso saber, em diferentes segmentos daquela sociedade nem bem social e muito mais dissocial ou anti-social por extemporânea vocação. Ali estava ele, naquela casa de esquina, em intempestiva e improdutiva meditação no “puleiro” a si destinado que abrigava não apenas suas patas em macio piso como, pelo formato deste, se transformava, com um toque sutil e objetivo de seu bico, em confortável cama, quando três “gatunos”, certamente por encomenda de terceiros, dele se apossaram com “puleiro” e tudo, fugindo pela porta e rua lateral do imóvel, num possante veículo SimcaGalático de combustível hélio + carbono + nitrogênio + elipses + “um poderoso abstrato desconhecido” que era o supra-sumo da potência.

O vizinho, Sr. Shuthriphe, inadvertidamente viu a cena e compreendeu o que ocorria, tentou impedir o furto, roubo, rapto ou seqüestro (não importa o nome que lá davam para aquele delito intentado e praticado) do Bhalthazar, mas não conseguiu, pior que isso, foi forçado a ficar inerte sob pena de ser “transferido via éter” para a “Eternidade ou Zona H” nome que davam ao limbo deles, guardado por feras inomináveis que mantinham os infelizes que lá chegavam como escravos sem saída ou opção de lazer e onde tudo era um fim de mundo mais profundo que a pior das depressões que conhecemos e ninguém quer ter. Ainda assim, buscou via telepática, imediato contato com as autoridades do delito em curso, os denominados “Vigias Classe Hs” que a tudo monitoravam pretensamente sob comando do “H Maiúsculo” o dirigente máximo da galáxia, munidos de tirocínio e velocidade “da luz” em seus deslocamentos e investigações, que logo, logo, saíram à busca dos delituosos, prendendo-os adiante, com veículo e tudo, em cadeia psicossomática de envergadura disforme e descolorida em local que denominavam limbo, ali ficando à espera do julgamento supersônico que não tardaria para ser feito dentro do padrão escorreito e concernente às escrituras legais que a tudo disciplinava e comandava, dela nada escapando, até mesmo uma cuspida, se mal dada, nela encontrava a predeterminação aplicável. Tanto quanto a lei, também a Comtista e Positivista mensagem “Ordem e Progresso” signo e chave de abertura de portas palacianas, devia ser seguida ao pé da letra, sem jeitinhos, embora não houvesse outro jeito que não o jeitinho, até mesmo para transformar em vítima o delituoso e culpar os Vigias Hs pelos delitos.

Enquanto isso, parece que foi por obra e graça do mau humor de Bhalthazar, agora despido do disfarce e lutando pela própria sobrevivência depois da briga que teve com o Sr. Shuthriphe, os vários céus da galáxia se encheram de nuvens nimbus pesadas, prenhes de muito terror e raios, anunciando temporais carregados de cadáveres e esqueletos de aves já sem asas, vindas da “Eternidade ou Zona H”. Em meio a tudo aquilo, como se fosse um sopro de ilusão, uma criança lindíssima chamada Cohngtho ganhou um bolo e nele, escondido, reinava um jacarezinho muito bravo, que rosnava rilhando seus dentes afiados trazendo por sobre sua parte anterior (ou seriam suas costas?) várias larvas ou óvulos ali depositados que pululavam sem se saber como, porque ou por quem. Os mais variados personagens dessa galáxia tentaram de todas as formas e conseguiram libertar a criança, mas não mataram sequer uma larva ou óvulo que fugiram em violento pé de vento que, tampouco se soube, se pé direito ou pé esquerdo pois na verdade e por mais inverossímil que seja, aquele vento não tinha pernas e muito menos pés.

Ora, ora, as tais larvas ou óvulos, do jacarezinho do mal, se transformaram em peste invisível e performática e do rabo do jacarezinho e atacaram o bolo maior chamado mundo ou universo ou, como queiram, toda a galáxia que não os esperava e muito menos estava preparada para recebê-los ou enfrentá-los. Entre as formas dessa peste atacar, uma era pelo contato entre os habitantes, porém, a mais comum era pelo ar que os habitantes para sobreviver respiravam, por isso com o respiradouro que chamamos de nariz voltado para cima (o que tornava difícil sair à chuva sem guarda-chuva) a defesa desse ataque se tornou quase impossível. Os muitos contaminados contaminavam outros tantos e assim por diante, formando o que foi chamado de “pangaláxiamia” (o que conhecemos como pandemia) que transformou para pior a vida dos habitantes. E foi um “salve-se quem puder” para todos, com ou sem eira ou beira, embora alguns ainda professassem sentimentos esquecidos desde tempos imemoriais, todavia escondidos em suas entranhas agora expostas às intempéries e vicissitudes; estes, iniciaram campanhas de arrecadação de bens à sobrevivência criando uma corrente de solidariedade que se pretendia houvesse sempre existido e jamais existira de fato porquanto sempre tinha cascas de bananas por trás delas. Enquanto isso os entendidos, cientistas claro, antes tão desconsiderados, em franca e agora respeitável atividade saíram à busca de armas para enfrentamento do inimigo com chances de êxito para vencê-los. A partir daí e só a partir daí aqueles antes ditos idiotas e campeões na perda de tempo, em estudos non sense, foram reconhecidos como os salvadores da Pátria ou melhor, da vida, pela grande maioria dos galaxianos (uma minoria de idiotas, metidos a heróis de frascos e comprimidos, acreditavam em mil e um tratamento precoce ineficaz).

E Bhalthazar, por onde andaria Bhalthazar? Pois bem, com toda sua fama, capacidade e pretenso saber, após o incidente de que foi vítima, voltou ao seu “Puleiro” e se aquietou, um tanto quanto livre das tralhas que o amordaçavam ou melhor, que só lhe deixavam repetir o que a insanidade do grupo lhe repassava e, assim calado, virou um grande poeta de silêncio inalcançável, alheio a tudo quanto não fosse se conservar integrante do “Puleiro Mor”, o qual jamais pensara ter e que agora o tendo fazia qualquer coisa para manter, até peremptoriamente calar a boca se preciso fosse. Saliente-se que silenciosamente rezava pedindo aos céus que ajudassem Lhulbhabha, a quem acreditava fosse o antônimo de si que, embora idiota, jamais cometera qualquer furto ou roubo, para voltar do merecido limbo a que fora enviado por galaxianos honestos (e que por serem, exatamente isso, honestos, agora caíram em desgraça vitimados por sorrateiros golpes dos poderosos que não suportaram viverem longe das “mamatas” que os tornavam mais ricos e poderosos) e viesse concorrer consigo, entendendo como única chance que tinha de sucesso para continuar no comando da “Galáxia H”, usando e usufruindo do pomposo e nada abstrato título de “H Maiúsculo” sendo a única, ainda que péssima, alternativa àquele (que todos sabiam, como se fosse possível e era, bem mais péssimo do que ele).

A galáxia, apesar de tudo segue viva porquanto seu solo é rico enquanto que seus habitantes, em sua grande maioria, são ricos apenas de imaginação, jeito, trejeito, curvas e métodos ortodoxos derivados da lei do menor esforço, sem educação ou conhecimento cultural suficiente para igualaram-se ao solo que habitam e preguiçosos, néscio, preferem mitificar absurdos, elegerem pretensos heróis de bravata para lhes repartir o bolo (que ficam com os maiores e melhores pedaços) e, impassíveis eis que se repetem “n” vezes, em vez de fatias se contentam com migalhas... A tal “Galáxia H” parece, nem tão distante assim de nós, nem Bhalthazar ou Lhulbhabha, como se sabe, o são...

quinta-feira, 15 de abril de 2021

PREDESTINAÇÃO


Nem bem começara a tarde, nem a tradicional sesta,

o temporal anunciado em nuvens escuras no céu plúmbeo

desabou por sobre infelizes vítimas, prenhe de aleivosias;

daí em diante nada se sabe do que ou quando, tudo é festa,

do que ou quando se estancará toda água desse plenilúnio

forjado em grossas gotas ou flechas grávidas de ventanias.


Arrisque-se a sair de casa expondo-se como um fio terra

pensando não ser imã suficiente para atrair poderosos raios

que, quase certo terá à frente, um caindo em sua cabeça

e o seu nada atestará que raios não poupam quem se ferra

pensando ser maior por ter coragem de enfrentar desafios

pouco importando a importância do resultado que ofereça.


A vida é simples como um início de tarde, uma simples sesta,

a aproveite e sugue o sumo próprio de quem sabe vivê-la

mesmo sem ter, mais do que tudo seja, amando, sendo amado

e o seu ser atestará que em si se basta, sendo orgia e festa

em inesgotável plenilúnio de luzes e sonhos, sem represas

para o qual todos, sem ressalvas enfim, foram predestinados.

terça-feira, 13 de abril de 2021

CANTOS DE SEREIAS


Muitos ou todos diziam, certos,

que eras além do demais para mim

e diante de tua beleza, por certo,

por mais bonito que eu fosse e nem assim

que nunca fui, nem perto, enfim,

também eu sabia que eras demais para mim.

Porém, parece, somente nós sabíamos, decerto

O que um e outro era ou seria, sempre, para si.


No entanto, para nosso desencanto, o canto

dessas urbanas sereias presas nas areias

da ampulheta chamada destino, fez-se ouvido

resultando na dispersão de sonhos intumescidos

desenvolvidos n'outros caminhos e acenos

enquanto se dissolvia nossa trigonometria

não apenas em repetidos senos e co-senos,

para fora e além do infinito de nossa simetria.


E fomos de gole em gole do azedo embriagados,

Sem mais o doce do vivido e jamais esquecido

Que teimosamente permaneceu ali, ao nosso lado

Como dolorido espinho espetando os desatinos.

E foste embora, sem jamais ter ido em mim

Que conservo teu aroma no amor inenarrável,

Em meio ao imensurável da saudade e suas teias

Para muito além dos falsos cantos de sereias.

domingo, 28 de março de 2021

FESTAS JUNINAS – FOGUEIRAS, BATATAS, MILHOS, ETC.


  • Mais uma, das tantas, do Moleque:

  • Quase ao final do outono, quase ao início do inverno, se apresentava junho com suas festas que, caipiras em outros pagos, em Uruguaiana era bem gauchesca mesmo, com aquele bando de guris e gurias trajados à campanha e lides campeiras(¹), borboleteando por sobre o mel dos passos marcados, desenhado pelas músicas e danças trazidas pelas gaitas ponto ou não, piano ou não que, engasgadas de milongas, xotes e rancheiras embeveciam os convivas, como o Moleque que somente não estava vestido a caráter por falta de pila(²) mas nem por isso deixava de se esbaldar em meio aos demais, especialmente às demais, claro porquanto, de fácil combustão, em meio delas crepitava como capim seco jogado ao fogo.

  • Mas, não eram apenas os folguedos juninos patrocinados pelo Grupo Escolar Maria Moritz que davam corda ao Moleque; ele próprio, mais alguns amigos e os tinha em grande número, desde o alvorecer do mês rumavam às Vilas Júlia ou Rui Ramos, localizadas nos arrabaldes da cidade, lá prás bandas do Matadouro, local de abate de gado – vacum, ovino, suino - à comercialização nos açougues e bem mais além do que a escola; a geografia dessa região plana, com várias nascentes e olhos d'água que formavam arroios e sangas onde os valorosos militares do 8º Regimento de Cavalaria realizavam manobras de instrução e aprimoramento montados em briosos cavalos, quase xucros(³), em espetáculos parecido com os circense nas acrobacias e, por que não, nas confusões entre as partes, cavalo e cavaleiro que nem sempre se acertavam, gerando situações de comédias como verdadeiros palhaços da companhia; as ocorrências eram tão encantadoras e hilárias, dando ou não dando certo os exercícios que, o Moleque e mais alguns de seus colegas, gazeteavam aula nos dias marcados, para assistir o show que, jamais, deixou de ser um grande atrativo e nunca decepcionava pela qualidade do aqui e agora, do improviso e, quem sabe também por isso, sendo gratuito, realizado ao vivo praticamente junto ao espectador que embora o ímpeto próprio da idade, só não interagia porque não tinha cavalo para montar e os berros do sargento impedia.

  • Quase sempre quem se dava mal nos exercícios de saltar por sobre arroios e sangas, ou atravessá-los ao trote, além dos cavalos, eram os milicos, reiúnos, soldados(4), como queiram e somente uma vez, para grande alegria e algazarra dos espectadores, uma plateia sedenta de inusitado, aconteceu do próprio sargento-instrutor também se dar mal: um reiúno sem traquejo equestre não dava seguimento à montaria que, desobediente, estancava à beira do arroio e não tinha pinguelim(5) que o impelisse à frente, fazendo-o desempacar; “Volta, toma distância de uns dez ou quinze metros e de lá, vem à galope e faz esse matungo(6) pular o arroio”; não adiantou nada tudo isso, embora o milico tenha cumprido a ordem exceto no quesito galope pois o indomável cavalo, ainda que mais açoitado pelo rebenque(7) não chegou a galopar ou fez “corpo mole” desdenhando do condutor. Irritado, o instrutor aos berros mandou o milico desmontar e entregar às rédeas para ele que iria mostrar como deve proceder um militar num caso desses; dito isso, desmontou do seu e montou naquele veiaqueador(8) desordeiro e tomou larga distância do arroio, para lá dos 30 metros de onde partiu a galope, intrépido, açoitando às duas ancas do cavalo. Olha foi como se um raio chispasse(9) o terreno pelas patas do cavalo que, ao chegar na barranca do arroio, em magistral e impressionante retesamento muscular estancou sem aviso e nem se sabe como, complementou tal inércia com um movimento brusco de trás para a frente e de baixo para cima com as patas traseiras, enquanto as patas dianteiras se mantinham inertes fincadas à barranca, arremessando o instrutor num vôo cego, de cinco ou seis metros, para dentro das águas frias do arroio... aquele cavalo maroto, atrevido e sem patente, vingou a todos os infelizes milicos jogados à sanha de um instrutor que mais berrava do que ensinava, meio que despreparado, convenhamos.

  • Voltemos, porém, ao cerne e assunto principal; naqueles locais, ainda ermos, destacava-se na vegetação não apenas maricás(10) e suas flores que dependendo de quando aparecem, de dezembro a março, anunciam se o inverno será para mais ou para menos rigoroso (quanto mais cedo a floração, mais enregelante será o inverno), também as sina-sinas(11) planta um tanto quanto franzina que tem como caracteristica principal enorme quantidade de espinhos no tronco e nos galhos. Pois bem, pelos efeitos naturais da vida vegetal (e quem sabe animal também) muitas dessas plantas a cada ano se tornavam secas sendo apelidadas de ramas que, incendiadas, emprestavam aos folguedos juninos o brilho e calor das fogueiras ao redor das quais todos brincavam e até as pulavam com outros, mais expeditos, o que o Moleque jamais entendeu como, caminhando descalços por sobre brasas sem se queimarem; além disso, eram assadas mandiocas (chamadas de aipim em Porto Alegre), batatas (em especial as chamadas “americanas” de cor amarelada, muito mais doces do que as batatas brancas) e até pipocas, mais milho assado; registre-se que o pinhão era raro devido a ausência de araucárias ou pinheiros naquelas plagas(12).

  • O Moleque e sua turma puxaram muita rama seca pelas ruas de acesso às suas respectivas frentes de casas onde realizavam suas fogueiras em horários distintos de forma que todos participassem de todas, em grande comilança, danças e cantorias, além de demonstrações de arrojo e valentia sem conotação com outro predicado senão o de se mostrar em exibição inútil e sem noção ou, mais suave e verdadeiro, pela simplicidade de ser feliz pelo ato de meramente participar da brincadeira sadia. Assim em 12 de junho, véspera do dia dedicado a Santo Antônio e em 13, as fogueiras eram acesas, umas por volta das 19:00H, outras mais tarde; também em 23 e 24 (diziam ser esta a noite mais comprida do ano mais propícia ao exercício de magias e “simpatias” que revelavam o futuro, principalmente às gurias) do mesmo mês, véspera e dia dedicado a São João, o espetáculo se repetia, voltando a ocorrer em 28 e 29 véspera e dia dedicado a São Pedro e São Paulo, onde todas as fogueiras se tornavam bem menores em comparação a única, enorme, em que todos colaboravam para sua realização, em meio a um descampado, no epílogo das festas em grande estilo. Bombinhas e buscapés, em todas, explodiam e serpenteavam por entre a gurizada e, pasme-se não ocorreu nenhum acidente a respeito, pelo menos que disso tenha lembranças o Moleque, tampouco dessa gana incendiária não sobrou para nenhum deles o vício respectivo.

  • Não se tem, também notícias de que alguém se tenha ferido, levemente que fosse, por queimaduras, exceto pelo acidente, incidente melhor dizendo, protagonizado pelo Dula, o marido da Bila, uma das filha da "mãe" Mocita. Vez que outra, Dula ultrapassava a cota no trago indo além do quinto “martelo”(13) e no trajeto de volta ao lar, caía nas incontáveis valas e valos do caminho sendo ajudado a sair da encrenca por vizinhos e conhecidos que o sabiam bom e pacato sujeito até mesmo quando enxarcado pelos “martelos” ingeridos. Ao epílogo, naquele ano, lá estava Dula com entusiasmo e grande alvoroço distribuindo aplausos e vivas pra todo mundo, com sua voz tronante um tanto quanto enrolada, em dicção falha por culpa do álcool; as pernas, da mesma forma, trôpegas, o mantinham no tonto movimento que o comando cerebral determinava. Dona Lucidez há horas o havia abandonado quando ele, descontrolado como estava, resolveu pular a fogueira e, de imediato, sem aviso, lá se mandou para exercer o ato que tanto aplaudira naqueles que arriscavam e conseguiam fazê-lo. Nem tão alto estava o fogo porém Dula, na sua beira, tropeçou nas próprias pernas e despencou no meio dele; inegável que o impulso dado ao seu corpo pelas cambaleantes pernas saturadas de “trago” lhe serviu para que rolando escapasse de um resultado pior, pois saiu na outra ponta da fogueira todo chamuscado porém vivo e exceto pela queima de alguns fios de cabelo de sua larga melena, mais a totalidade de cílios e pestanas, da traseira e joelho da bombacha, das pontas do ponche e do cotovelo da camisa de lã, que a tudo vestia, nada sofreu, sendo contido quando disse que iria pular de novo porque não se entregava e ia vencer a peleia com aquelas ingratas ramas que ele mesmo, junto com os outros, trouxera de muito longe para queimar e elas deviam ser agradecidas por isso, não pealá-lo como tinham feito... e a vergonha do destemido Dula que jamais caíra de qualquer cavalo, como bom ginete que alardeava ser... ah, nas valas e valos, bem aí era outra história, não eram elas ou eles e sim ele, bicho indomável, que corcoveara quando nelas e neles vez que outra caía...

  • De qualquer forma, as fogueiras, tradição iniciada por Santa Isabel para avisar Virgem Maria do nascimento de São João, trouxe muita alegria e calor a infância do Moleque que a cada junho às reacende nos cantinhos da memória e volta a brincar de pulá-las, comer batata e milho assados, etc, etc...

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  • GLOSSÁRIO: (¹) eles de bota, espora, bombacha, campeira, lenço vermelho ou branco no pescoço; elas, vestidas de prenda, com vestido comprido até o tornozelo, fita e flor no cabelo quase sempre solto; (²) corruptela do Cruzeiro, moeda da época; (³) Diz-se do animal bravo, ainda não domesticado; (4) milico é o nome que se dá aos soldados em geral, sendo o reiúno o menos valorizado, o iniciante; (5) Chicote comprido e delgado usado pelos cocheiros; (6) cavalo ruim, velho, imprestável; (7) Espécie de chicote; (8) cavalo manhoso, matreiro; (9) de chispa, fagulha, faísca, centelha, lampejo; (10) o mesmo que espinho-de-maricá, planta da família das leguminosas-mimosáceas; (11) árvore leguminosa, espécie de espinheiro, geralmente empregada em sebes viva; (12) País, região; (13) medida para líquidos equivalente a 0,165 litro; copo pequeno para aguardente.

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2021

DOS CADERNOS DE POEMAS (TEMÁTICOS)


CADERNOS DE POEMAS DO POETA ITAGIBA JOSÉ (TEMÁTICOS)


I – POEMAS TRÁGICOS


II – POEMAS LÍRICOS


III – POEMAS CLÁSSICOS


IV – POEMAS ÉPICOS


I


POEMAS TRÁGICOS


- ÍNDICE –

Acidente

Facho de Luz

Morte Natural

Na Arena

Engrenagem

Bêbedos

Imaginação

O Algoz

Cavalos de Batalha

Triângulo

O Direito de Estar Só

Rosa de Chica

De Óculos Escuros

Remoinho

Sala de Jantar

Submundo

Identidade

Pés de Barros

O Passeio

Miséria

Do Ponto de Vista do Criminoso Ocasional

Percurso

Alegoria

Moleque Engraxate

Rancor

Desilusão

Nenhum Por Nós

Sol Posto

Prostituta

Loucura


POEMAS TRÁGICOS-POETA ITAGIBA JOSÉ


ACIDENTE

Um carro em alta,

Na rua baixa,

Canta pneu,

Um baque, surdo,

Bradou bem alto

O que ocorreu...

Um corpo rola

Como um bola
Cheia de adeus

E o carro em alta

Na rua baixa

Sangra pneu!


FACHO DE LUZ

Essa luz, tirem essa luz de cima de mim!

Ela me cega, essa luz, tirem, tirem de mim!

E novamente o torpor, na cadência do nada,

Invadia àquela vida que, na madrugada,

Diante da luz, dessa luz que a atormentava,

Se precipitara na loucura da escuridão.

Essa luz, dizia baixinho, essa luz, essa luz,

Murmurava o que ninguém suspeitava

Ou ouvira, jamais; e dormia e chorava

E morria e renascia para morrer de novo.

O médico, sonolento, da pequena cidade

Tentava fazê-la voltar à consciência...

Para que despertá-la? Se perguntava,

Retirar de seus olhos essa luz que a cega

E minutos atrás a mergulhara no abismo?

Como dizer àquela pobre mulher

Que o marido, os filhos, a sua família,

Há pouco sorrindo, há pouco tão viva,

Passara além do abismo à eternidade?

Nessa luz, a duzentos por hora nessa luz!


Essa luz, devagar, a curva ... meu Deus!

Essa luz, tirem essa luz de cima de mim...!


MORTE NATURAL

Morreu como tanta gente

Sem campos de batalhas,

Sem cama, sem palavras,

No anonimato.

            Em troca das flores,

            Velas ou lágrimas,

            Comuns diante da morte,

            Ganhou o aparato policial,

            A curiosidade popular

            E a manchete do jornal.

                        Ele que pouco ousara

                        Ter tempo de beijar os seus,

                        Beijou o asfalto à cem por hora.

                        Morreu como tanta gente,

                        No anonimato,

                        Atropelado pelo progresso.


NA ARENA

... E aí a calça caiu

Na gargalhada geral

Dos espectadores ...

Quem lhe mandou entrar

Na arena do circo

Sem roupas, sem artifícios

E sem o nariz de palhaço?

                                                Afinal é o riso a praga

                                                Que açoita o ridículo

                                                E o bem que me refaz

                                                Em teus braços.

                        Enquanto lhe caía as calças

                        Sua vergonha tirava férias ...


ENGRENAGEM

Andava pela periferia,

No fundo querendo penetrar no núcleo.

Dardejava, encanecia, pudera

Não é todo dia que se pode pensar raposa

E se deliciar em uvas maduras ou verdes,

Não importa, sempre uvas, ora!

De tanto se expor, foi sugado,

Caiu no teatro de marionetes,

Aceitando os cordões que lhe impuseram

E a manipulação de suas ideias e ideais.

Foi espicaçado, moído, desmoralizado,

Doutrinado, mas estava dentro do núcleo,

Seguro, sóbrio, e isso já lhe bastava.

Caiu quando acreditou estar subindo

E, triturado, jamais ser reencontrou,

Nem valeria a pena ou poderia fazê-lo

Eis que apodrecera como as uvas

Atiradas à pretensa raposa que seria,

Abocanhado por sua própria ambição.

… E dizer que um dia ele havia sido

Um contestador, da periferia,

E, quem sabe, um ilustre ser humano

Corrompido somente de ilusões e esperanças!


BÊBEDOS

Carne esponjosa

Regando a sarjeta

De lixo humano.

Bêbedo, como um trapo

Dorme com o sol do meio-dia

Batendo em sua cara.

Desviando do monturo,

Indiferente e irritado,

O mundo passa ao largo

Com olhos e nariz, tapados.                                           

                                                         Mundo dos homens

                                                         Regando a natureza

                                                         Com sua poluição.

                                                         Como o próprio bêbedo                        

                                                          Que reprova e expulsa,        

                                                          Dorme com o sol do meio-dia

                                                    Batendo em sua cara.

                                                  Embora todos os benefícios

                                                Não dá para passar ao largo,

                                              Nem tapar olhos, boca ou ouvidos.


                                SEM PALAVRAS

                                                Passou o dorso da mão direita

                                                Sobre os lábios lambuzados

                                                De sol, baba e cachaça,

                                                Da mistura do suor com o pó

                                                Fez seu último gesto simbólico.

Retirara da vida a febre, o vício

Em andanças por entre copos e garrafas

Buscando o próprio ego que vilipendiara

Abdicando de amigos e familiares.

                                                Quis ser sorriso, foi um escárnio

                                                Quis o mundo e nem teve a decência

                                                De lutar para ter, pelo menos, a si mesmo;

                                                Quis ser um deus e foi só um alcoólatra,

                                                Um demônio feito de despojos!

Ao limpar os lábios com o dorso da mão

Fê-lo para reencontrar-se com o amém

Sequer conseguindo reinventar-se perdão

Do que há muito esquecera, também,

Nem disse adeus, mesmo fosse alcoólico...

                                                Passar o dorso da mão direita, à chalaça,

                                                Nos lábios lambuzados de suor e cachaça,

                                                Foi seu derradeiro gesto simbólico...


TETUSKIN!

Apanhara a rosa no jardim do sonho

E desde então o sonho ficara rosa,

A noite se fizera dia,

E o dia se fizera vida.

Desfolhada a rosa

A vida se repaginou em noite

E do sonho restaram espinhos.

Tetuskin! Tetuskin! Tetuskin!

Ninguém entendia o que ela gritava
Para a vida, desesperada, crua,
Na linguagem dura da própria vida.

Tetuskin é tão incompreensível

Quanto a dor que sentimos

Ao perder o amor nosso de cada hora.

Tetuskin! Tetuskin! Tetuskin!

… Ela espinhava de solidão!


                            O ALGOZ

Sorria de fechar olhos e abrir orelhas

Mas permanecia mudo

Com tal atitude, parecia uma caricatura

E despudoradamente, negava o seu apoio.

            Como que recuperando o controle

            Sobre o músculo facial antes retesado

            Vociferou seu ódio sobre a indefesa vítima

            Que o mundo se encarregara de lhe devolver

            E se deliciou em ser a taboa podre

            A que o náufrago tentava se agarrar.

                                Tudo estava bem agora,

                                 Conseguira após tantos anos

                                 A vingança alimentada pelo ódio

                                Que por extensão o mantivera ativo

                                   Durante toda uma vida.

Realizara sua vingança

E desmentira os idiotas que a proclamavam

Como uma felicidade efêmera

Diante daquela oferecida pelo perdão.

                            Naquele momento deixou de ser a vítima dos outros

                                    Para se revelar vítima de si mesmo

                                        E jamais admitiu que os idiotas, à final,

                                                Os idiotas tinham razão!


                                    CAVALOS DE BATALHA

        As rodas de borracha deslizavam

        Mansamente, na cidade grande

        E nada chamaria mais a atenção

        Naquela tarde de chumbo e sol

        Do que tanta miséria retratada

        No todo daquela carroça;

A própria ironia, como se buscando

Um lugarzinho no asfalto quente,

se postara imediatamente atrás,

Num carro importado que buzinava

Querendo empurrar o lixo à frente,

dobrar à esquina, fugir ao contágio...

                            Percebido um gesto fugidio,

                            Nervoso, da mão que varou o vento

                            Indicando entrada à esquerda

                            O mundo parou, como sempre,

                            Para a miséria atravessar a rua...

Não sei qual o mais infeliz,

Se o cavalo ou o carroceiro

Ambos desnutridos, desolados

Puxando seus infortúnios,

Um atrelado a uma carroça

Outro, sem saber como ou por que,

Atrelado ao chumbo e sol da vida!


IMAGINAÇÃO (Em Algum Lugar do Passado)

Encontrara sua amada

Após buscá-la inutilmente na realidade

Reduzida a uma fotografia antiga,

Em uma casa de antiguidade.

Aquele rosto fotografado

No alvorecer da arte fotográfica

Espelhava a meiguice, a ingenuidade

Que ele sonhara haver existido.

Apaixonado por aquela imagem

Sabia que não a veria em carne e osso

Mas acreditava que a encontraria

Em um canto qualquer do infinito,

Lá onde os mortais penetram, apenas

Com as asas da imaginação.


Um dia, após violenta tempestade,

À sua frente fez-se o arco-íris

E, rapidamente alçou-se à estrada colorida

Percorrendo-a n'último sopro de vida.

Com a chave, que não soube explicar

Como viera ter às suas mãos,

Abriu as portas do Céu e encontrou sua amada.

A fotografia, do início de um século,

Transmudara-se para aqueles braços

Que o envolveram em sua Paz e Amor.


A cidade inteira, enquanto isso,

Penalizada comentava que perdera

Seu cidadão mais pitoresco:

Um bom sujeito, louco e inofensivo,

Que amava, como se o ato de amar

Por si só não fosse uma loucura,

Amava uma fotografia!


OBS: Registre-se que o poema foi escrito em ago/1967 e publicado em Dez/1976, anos antes da realização do belíssimo filme “Somewhere in time” (Português: “Em algum lugar do passado”), de 1983, estrelado por Cristopher Reeves e a encantadora, meiga, Jane Seymour, também Christopher Plummer, sendo o tema (história) idêntico, ou quase, ao deste Poema. Cremos tenha sido por mera coincidência!


ROSA DE CHICA

Rosa Laídes Vieira era seu nome e ninguém sabia,

Rosa de Chica era como a chamavam.

Tinha seus problemas sociais, morais, venais,

Mas fora moça prendada, de família, ingênua,

Até que um dia conheceu o cravo e com ele o espinho,

A dor, o abandono, a rua, o mundo e ninguém sabia.


Desprezada, humilhada, pisoteada, arrancou do útero

O filho que a amaldiçoara. Pariu na cidade grande!

Vendo arrancada do fundo de si mesma

A materialização de sua desgraça e pecado,

Instintivamente apertou a criança contra as coxas

E seu urro de dor abafou o único vagido da criança.

Esse foi o último fio de realidade

Que Rosa Laídes rompeu em um gesto de defesa

E foi nesta data que nasceu Rosa de Chica

Completa para o mundo... e ninguém sabia.


Rosa de Chica viveu durante anos à margem,

Na obscura rua da fatalidade, desdenhada,

À margem da Rosa Laídes que fora...

Quem matou o filho de Rosa Laídes?

Não foi Rosa Laídes, foi a de Chica!

Quem criou Rosa de Chica? Foi Rosa Laídes?

A conjuntura? O Destino? O Estado Puerperal?

Não, o estado Puerperal isoladamente

não mata filho de ninguém, nem de uma Rosa de Chica

sem pressões, loucuras ou arrependimentos!


Para analisar o nascimento de Rosa de Chica, comecemos por Laídes,

Moça prendada, de família, ingênua, até que conhece o cravo

E com ele o espinho, a dor, o abandono, a rua, o mundo...

Quem matou a Rosa Laíde e também seu filho,

Fazendo nascer a Rosa de Chica que todos ridicularizavam,

Foi tudo isso, meus jovem, foi tudo isso!


                                TRIÂNGULO

Belisca João o pé de José que bate na bola

Belisca João o pé de André que bate na cara de João.

João não reflete, se perde, reage e bate em André,

José se intromete, atrapalha, separa João e André.

                                Uma bala, uma faca, uma pedra, é o fim de José.

                                É João, é André, é a fuga, o medo, a noite, a morte!

                                Quem matou? Quem morreu? João, André? Oh, José!

João e André, três anos depois, é a condicional.

Já não é mais João, já não é mais André, são fantasmas

Libertos das grades de ferro da Penitenciária,

Prisioneiros ainda das grades chamadas lembranças

Que beliscam João, que beliscam André,

Se intrometem, atrapalham, separam João e André,

Como outros josés que trazem José...

                                Belisca João o pé de André que lhe bate na cara,

                                João não reflete, se perde, reage e bate em André.

                                Uma faca, uma bala, duas pedras, é o fim de João,

                                Também é o fim de André ... E José?

                                Morre agora, José!


O DIREITO DE ESTAR SÓ

Um dos gêmeos revoltado resmungava

O outro, humilde, permanecia quieto.

O primeiro estendeu-se comprimindo o outro

E tudo não passava de uma provocação,

Não estavam delimitadas suas áreas,

Nem cabia acordo; ao mais forte, tudo!

Enquanto se dilatava o ventre da mãe

Um sugava o alimento, o outro a fome;

Um o poder, o outro a servidão;

Um a exuberância física, o acinte,

O outro a fraqueza, a humilhação

E quando vieram ao mundo,

Ultrapassado o portal do indizível, 

O esfomeado engoliu o seu ódio,

O opulento engoliu o seu orgulho

E, mesmo assim, conseguiram permanecerem sós.

Abortados, jamais viriam saber

Que repetiram em um ventre de mulher

O drama do ventre do mundo.


 SALA DE JANTAR

A sopa fora servida quente e aguada

aos comensais da semana

e nem seus picantes temperos

alteraram a monotonia dos convivas.

Os pensamentos sobrevoavam extremos:

Qual a melhor maneira de jogar a sopa?

sobre o outro? no assoalho? ou no estômago?

As colheres retiniam nos pratos

que, conforme a sopa desaparecia,

mais se expunham ao metal feminino.

A mesa em leque fechava o ciclo

e os bancos duros integravam os caracteres

dos desventurados que suportavam.

Ao som do apito estridente

os convivas, cabisbaixos e ordenadamente,

acompanhados por guardas e metralhadoras

voltaram às celas e aos devaneios...

Amanhã, tudo seria igual e novamente! 


SUBMUNDO

Das veias do tempo, desprendeu sua história

Que jorrou fértil no ouvido curioso.

O farrapo falava de dores e mortes,

Definindo desgraças sem chorar suas causas,

Mas suas consequências;

A principal delas, ser ele apenado

Para o resto da vida!


Ele outrora orgulhoso e estúpido

Dono de uma cidade

E da manchete do jornal policial,

Ficara reduzido a um fardo de lamúrias.


Sozinho com suas lembranças

Passava seus dias e nas paredes

Da cela suja onde reinava,

Sabe-se lá se por ironia ou crença,

Escreveu em letras tremidas:

O CRIME NÃO COMPENSA”.


DE ÓCULOS ESCUROS

Hoje, estou a olhar o mundo de óculos escuros

E vejo tudo cinza,

Desanimo diante da perspectiva de enfrentar meu dia

E a natureza contribui para esse desânimo,

Está quente, grave, abafado.

Apesar disso tenho de fazer o que faço sempre,

Agir no mesmo diapasão

E dedilhar o conhecidíssimo teclado

Da velha máquina de escrever,

Cair na mesma rotina, cheirando a mofo.

Quando menino colori meus óculos de cor-de-rosa,

Depois várias cores alternaram-se nas lentes

Exceto a rosa que, agora sei, não mais virá.

Ao verde da adolescência sucederam-se o vermelho,

O amarelo, o lilás e este cinza que me cerca

E me força a usá-lo cada vez mais

Mantendo-se, possivelmente, como símbolo

Do azedume recolhido no interior de meu ego

Durante minha própria campanha na vida.

Espero que minha decadência física,

Amanhã, seja minha ascendência moral

Que possa cobri de branco o conteúdo inócuo

Trazido nas lentes da reminiscência.

Por enquanto e, pelo menos, hoje,

Estou olhando o mundo de óculos escuros

E posso afirmar, com toda certeza,

Não há beleza no que vejo!


                                                REMOINHO

                                Ajuda! Meu Deus, quem ajuda?

                                Vagando, vazado, reprimido,

                                Sem ter um riso ou a ti;

                                Ultrapassei o castigo, o bem

                                Da volta, não tem nada além

                                Nem aquém. Na lei do espaço

                                Quebrado me perdi, atingido,

                                Vivendo o não sei se eu sei

                                Ajuda? Onde está a ajuda?

                                Que se fez intangível, ruim,

                                Se no furor da verdade

                                Que se jogou sobre mim,

                                Ou no torpor da mentira

                                Onde com febre vivi?

                                Onde está, meu Deus, a ajuda?

                                O endereço dela nem tenho ou sei

                                Mas alguém tem de ser o alguém

                                Que perdi em meu dia a dia

                                Quando a tive e calei, e calei.

                                Ajuda! Ajuda! Sou eu ... sou ...!


                IDENTIDADE

Mantenho diante do vejo e sinto

Esta postura antropofágica como defesa;

Se não tenho o porto de herói ou guerreiro

É porque me contento em ser covarde ou,

Pelo menos, ser normal como todos os outros.

                Procuro manter coerência em meus momentos

                Para que no gênese de meus pensamentos

                Possa reter a ordem que o cotidiano retira;

Assim, construo dois mundos

O que pode parecer inadmissível:

Enquanto do lado de fora da muralha

Porto-me como gladiador embrutecido

Lá dentro deixo cantarem pássaros

No jorrar da cascata da imaginação.

                Não tenho pretensão de mostrar-me como sou

                Abrir-me para ser retalhado não é exatamente

                O que desejo; não tenho coragem para tanto

                Reconheço que se aparência e verdade

                Puderem ser mantidas sem atropelos

                Passarei pela realidade imposta pelo meio

                Sem prejudicá-la ou combatê-la.

À final, a inércia e a aceitação passiva

Fazem parte do arsenal da humanidade

E só e fraco não tenho forças para vergá-las.

                Todos transferiram a solução para todos

                E guardaram dentro de si o melhor que têm,

                Não sou exceção, pudera!


                PÉS DE BARRO

E a televisão abriu seu noticiário

Com o conteúdo patético de sempre:

Os homens continuam matando e morrendo,

O mundo, velha esponja regada a sangue,

Não se satura, nem explode de ódio,

Continuando, indolentemente, o mesmo mundo.

Até o pequeno e ousado jornal da cidadezinha

Conserva esta mesma postura trágica,

Tão antiga como o próprio anonimato

Das boas ações que o cotidiano abriga.

Tais ações, não têm a bela agressividade

Que as outras detém, nem lhes sobra

Um toque de extraordinário ou pecado

E por não terem mistérios ou ritos pagãos

Não fazem performance na publicidade,

Em decorrência, mão dão lucro ou audiência.

Cantemos, pois, o mal, tudo dos crimes,

Apontando guerras santas ou profanas

E de qualquer forma vis porque guerras,

Sem movermos mais que o necessário,

Quem sabe até nem isso, que se lixem,

Para salvar a pele dos insensatos, se possível.

                                O mal é tão grande que necessitamos

                                Criar super-heróis e violência gratuita

                                Para povoar os sonhos de nossos filhos.

                                Somos tão fracos que apresentamos o mal como um deus

                                E o bem, ah, o bem, como efêmero paliativo.

Esse ciclo da vida e loucura, continua a passar

Por nossos sentidos, tato, olfato, visão,

Nesse medo que temos uns dos outros

Vital ingrediente para o vigor do noticiário.

                                E dizer que vivemos de nossas misérias...


                DO PONTO DE VISTA DO CRIMINOSO OCASIONAL

                                        Sinto o peso do mundo sobre mim

                                        Pesa-me uma vida mais que a morte

                                        Tudo se conjugou para o resultado

                                        Que extinguiu sonho, extirpou força

                                        E, sem ânimo, prostrou a realidade.

                    Vertiginosamente ruiu a fé, o poder

                    E, impotente diante de um corpo,

                    Só, fraco, vazio, torpe, vi meu ego

                    Retratado em tantos monstros.

                    Instrumento, causa, consequência

                    Não importa, fui todas as coisas

                    Ou adjetivos, todas elas, tudo.

Interrompi uma trajetória, uma luz

Que não era minha e mesmo se fosse,
Não tinha tal direito; a partir daí
Fez-se tarde, falta, fardo, medo,
Fez-se ausência de quem nunca tive.
Fui o epílogo, inesperado e algoz,
De livro escrito por outros gestos,
Inserindo em meu próprio livro
O amargo capítulo de minha culpa,
A dura certeza de não haver desculpa.

                                        Continuarei a caminhada, a dois,

                                        Levando a minha vítima comigo,

                                        Eu também vítima de meu passado!


                                    PERCURSO

Quando então chegarem as lembranças, na lembrança deste céu

e teimosamente revigorar-se a esperança, na esperança deste céu

estarei regressando às reticências, na demência de sonhos incompletos,

vivendo assim o derradeiro lance de estrada que me leva até o depois.

Quando, então, voltar a ser garoto e não ser e fazer rir entre os moleques,

temperarei crepúsculos e alvoradas à fragrância de sonhos incompletos;

quando voltar a ser ninguém, ao ninguém que sempre sou,

no esquecimento, serei mero pó carregado nas asas dos ventos

 na plena orgia de saber-me nunca mais!


ALEGORIA

Cuidado que o bicho papão está

solto

o pão está caro e o dia está

roxo

e a luz acesa é a luz a pagar.

Cuidado, o celular estrila no bolso

apertado

e o riso de graça estraçalha

a vida no bocado

que fica na sua, continua nos homens,

na boca da noite, da fome.

Cuidado, o lado tem lado na rua,

devora tua própria escala

de nariz do palhaço, de morte 

que reduz tudo ao nada

e brilha à sombra da vida 

que se impõe ou pensa no nada

do teu tudo escasso que o vírus consome!


        O PASSEIO

Ia Maria

            Uruguaiana

            a Porto Alegre

vendendo vida

e ria tanto

e como ria

a Porto Alegre.

                Era o passeio,

                carro do ano,

                tão almejado,

                a Porto Alegre.

Mas de repente

bate em Maria

nos olhos turvos

à curva à frente

e o riso cessa

cessa o instante

e Porto Alegre

fica distante.

                Perdeu o Porto

                grande alegria

                com a Maria

                que chegaria.

                Cheia de espera,

                toda Maria

                que era linda,

                de Porto Alegre

                ficou na estrada,

                nem vinte anos,

                de Porto Alegre

                cheia de espera.

Em geada fria,

sem fantasia

a Uruguaiana

retornaria

e o passeio

tão esperado

restou Maria

 não consumado.

                Curva em Maria

                tanta existia,

                à curva nada

                sobrou a estrada!


                MISÉRIA

                                Tempo de pobreza

                                miséria dividida,

                                prato do dia

                                o sol do meio-dia.

À noite, as estrelas

e a água potável

da fonte inesgotável.

Enxuga o orvalho

de olhos, ranhetas,

espaços falhos, cabeça

no estômago vazio.

                                Imagina o mastigar

                                no deglutir gestos

                                engolidos em seco.

Tempos de pobreza

miséria esturricada

prato de dias a fio

a própria miséria!

Nem há mais razões,

estrelas, fontes, colmeias,

só misto de nada com tristezas.


MOLEQUE ENGRAXATE

Tão cedo para a vida acordaste

Moleque engraxate, tão cedo choraste

O choro que o mundo te provocou

Moleque engraxate a ilusão terminou.

Caminhas inseguro, moleque engraxate

Carregas na língua a fala que bate,

Pequeno e sisudo, arguto e vilão

Aprendes e professas outro palavrão.

Proclamas a glória de saber lustrar,

Tu que não sabes nem mesmo brincar

E o germe que viça em teu peito inocente

É o vírus do ódio que por tudo sentes.

O amor, infância são coisas banais

Sofres na carne realidade, punhais,

As feridas abertas não cicatrizarão,

Sucumbes ao vício, desconheces perdão.

Trabalhas agachado aos pés d’outra gente,

Pensa que dinheiro, moleque engraxate,

A tudo e a todos convence e abate.

Ah, quando te olho assim na sujeira,

Na altura do nada, criança fagueira

Deploro esta vida de muitos madrasta

Que divide os homens em classes e castas.

Vejo-te moleque, sem eira nem beira,

Pequeno engraxate entregue à fogueira

Do mundo imundo que bate e tonteia

E te fez tão jovem conhecer suas teias.

É noite e ainda tu andas nas ruas,

Perambulas sem dono, sem lar, continuas,

Apregoa tua fibra moleque falaz...

Moleque engraxate que pena me dás!


            RANCOR

Da caligrafia do tempo

    Despenca esmaecida

         Folha amarela, esquecida

    Ao peso dos contratempos.

          Fotografia de inverno,

             De tantos outros infernos

                  Das estações ressentidas.


DESILUSÃO

                    Eu o forte!

        Nada vendo em teus olhos,

Vi além, o reflexo dos meus.

               E sozinho amei,

            Inventei

       E arrebentei de nada.

Eu o forte! Eu, meu nada!


NENHUM POR NÓS


Flutuo em tua praia

Sabendo-me sozinho

E, só em mim, desmaia

O escuro do caminho.

        Na luz desse dia

        Que o sonho anuncia 

        Navego, me entrego...

Tu, na mesma praia,

Muito mais sozinha

D'outras madrugadas,

Feres como espinhos

As flores anunciadas

    E não se formam ninhos

    Na noite do enfim, sós,

    Aborta-se dia não nascido

    No escuro da indiferença.

Em nós e em cada um

Morre plural jamais vivido

Jazem corações e crenças,

           Tristemente, por nós, nenhum!


                                    SOL POSTO

                                E cai a tarde assim

                                Como a zombar de mim

                                Mostrando o que perdi,

                                Suspenso por um triz

                                O sol morre infeliz

                                Como eu também morri.

                                É tanto o encantamento

                                Na dor deste momento,

                                Registro a olho nu

                                E a cor da tarde calma

                                Esvai-se como a alma

                                Da tarde que foi tu...

                                Mas amanhã é certo

                                O sol aceso, esperto,

                                 Inteiro e renascido

                                Virá banhar de luz

                                 A vida que seduz

                                 Todos os sentidos.

                                Cá dentro o meu sol posto

                                Expulsa para o rosto

                                A noite em que estou,

                                Nenhum sonho me diz

                                Adiante, o dia feliz,

                                Da tarde que voltou!

        

                                PROSTITUTA

    Prostituta tua luta, tua labuta é imoral

    Usa o corpo que parece a manchete de um jornal

    Eu te acuso, ms te uso e te uso

    E te acuso de venal, pecadora, desgraçada,

    Sem vergonha e marginal.

            Prostituta te entregas a quem te pague afinal

            Te transformas na amante, na amada,

            No refúgio, na esposa ocasional

            E também no 'quebra-galho' mais bestial.

    Hoje o Pedro, ontem o Paulo, amanhã?

    quem sabe quem, pouco importa

    corpo máquina, não pertences a ninguém.

    Teu lar é a sarjeta, teu corpo, o 'ganha-pão'

    Tua alcova, teus abusos, em qualquer lugar estão.

Prostituta, filha pária, catalizas teus vinténs,

O amor tu desconheces, só dinheiro te convém,

Vives na promiscuidade, é dela que provéns,

Sem jamais ouvir-viver o caminho que é de bem.

            Prostituta, Madalena da era espacial

            Não tem pena, te condenas a viver pelo mal.

            Vês a filha que geraste, que vida ela terá?

            Seu futuro, oxalá, não seja o 'trottoir',

            Não tem pai, não terá mãe, não terá nada!

            Prostituta mais te acuso, mas te uso

            Embora queira te ajudar.

Prostituta tua luta, tua labuta é imoral

Usa o corpo que parece a manchete de um jornal.

    Prostituta te ajuda, volta à vida, te ajuda,

    Pede ajuda e perdão para os erros teus;

    Prostituta te ajuda e te lembras, te ajuda

    E te lembras que ainda existe Deus.


                LOUCURA

Parado, olhei essa distância

que o separava de mim,

as grades da cela o mantinham afastado

do tempo, alienado, suo, irreverente;

sem compreender sua realidade

nem seu destino, não opinava

e introspectivo, parecia triste.

        Olhou-me, devastando minha sanidade

        e em um lampejo de inteligência sã

        cuspiu-me toda a sua desgraça:

        "Joga-me quatro bananas,

        joga-me quatro bananas!", ordenou-me

        diante de minha surpresa e constrangimento.

Por um momento meu silêncio e sua ira se defrontaram.

À explosão de escárnio sobreveio a frase que o mantinha vivo:

"Vou matar todos vocês, vou matar! Um dia, vou matar!"

        Por que tanta agressividade? perguntei-lhe,

        "Agressividade? agressividade?...

        é que tu não sabes o que é ser louco!"

Recolhi-me à pretensa sanidade que detenho

com receio de meu egoísmo ressaltar meu ego

porque, quem sabe, louco tenha sido desde sempre.