segunda-feira, 28 de dezembro de 2015

ENSINAMENTOS DA VOVÓ ELOÁ

Da Série:

OS ENSINAMENTOS DA VOVÓ ELOÁ
Comecemos apresentando as partes protagonistas da série, de forma simples e sem muita firula eis que foi e é nessa forma direta, ao alcance do entendimento dos que são receptáculos das histórias narradas, que Vó Eloá, questionada ou não, ensina, indica, aponta rumos, relata fatos históricos ou míticos, às suas netas, uma de cada vez, à mais “velha”, Mellyssa, à do meio, Gabrielle e à caçula, Luize, todas, carinhosa e respectivamente apelidadas de “Mel”, “Gabi” e “Luli” ou “Leco-Leco”.
Dentre várias histórias que pretendemos narrar inteiras, oportunamente e uma de cada vez, iniciemos pela ocasião do Natal em que a Mel, tinha cinco anos, com a vó lhe contando que então se festejava o aniversário de Jesus Cristo que nascera em uma estrebaria com vários animais à volta, vaca, burro, ovelha, um monte de bichos de tudo quanto é espécie... - Tinha cachorro? - Perguntou a Mel - Não, acho que não, talvez porque naquela época não tinha cachorro. - Ah, bom. E burro, voava? - Não, nem naquela época burro voava. - Ahhn! E a vaca, p'rá que servia? - P'rá dar leite, mamá p'rá o menino. - Ahhn! E o Papai Noel deu brinquedo p'rá Ele? - Sim, só que foram três Papais Noel que na época se chamavam Reis Magos, uns dias depois Dele ter nascido. - Puxa, três, que sorte, hem! - Pois é.
Três ou quatro meses depois, chegava a semana da Páscoa, e a Mel, agora com quase seis anos e ainda possuidora da imensa curiosidade própria das crianças preparava-se, em ansiosa espera, para a chegada do Coelho e degustação dos saborosos ovinhos de chocolate no domingo quando ouviu, ainda na Sexta-Feira, Santa, que Jesus Cristo tinha sido crucificado, morto e, sepultado, deveria ressuscitar no Domingo de Páscoa, indo direto perguntar para a vó sobre o que ouvira. - Vó, eu ouvi uma história sobre morte de Jesussss!!! como pode ser isso?... Ele nasceu não faz muito tempo, no Natal, é um bebezinho, menor do que eu... como pode ter crescido tanto e, agora, morreu e vai ressuscitar... o que é isso,Vó, conta p'rá mim essa história de que mataram Jesus, é outro Jesus, n'é? não 'tô entendendo! - Não Mel, infelizmente não é outro Jesus, é Aquele mesmo que nasceu no Natal e tudo o mais que tu já sabe... - Mas, como pode... 

- Calma, vou tentar te explicar o que aconteceu: Jesus nasceu no Natal e se passaram trinta e três anos desde o nascimento Dele, por isso Ele tinha trinta e três anos de idade e se meteu n'uns rolos, aí prenderam Ele e lá no País onde Ele nasceu tem uma tal de pena de morte que é mais ou menos assim: prendeu, condenou, matou! e Ele foi preso, condenado e crucificado, morto enfim, sendo enterrado em uma caverna, uma gruta como chamavam. Três dias depois a Mãe Dele, que é também nossa, a Nossa Senhora que todos amamos, sendo a Mamãe do céu, ainda chorando a morte do Filho foi até o local e não encontrou seu Corpo, é que Jesus que havia ressuscitado horas antes, porque Ele é o Filho de Deus, renascera ou nascera de novo, então, três dias depois de Sua morte. Assim, Ele renasceu ou nasceu de novo, ressuscitou, no fundo fazendo repeteco, outro Natal, agora indo morar no céu com o Pai Dele. Entendeu?

 - Bah! Acho que 'tô entendendo... E, emendando de primeira, Mel perguntou para a vó - Coelho bota ovo? - Não Mel, coelho não bota ovo – Nem os de chocolate? - Não, nem esses! - Então de novo não entendo, o coelho, o ovo de chocolate, a Páscoa... - Bom, é bem mais simples do que tu imaginas, a soma do ovo, que é o símbolo de renascimento, com o coelho, que é símbolo da fertilidade, simboliza a Páscoa que quer dizer renascimento e fertilidade; renascimento é vida, o nascer de novo, ressuscitar como Jesus ressuscitou pois assim ele nasceu de novo, certo; fertilidade é multiplicação, criação e fonte de vida, de todas as vidas, como a minha, a do teu vô, do teu pai, da tua mãe, da tua tia, da tua própria, de toda nossa família, de todos os vizinhos, dos amigos, dos demais parentes, de todo mundo, de tudo... certo? - AAhhhnnn!

E lá se foi Mel a brincar, agora um pouco mais sabida, sem muitos mistérios e caraminholas na cabeça, afinal, logo ali, no domingo viria o coelho com seus deliciosos ovinhos de chocolate e outras gulosices (qualquer doce ou iguaria apetitosa)!

quarta-feira, 23 de dezembro de 2015

UMA CANÇÃO (HISTÓRIA) DE NATAL

UMA CANÇÃO (HISTÓRIA) DE NATAL
A NOITE EM QUE O MOLEQUE SOLOU “NOITE FELIZ”

Aquele dia seria marcante; a história haveria de registrar que, à noite, em pleno estádio Felisberto Fagundes Filho, do E. C. Uruguaiana, o Canto Orfeônico Vila Lobos, do amado Colégio Estadual D. Hermeto, iria se apresentar, sob a regência da professora D. Ieda, que cultuava, além das músicas eruditas e clássicas, para corais, arranjos de músicas populares como “Chuá, Chuá”, “Maringá”, ambas de Joubert de Carvalho, também “Assum Preto” ou “Asa Branca”, de Luiz Gonzaga e Guilherme Figueiredo e tantos outros clássicos da Música Popular Brasileira.
No início, ao cair da noite, foram acesas as luzes do estádio, único então que tinha iluminação noturna, precária se comparada com a iluminação atual do Beira Rio do querido Inter ou da Arena gremista, para a realização de jogos tendo ali jogado, com muito brilho é verdade, o inesquecível craque conhecido pelo nome, apelido melhor dizendo, de “Amarelo” (Luiz Amilcar Gimenez, querido primo do moleque) que iniciara sua carreira profissional no E.C. Ferro Carril, passando pelo E.C. Uruguaiana, ambos dos áureos tempos futebolísticos da cidade de mesmo nome e adiante brilharia e seria ídolo no Ipiranga de Erechim (à época da inauguração do Estádio Colosso da Lagoa), na Portuguesa de Desportos de São Paulo, no Glória de Carazinho, no Gaúcho de Passo Fundo onde, parece, encerrou sua vitoriosa carreira.
Entanto, após tal digressão em homenagem ao grande atleta, voltemos àquela noite, com “feéricas” luzes acesas também na árvore de natal ornamentada à caráter e o público chegando e se acomodando nas sociais e arquibancadas do estádio engalanado para o evento que se iniciou ao som da Banda da Briosa Brigada Militar que, solene e galhardamente abriu seu repertório musical com os Hinos, pela ordem, da Cidade de Uruguaiana (composto pelo carioca Sílvio Rocha) do Estado do Rio Grande do Sul (de Joaquim José Medanha e Francisco Pinto da Fontoura) e do Brasil (de Francisco Manuel da Silva e Joaquim Osório Duque Estrada).
Após executar canções militares diversas, a Banda da Briosa, entoou alguns marcantes e celebres hinos natalinos, começando pelas composição de Assis Valente “Boas Festas”, seguindo pela trilha americana do norte, com “White Christmas” (Natal Branco) de Irving Berlin, e outras canções de arrepiar, culminando com a majestosa, envolvente, terna, emocionante, “Ave Maria” de Charl Gounoud. Foi uma apresentação invulgar, digna do renome tido e havido pela Banda da Briosa que dignificava a Uruguaiana de então.
Tal etapa e prazer musical proporcionados pela invulgar Banda seria coroada na parte final da atuação da mesma e em continuidade ao show pela indescritível alegria da gurizada com a chegada do Papai Noel, vindo sabe-se lá de onde, em meio aos fogos de artifícios e canhões de luzes dirigidos ao céu marcadamente escuro até por terem os organizadores tido a brilhante ideia de apagarem os refletores do estádio e grande parte das centenas de lâmpadas que funcionavam como “bolas de enfeites” da gigantesca árvore de Natal postada bem no centro, onde se dá o primeiro pontapé inicial do jogo de futebol, e com a circunferência da base acompanhando a marca da cal respectiva. Foi esplendoroso, espetáculo digno e inesquecível para quem o acompanhou.
Concomitantemente à volta ou religação da luz nos refletores e na árvore de Natal, nas sociais e arquibancadas foram servidos à gurizada sacos de pipocas, balas Cremalin (caramelos de doce de leite –dulce de leche- fabricados pelos “hermanos” argentinos), brinquedos como bolas e bonecas, os mais comuns. Imaginem a o rebuliço criado... Imaginaram? ... pois, sem exagero, era o dobro, o triplo, o quádruplo, ou muito mais do que isso ou do que se consegue imaginar, para uma festa de Natal, em uma cidade do interior do Rio Grande do Sul, naqueles tempos de inocência e verdadeira solidariedade exercida por todos habitantes daquela cidade tão pródiga e generosa com todos que tiveram o privilégio de conhecê-la, vivenciá-la, amá-la! ...
Em meio àquela balbúrdia, ouve-se o som límpido, harmonioso e alto da Primeira Banda Mista do Brasil, conforme atestado passado pelo programa “Lira do Xopotó” da antiga Rádio Nacional do Rio de Janeiro, a Banda Vila Lobos do amado Colégio Estadual D. Hermeto; a canção musicada, naquele momento, era “Jesus Alegria dos Homens”, de Johann Sebastian Bach, seguida logo adiante pela música “Jingle Bells” (Bate o Sino) de domínio popular, e outras. Repentinamente a Primeira banda Mista do Brasil para em pausa dramática, no céu espocam fogos de artifícios e não mais do que três minutos passados, reinicia, “atacando” em volume baixo a introdução da música de Barbosa Lessa, “Negrinho do Pastoreio” e todos ouvem o vigor da vozes maravilhosamente afinadas e harmoniosa do coral Vila Lobos entoando a letra com a dramaticidade exigida pela mesma. Um encanto!
Sucedendo a tanto, sempre com o acompanhamento musical, de fundo, da primeira banda mista do Brasil, a próxima música cantada, com magistral arranjo e regência da professora e maestrina D. Ieda, “Luar do Sertão”, de Catulo da Paixão Cearense, acoplada, se é que é esse o termo correto, à música “Felicidade” do grande poeta e compositor gaúcho, rei da “dor de cotovelo”, Lupicínío Rodrigues.
Dentre outras interpretações do Canto Orfeônico volta à cena a música “Papai Noel”, culminando a apresentação com o maior de todos os clássicos natalinos de todos os tempos: a música serena, maviosa, harmônica, aconchegante e terna, “Silente Night”, de Franz Gruber, “Noite Feliz”, para nós, brasileiros... O Canto Orfeônico como um todo segue à risca o arranjo e assim, em determinado momento da música, reverbera sons de sinos natalinos e acordes de harpas vocais, enquanto acima disso, surge a voz do moleque qualquer, então possuidor de textura vocal entre o tenor e o barítono que seria logo adiante, vencida a etapa da “voz de taquara rachada” que a adolescência haveria de brindá-lo, com clara e afinada dicção, solando a canção, sendo acompanhado, quase em uníssono, por quase todos os espectadores daquele evento...
Ao que se sabe, nunca mais houve evento como àquele em Uruguaiana, as pessoas foram deixando de lado o Grande Aniversariante, o Natal, o mito do Papai Noel, a solidariedade, a fantasia e ilusão que, ao fim e ao cabo são os grandes tesouros da vida pois que, como dizia repetidamente nas manhãs geladas de Uruguaiana o grande locutor da Rádio Charrua (não sei se também o foi da Rádio São Miguel, a emissora do quero-quero), o saudoso Antônio Souza: “...o que gente leva da vida é a vida que a gente leva...” o que se acentua com a afirmação axiomática de que uma vida sem sonhos é um grande, infeliz e tenebroso deserto, um nada ao quadrado e por isso que convém e faz um bem enorme a todos, sem contraindicações, acreditar e vivenciar o que foi dito, escrito e sentenciando pelo poeta, o que ora se transcreve, relembrando para os amigos: “Amo o sonho que é a antessala de todas as realizações e o refúgio de todos os infortúnios!”... Façamos Natal em todos os dias de nossas vidas, começando pelo que ora transita travestido de hoje! …

segunda-feira, 30 de novembro de 2015

A MULHER DE BRANCO

               A MULHER DE BRANCO
                                                                                                                                                                                          (Itagiba José)

Segundo consta, o pai se chamava Agenor, a mãe, Cléamosa, Mosa para os íntimos. A filha, Domitila, a Domí, de uma beleza invulgar, morena de olhos e longos cabelos, negros como uma noite sem lua e sem estrelas, era a alegria e orgulho dos genitores que, dela, tudo esperavam, tudo amavam... A família, assim composta, era um oásis de felicidade, calmaria e ventura... Os moradores da Rua Santana, vizinhos da família residente naquela rua, quase ao lado do Clube Caixeiral, no centro da Uruguaiana de então, todos reverenciavam a beleza invulgar da menina Domitila, a Domí, de todos.

Domí cresceu, se fez moça, mademoiselle ou melindrosa, naqueles tempos de exacerbado modismo à francesa, teto cultural do mundo, a hoje denominada belle époque e ainda que tenha tudo ocorrido na distante Uruguaiana, Rio Grande do Sul, a Sentinela postada lá nos confins do Brasil, na fronteira com a Argentina e o Uruguai.

Claro que a rapaziada da Uruguaiana de então, pertencente a elite rural pré e dominante, vestia-se com apuro e, por isso era denominada janota, tendo-se marcantemente natural na indumentária o uso da bengala e do chapéu coco e a realização, nos finais de semana, do footing nas Ruas Bento Martins, XV de Novembro e Santana e na Av. Duque de Caxias, enfim, ao redor da iluminada e belíssima Praça Barão do Rio Branco (dizem, em evidente exagero dos orgulhosos brasileiros, gaúchos e uruguaianenses, ser a praça mais bela do Brasil) passeios repetitivos protagonizados por rapazes e moças, estas acompanhadas por senhoras mais velhas que elas, cuidadoras das donzelas, normalmente uma tia ou mãe de alguma delas que, timidamente, ensaiavam olhares de soslaio, flertes e namoros com os rapazes.

Após o footing, as moçoilas recolhiam-se às suas residências à espera de, quem sabe, um mancebo encantador viesse bater a sua janela com violões e cantos, em serenata, as saudosas e românticas serenatas origem de tantas histórias de amor quando vários rapazes saíam munidos de instrumentos musicais e muita “cantoria” pela madrugada, prostrando-se aos pés de portas e janelas das namoradas já conquistadas, outras mulheres amadas, namoradas à traição pois não e que esperavam conquistar, entoando músicas de serestas, de um romantismo ingênuo e inocência inolvidável.

N’uma dessas serenatas dirigida à casa de Domí por um de seus muitos “admiradores” e namorado à traição, Agapito Flores mais conhecido como Pitinho, aconteceu o encanto, iniciando-se ali uma história que teria que ser linda não fora o epílogo funesto e inesperado sofrido por ambos os protagonistas... A vida nem sempre é o que se planeja, se escreve ou descreve, seus desígnios são insondáveis, fortuitos, força maior, inestimáveis, imprecisos, como bem cantou e elucidou o grande poeta português, Fernando Pessoa: “... Navegar é preciso, viver não é preciso...”!

Na janela, derramou-se o cantor nos versos e música, sentidos e lacrimosos de Luzes da Ribalta (Limelight) de autoria de Charles Chaplin, na versão de Antônio Maria e João de Barro, o Braguinha, para, logo a seguir, culminar com “Deusa da Minha Rua” a bela página musical de autoria de Jorge Faro e Newton Teixeira. Enquanto a primeira falava de vidas e luzes que, respectivamente, “... se acabam a sorrir... se apagam, nada mais...”, a segunda declamava que a Deusa amada tem os olhos “... onde a lua costuma se embriagar...” e que “... o sol n’um dourado sonho, vai claridade buscar...”.

A emocionada interpretação, a lua cheia, as estrelas brilhantes e a inexplicavelmente cálida temperatura daquela hora, tudo colaborou para que Domí fosse tocada e se apaixonasse imediatamente. Em resumo, funcionou!!! Domí, ouviu e sonhou... Pitinho, a conquistara... daí, para ingressar em todo aquele cerimonial da época para firmar ou afirmar o namoro dito sério, com as intenções casamenteiras foi um passo, além do que Pitinho era considerado “um bom partido” às moças casamenteiras, eis que, coisa difícil para quem havia nascido no lado dos “peões” em terras de fazendeiros, sem indústria e comércio sazonal e ao sabor do câmbio, se alto o peso argentino, muitos “hermanos” comprando em Uruguaiana, se o cruzeiro, moeda de então, “todos” brasileiros indo às compras em Passo de Los Libres, quer para consumo próprio, quer para abastecer terceiros com os respectivos ágio no comércio “formiga” apelidado de chibo (nome espanhol do cabrito). A consequência de cada um desses eventos, desaguava no oposto à cidade cujo comércio restava vitimado, com a falência dos comerciantes e o desemprego dos trabalhadores da cidade atingida – diga-se ainda que pela estabilidade e progresso mais acentuado da Argentina, em maioria de vezes ou quase sempre, o negativo atingia Uruguaiana.

Abra-se parêntese para dizer de uma particularidade pouco divulgada ou conhecida então era que, quando ficava nervoso, Pitinho gaguejava, por isso chamado Gago pelos amigos de sua idade, não se sabendo como conseguia entoar, com sua bela voz e excelente musicalidade os cânticos das serestas, sendo, apesar de possuído por intenso nervosismo quando, um grande intérprete das canções, mormente da sempre considerada rainha das serestas, “Chão de Estrelas” de Orestes Barbosa e Silvio Caldas.

Pitinho era empregado “de carreira”, ganhando bom salário na portentosa Viação Férrea do Rio Grande do Sul-VFRGS, empresa que se consolidava no transporte ferroviário de então (transportando para todos os lados, passageiros, mercadorias, frutas, gados vacum, ovino, etc). Pitinho morava na Rua Sete de Setembro, na esquina da Rua Catorze de Julho, perto do campo do Esporte Clube Ferro Carril, do qual era sócio contribuinte, circulando naqueles quarteirões e ruas adjacentes como a General Câmara, a José Garibaldi, a Aquidaban (atual, Av. Flores da Cunha), a Prado Lima, a Vinte e sete de Outubro (atual, Gregório Beheregaray) e a Quatorze de Julho, onde desenvolvia atividades sociais e esportivas (gostava de praticar futebol, como lateral direito – não muito talentoso é verdade) e cultivava muitas amizades e convívios com rapazes e moças de sua idade, além de ser reconhecido como honesto, trabalhador, afável e educado. Ao que constava não tinha inimigos ou detratores, sendo muito considerado por todos que privaram de sua companhia e conhecimento.

E tudo se encaminhava para um final feliz para o casal, Domí e Pitinho, até que (porque será que em maioria de vezes tem que acontecer o “até que...”, não é muito justo, embora possa ser creditado a lei da vida, do imprevisível, do “estava escrito”, sei lá...) alguns dias antes do casamento marcado e com festa encomendada, programada, pronta a ser realizada no grande, querido e tradicional Clube Caixeiral, Pitinho desapareceu, sumiu como se jamais tivesse existido, nunca mais alguém ouviu falar dele, evaporou-se... Um estranho caso jamais desvendado, materialmente, pelo menos... Talvez um dia e como mero exercício de imaginação, juntando os cacos dos vidros estilhaçados desde aquele tempo e cada vez mais dispersos, se possa formar algum juízo ou histórico que, pelo menos, torne explicável o inexplicável e inexpugnável mistério do desaparecimento, para sempre, de Pitinho, o seresteiro apaixonado por Domí que foi impedido de casar com a mesma, sabe-se lá como ou porquê... Aliás, abra-se outro parêntese para dizer ou ratificar a quase natural destinação de Uruguaiana a casos extraordinários de aparições e desaparecimentos sem que se saiba origens, destinação, finais, como, quando, nem porquês... São os casos, exemplificativamente, do Velho Damião, o Sete Trouxas que nela apareceu sem se saber de onde e cuja “história” tentamos contar através de conto próprio antes publicado mesmo sabendo que não foi ou pode ser contada na íntegra, ou a do velho Jorge, o “Aviador do Lixo” que portava como se fosse parte perene de sua cabeça um boné ou “gorro” de aviador “das antigas”, da primeira guerra mundial portando um rádio galena, composto por uma caixa de fósforos com uma “pedra” de chumbo dela saindo fios de cobre, um aparentando “fio terra”, outro para ser contatado em possível “antena”, tipo rádio portátil sem dial, pilha ou bateria, instrumento que captava som das rádios emissoras de ondas AM (amplitude modulada); a casa escavada em terreno baldio onde morava o “Aviador do Lixo” era outro capítulo... mas isso são outros quinhentos...

Domí, abandonada na véspera do casamento, praticamente no altar, nunca mais foi a mesma... definhou acabando vitimada, após o indescritível sofrimento proporcionado pela doença maldita, a tuberculose que até ali não tinha cura. Domí morreu virgem, devastada pela doença que ceifava muitas vidas naqueles tempos da belle époque e pelo desaparecimento de Pitinho, jamais explicado... Domí morreu tendo em seus ouvidos o inaudível canto de seu noivo, jamais repetido, como a “Deusa...” de Pitinho, cujos olhos agora, como na letra, eram “... espelhos de minha mágoa... poças d’água, sonhando com seu olhar...” ou, mais lancinante e melancólico como Luzes da Ribalta, “... vidas que se acabam... luzes que se apagam, nada mais... é sonhar em vão tentar aos outros iludir, se o que se foi p’rá nós não voltará jamais...”! Sua roupa mortuária era uma espécie de vestido de noiva, alvo como a geada em que se convertera sua vida jovem e agora em fuga e revestindo internamente seu caixão, um tecido de puro cetim, também da cor branca, ratificando, exaltando sua condição de menina-moça, virgem, pura, inocente, casta, tão bela, tão triste, tão precocemente falecida...
Tempos depois da morte de Domitila, a Domí, morena linda de olhos e cabelos negros como uma noite sem lua e sem estrelas, começou a ocorrer um fenômeno inexplicável e que seria chamado de “aparições fantasmagóricas” para logo adiante ser “identificado” e, para sempre, repaginado como “Mulher de branco”, nas ruas e redondezas onde vivera Pitinho, supra elencadas. Tratava-se, segundo consta, do fantasma de uma mulher linda, morena, de cabelos longos e negros, envergando um vestido da cor branca que a cobria da cabeça aos pés.

A Mulher de Branco aparecia para as pessoas, provocando-lhes arrepios, suor frio e acompanhando-as por determinado trecho quando se evaporava no ar, sumia da vista do indigitado vidente, sem falar nada, sem esboçar sequer um sorriso ou um “buuu”, nada disso, apenas se postava ao lado e caminhava como se quisesse identificar a pessoa. Talvez a história mais contundente a respeito tenha sido a vivida pelo militar do exército, cabo Giuseppe que ao chegar na república onde morava com outros militares solteiros, em plena rua Sete de Setembro, noite de inverno, muito enluarada, céu cheio de estrelas, tudo pronto para “cair” geada na madrugada, viu aquela mulher linda, esguia, no pátio do vizinho, por entre os canteiros de hortaliças e, curioso, resolveu chegar perto para vê-la melhor, iniciar conversação ou prosa, conhecer, namorar quem sabe; ao se aproximar da “presa” ela se distanciou indo para mais ao fundo do terreno, para perto da “casinha” (nessa época nem pensar, não existiam, pelo menos naquela região pobre de Uruguaiana, os WCs ou banheiros de hoje), onde desapareceu. Intrigado, no encalço e busca frenética que realizava, Giuseppe abriu a porta da “casinha” acreditando que a linda mulher que vira nela se escondera. Foi a última coisa que se lembrava ter feito quando, por volta das seis horas da manhã, em estado de hipotermia, foi socorrido em plena sarjeta da Rua Santana, quase ao lado do Clube Caixeiral e levado às pressas ao glorioso e venerando Hospital de Caridade e, depois de identificado, medicado e recuperado sua temperatura corpórea, que voltara aos 36°C normais, ao não menos importante Hospital Militar da cidade. Giuseppe sabia que não dormira e, se fosse o caso, não sofria de sonambulismo, por isso jamais soube como fora parar ou deitar na calçada, em estado de pura inconsciência, em frente à casa que fora de Domí e nem a conhecera, tampouco sua história, afinal nem de Uruguaiana era posto que, “gringo” viera de outras plagas, da distante serra onde nascera e se criara, para prestar o serviço militar obrigatório de então, no glorioso 8º Regimento de Cavalaria, onde estava seguindo carreira, já cabo, rumo a patente de terceiro sargento, logo adiante...

Diversas foram as explicações para o caso extraordinário das aparições fantasmagóricas da “Mulher de Branco”, tendo, talvez, a mais plausível, verossímil ou de maior credibilidade, embora possa nem de perto arranhar ou explicar o insondável caso do desparecimento de Pitinho, que, mais a tuberculose, esta quem sabe também resultante daquilo, vitimaram a bela deusa Domí, seja o que todos comungavam como informação ou definição, afinal, Domí que morrera esperando o reaparecimento de Pitinho, agora o buscava nos locais onde mais ele estivera e detinha apreço, ali e ao redor de onde nascera, crescera e todos o amavam e o reconheciam...

Certo é que a Mulher de Branco, durante decênios “apareceu” para terceiros, normalmente em noites de inverno, muito frias, todavia muito enluaradas, com o céu cheio de estrelas brilhantes, em tudo repetindo àquela que, perdida no tempo, Domí ouvira, em meio a acordes sonoros de um violão muito bem tocado pelo grande Miguel “Dedo de Ouro”, sob o ritmo de um bandeiro agilmente tocado pelo ritmista Geada, dentre outros instrumentistas presentes e atuantes como o Charanga, a voz de Pitinho entoando “Luzes da Ribalta” e “Deusa da Minha Rua”, tão lindas, tão românticas, tão...!

quinta-feira, 26 de novembro de 2015

ORAÇÕES (*)

ORAÇÃO DO SER HUMANO
(Itagiba José)
PAI, Vós que sois
todo Poder e Bondade
dai-me Forças
para que possa enfrentar
os périplos da Vida
com Dignidade, Bravura,
Amor e Ternura
sem jamais prejudicar,
deliberadamente os outros.
PAI, que eu possa servir
àqueles que necessitam,
sem tropeçar na soberba
ou na cegueira da vaidade
e que, sempre, possa exercer
o que me foi destinado
sem frustrar os planos
que desde a eternidade,
creio, me tens ofertado.
PAI, por me saber fraco,
dos meus pecados
espero Vosso Perdão,
dos meus desatinos
a Vossa Compreensão
e que meu finito
esteja em Vosso Universo
Caminho, Verdade e Extensão,
para atingir o Infinito
com que Adornastes minh'alma.
Amém!
ORAÇÃO DO IDOSO (Itagiba José)
Agradeço-Vos meu Deus
pela Vida que me deste
e que já vai para o fim.
Perdoai-me por ter feito
muito menos do que podia
deixando de exercer a plenitude
do amor e talento que me Destes
e frustrado Vossa Expectativa.
Perdoai-me por não ter ajudado
a todos como poderia tê-lo feito
e quando o fiz, se é que fiz,
tenha pecado por orgulho.
Perdoai-me por ter me omitido,
por medo ou por egoismo,
quando não agi ou realizei o bem
em benefício de terceiros
mesmo sabendo ser fácil fazê-lo.
Agradeço-Vos meu Deus
Pelos amigos e familiares que me Destes
pelas alegrias, dores, expiação e perdão
dos males e pecados causados,
e Tenhas sempre me carregado
em Vossos braços, dando Vossa Luz
à minha escuridão, Paz e Conforto
aos meus tormentos e amarguras,
Agradeço-Vos pelo Amor de Maria,
Imaculada Mãe, Advogada nossa
que me socorre sempre com Afeto
e pelos anjos e santos que me protegem.

Amém!

(*) A pedido dos amigos Marlene e Carlos Barth, católicos que ao tomarem conhecimento das orações supra, solicitaram-me a divulgação por entendê-las aplicáveis a todos.

terça-feira, 3 de novembro de 2015

NORMAS


Debates entre leis e normas
com tudo isso me informas
sob outro ângulo, o fato,
pois a Norma, que eu sei,
vive complicando a Lei,
socialmente é um desacato.

É substancial nas ancas
com seios, coxas e “banca”
contendo tudo “deeemaiss”
e esse belo vasilhame
a leva, toda infame,
ficar entre as “dez mais”.

Seu continente atrevido
não se prende no vestido
que nada esconde, pudera,
na Norma, toda especial,
nada existe de formal
e dela tudo se espera.

Ah! tua norma é recato
que se previne de fatos
e encerra um mandamento
que levado ao resumo
vira uma Lei de consumo
que me será instrumento.

Das normas aqui tratadas
não confundo, quase nada,
apenas minha preferência
pela primeira, confesso,
à outra estou de recesso
mas entrarei em sua essência.



(Poema escrito na Faculdade de Direito da UFRGS, em 1975, a propósito de aula em que se debatia conceitos e pontos, dissidentes e coincidentes, entre Leis e Normas – recuperado pela colega Lúcia).

sábado, 10 de outubro de 2015

NO ESPELHO


Tu que me falas desse modo
com a autoridade da aparência
e, na essência, te manténs indiferente
nesta estampa que deténs: Nada és!
E me informas: Nada sou também!
Do espelho, essa imagem me provoca
e desloca à estampa envelhecida,
os pesares que os anos a cercaram.
E assim, muda, falas e me espanta
dançando impune na frieza do aço
escancarando essências transparentes.
Tu, oposto e aparente, percorres o fio
da existência que passa ao largo
em vicissitudes que os fulcros mostram.
Tu em mudança, o eu que está agora,
o eu chegado do que tu demonstras,
aparentemente, em verdade, aparentemente...

ELIPSES


E assim a força centrífuga me atinge e o mundo roda
E a roda sou... Em nada sei e penso...
Embora o receio e a curva,
Sigo empurrado e sacudido por sonhos
E o sonho sou... Em tudo, sei, o escuro...
E o remoinho dos passantes e certezas
Aderem-se ao menino
E menino sou, de espirais incertos...
E, perplexo, alcanço o nada e o tudo
Inventando a vida
E a vida sou, desfolhando cinzas.
E rodo a curva, o tempo corre
E movo o novo do infinito hoje
E o hoje sou, em amanhãs que tenho...
E o mundo m eu se chama enigma
E rasga o antes e o depois
E o antes e depois sou, em mim o espaço,
Como o tempero de todos os meus tempos
Que este tempo urde
A curva próxima espera-me em seu todo
De recriar mistérios ao menino moço...

"EUS"

“EUS”
Itagiba José
... E assim se apresentam,
eu e os outros “eus”
que em mim habitam
e são muitos, muitos outros,
dos serenos aos afoitos,
dos néscios aos que criam...
...Às vezes sou a pedra,
outras vezes, a atiradeira,
n’outro momento, a vidraça,
o ocaso da cremalheira
do tempo, do “eu” que passa
nas incertezas do passo,
nas incertezas do espaço...
Com todos os “eus” juntos
em uma só vez, me acho,
misturando o cada qual
n’um singular conjunto
sendo, ainda ali, um plural
como o pedúnculo e seu cacho...

sexta-feira, 17 de julho de 2015

NO FUNDO DO COPO - Continho


Mais um dia de trabalho. Mais um esforço despendido em nome de algo indefinível, algo assim como a auto conservação nem por isso, ou quem sabe por isso, deixava de buscar no fundo do copo, alegria efêmera da ilusão que lhe faltava e que, ausente do ser humano mata-lhe a humanidade.

Finalmente tornava-se o bravo guerreiro, herói vilipendiado, vitorioso de tantas batalhas invisíveis e inaudíveis, que fremiam e lhe empolgavam tanto a ponto de fazê-lo babar pelo canto da boca no gozo profano da entrega e refrega que gloriosamente alcançava e vivenciava. E a vitória vinha pelo torpor que se agasalhava em seus poros, em sua consciência, provocando sono e, ao mesmo tempo, agitando-o tanto a ponto de expulsá-lo; enfim, a luta constante entre o bem e o mal, pela fuga que escolhera como princípio, meio e fim...

No outro dia, mais um dia de trabalho, à cabeça o peso dos ecessos da noite anterior, álcool e drogas misturados, nos ombros o peso do mundo que o aniquilaria, um dia. Era preciso passar pelo dia para receber a noite e a dose de otimismo que, paulatinamente, lhe roubaria ou dele expulsaria a consciência de sua fraqueza e miséria.

Aos poucos foi deixando de cumprir sua quota de sacrifício e, simultaneamente, aumentando sua quota de ilusão roubada aos vícios... com isso se decompôs em fatores para ser ou atingir pretenso total que obviamente jamais seria ou conseguiria.... E bem ou mal assim viu fazer-se fenecer, morrer até, sua capacidade de sentir vergonha, pesar, remorso, de exercer-se gente; despido de tudo, vagou pela cidade e por seu próprio e desolado ego só, triste e sem rumo, descobrindo-se espantalho de corvos inexistentes viu-se mais furiosamente empinando copos, olhando seu fundo que, mais e mais vezes encobria... Tudo era sempre, tudo era dia, tudo era noite, sem divisões o tempo sequer desnudava, nem precisava, sua própria unidade chamada momento cujo cálculo exato pertence somente a Deus.

E assim andou e continuou andando trôpego, até aquele dia, mais um dia de fuga, sem retorno em que, sentado na sarjeta viu o sol levantar-se diante dele e acreditou que, finalmente, o maior espetáculo da terra chegara só para ele; disposto a regê-lo, levantou-se e de braços abertos caminhou rumo a alvorada. Arrepios passeavam livremente em seu corpo enquanto sentia que todas as correntes e cadeados se desprendiam, liberavam-no sem a necessidade de um copo que fosse.

Dentro de si, o mar fez-se ponte por onde a terra chega ao céu e nunca se sentira tão livre e tão integrado a um sonho quanto neste momento. Apressou o passo de encontro ao sol e recebeu seus primeiros raios no peito cansado e cabeludo. Sua alma enfim parecia em paz, a própria paz voltara e tudo voltava a ter sentido...

Alguns dias depois, o mar devolveria à terra, um corpo inchado, deformado, que alimentara peixes em obediência às leis da natureza... o mar ou muito além dele, o infinito, retivera para si a alma que um dia fora o invólucro daquele pobre e maltratado corpo... O vento, pensam alguns, sussurrava por entre as ondas, areias e ouvidos: “...Nem tudo acabou, nem tudo acabou...”.

UM ESTRANHO CASO DE INCÊNDIO - Continho


Engraçado, a primeira coisa que lhe passou pela cabeça naquele momento terrível foi, exatamente, jogar água, muita água pelo corpo, pela roupa, contra àquelas chamas que lhe lambiam, queimavam e o faziam, finalmente, crer que o inferno realmente existe!

Mais interessante, ainda, é que a fumaça o fazia sentir-se pesado, embotando seus sentidos, todavia, sem sufocá-lo ou intoxicá-lo; ele movia-se com certa dificuldade, pesadamente, enquanto uma sensação de ardência ou ardor tomava conta de seu corpo e de seus olhos.

Sabia que precisava fazer algo, sair dali correndo, caso contrário, parecia, morreria “assado”, porém como iria consegui-lo? se nem sabia como chegara ali, não conhecia aquela casa, jamais a vira e, sinceramente, nem sabia como fora apanhado naquela situação. Tudo era tão confuso, etéreo e obscuro, entretanto, o calor era sufocante, real, existia e queimava, a fumaça, o terror anunciando o apocalipse... Sua mente se recusava a recuar no tempo tornando o passado uma incógnita, nebuloso como o ambiente em que agora seu corpo e alma se encontravam, aumentando sua tensão neste enigma! Estava ali molhado e ardido, com o inferno em sua volta queimando até os maus pensamentos, em desespero, agitado, confuso e com medo!

De sã consciência, como se fosse possível conservá-la sã naquela situação, não saberia contar com a precisão que agora se faz necessário o que se passou posteriormente. Lembrava-se da sensação de buscar mais e mais água e, conseguindo encontrá-la, vinda sabe-se de onde, nela lambuzou-se, molhou-se todo e na busca daquela pequena brecha que parecia ser uma janela aberta impetuosamente jogou-se por entre às chamas com suas mãos cobrindo seu rosto, ultrapassando-as e chegando à abertura que de fato era uma janela só que localizada à respeitável altura, como se fosse um segundo ou terceiro andar, não soube definir bem, todavia consciente de que estava muito acima do solo porquanto vira, de relance, intensa movimentação lá em baixo, na rua que, tampouco, reconheceu onde era ou se realmente era uma rua. Voltou-se então às chamas com o olhar de quem busca uma melhor solução, ponderando se melhor seria se jogar à rua, com o risco inerente de morte ou, em melhores hipóteses quebrar pernas, costelas, braços, enfim, sabe-se lá, todos os ossos, ou voltar às chamas, atravessá-las em busca de outra saída, quem sabe uma escada, pagando o preço de mais uma ou algumas novas tostadinhas. Não dá para precisar com muita exatidão o que houve de fato, só soube que pensou ter visto um vulto, diminuto é verdade, que pareceu mover-se atrás das chamas e que, n’um impulso insensato e irresistível foi arrastado para junto do mesmo, jogando-se através das chamas, desprezando a relativa segurança que a janela lhe dava, em síntese deixando o purgatório, voltando para o inferno, sem muito pensar, como se fosse possível pensar, então. Além das chamas encontrou um corpo caído, era de uma criança, de, quem sabe uns sete ou oito anos que desfalecera sufocado pela fumaça e cujo corpo já apresentava pequenas queimaduras em algumas partes.

Seus braços, suas mãos, seus olhos, mais, muito mais do que todo o resto do corpo, lhe ardiam, seus cabelos crepitavam, ficando mais crespos do que realmente o eram; em alguns pontos a própria roupa, agora seca, iniciava a queimar. Tomou a criança em seus braços e a sensação de torpor, de impotência, de terror até, que gelava seu sangue, dele tomou conta... De nada, absolutamente nada lembraria adiante, exceto uma vaga impressão de que voara por sobre as chamas com a criança em seus braços e pousara com ela na mesma janela, o purgatório onde antes estivera e ali, bem ali, agora viria lhes alcançar o socorro, através dos Bombeiros, heróis anônimos com sua escada mágica!

Na manhã seguinte, acordou em sua cama com as mãos, os braços e algumas partes do corpo, ardendo, quase em carne viva, com visíveis sinais de queimadura. Por um bocado de tempo ficou sem saber o que acontecera realmente e após muito pensar, não teve, nem muito tempo depois, nem hoje tem ou encontrou explicações plausíveis para o que denominou como um fenômeno chamado “Um estranho caso de incêndio”. Sabia que era bobagem, mas a única coisa que realmente lembra com inusitada sensação de alívio e alegria e que restou íntegra daqueles momentos cruciais é a de voar por sobre as chamas carregando uma criança nos braços, como se fosse, voar por sobre as dificuldades e sofrimentos que todos sentem aqui ou acolá e volta e meia machucam, levando no colo a esperança.

Em rápida retrospectiva naquela manhã conferiu que ontem havia sido treze, logo hoje é quatorze, tudo confirmado pelo calendário ao seu alcance; lembrava-se que fora deitar por volta das onze e meia ou quase meia-noite, em sua casa e que, cansado, adormecera quase imediatamente; não era sonâmbulo nem dado a sonhar ou se lembrar de ter sonhado, por mais adoidado que tivessem sido como o que achava ter tido. Teria sido sonho ou, e muito mais para este lado, pesadelo dos bravos e tão real que lhe deixou marcas, dores e, principalmente uma terrível preocupação com a próxima noite e todas as outras noites que virão...

Ainda sob o vendaval e vertigens das tantas interrogações que lhe soterravam foi procurar nos jornais da cidade notícias sobre possíveis incêndios, nada encontrando, não ocorrera nenhum incêndio digno de anotação jornalística, muito menos salvamentos de quem quer que seja. Como explicar as queimaduras? Como? Se tivesse acordado com a cama molhada diria que, inadvertidamente, urinara na cama e, embora o desconforto, tudo estaria bem e, exceto pela falta de explicação das queimaduras, pelo menos a água faria sentido... Acordar pronto para enfaixar os braços e mãos com gazes e pomadas, tenha dó, é pior do que trocar fraldas, pois não?... Não fossem as queimaduras teria certeza de que fora sonho porquanto a sensação de voar, o calor, o clímax e o heroísmo somente poderiam ser explicados por esse lado, ora... o fantástico é que não conseguia e acreditava que nem mágico conseguiria, explicar o inexplicável: o quê que realmente acontecera enquanto dormira, aparentemente, tranquilamente, afinal acordara pela manhã na sua própria cama onde deitara na noite anterior... Era um caso sério, insondável...

...

Enquanto isso, cerca de 1500,00 Km, ao norte dali, o único jornal da pequena cidade em estrondosa manchete relatava, às minúcias, do incêndio ocorrido no prédio mais alto da cidade, o edifício Chico Xavier de portentosos três andares, durante a madrugada, enfocando com grande alarde o salvamento de uma criança, de oito anos de idade, feito por um desconhecido que, vindo sabe-se lá de onde, logo após o feito heróico, desaparecera em meio a confusão que se forma nessas ocasiões, ao que parece, ferido e sem esperar os agradecimentos ou as homenagens que, juntamente com os Bombeiros, certamente lhe seriam endereçadas...

quarta-feira, 20 de maio de 2015

ASSIM, ASSIM...


... E fico assim
embalando entre meus braços
a imagem difusa de ti,
nua e bela, ali, bela e nua,
meu endereço, todas as ruas,
mesmo contexto, toda ternura
passeando em mim, toda textura
que se derrama entre meus passos

... E fico assim
em mim dançando toda luxúria,
andança telúrica
dos meus descompassos...
Meu quase tudo, meu quase sem,
um pouco além do fogo lúdico,
um muito além, no muito além,
dos teus abraços...

terça-feira, 7 de abril de 2015

Lâminas


Na lâmina d'água
vidas
que não vejo,
mas que enxergo
no voo cego
da imaginação...

Em teus olhos,
vidas e espelhos
d'alma
onde entrego,
em voo cego,
o coração...

sábado, 14 de março de 2015

JOGOS


Tudo isso, hipóteses, quer dizer que temos um pouco menos desse muito mais, 
ou, para sermos heterodoxos e verdadeiros, um pouco mais desse muito menos!
E ao pensar ser mero jogo de palavras, sem hesitar diremos ser menos letais
que os sombrios e exatos jogos dos números e estatísticas,frios e impessoais
(que no afã de mostrar tudo abraçam o nada). Aqueles menos, aquecem mais.

Olhar o que contemplamos, contemplar o que olhamos, eis a diferença
(que parece não valer uma vírgula) maior, profunda, mística e intensa,
mais infinita que as entrelinhas escritas nas estrelas e nos buracos necrosados.
O hoje não estanca a fantasia, o sonho, ao contrário, os realimenta, os reanima
e disso virá o amanhã, ainda que travestido da palidez de corpos saciados.

Adiante, brilhante soma de trevas e luzes, dará o rumo desse voo cego, n’outro plano, tempo e templo que a fé ensina e determina... Eterna é e assim será a vida
convém reconhecer, vivemos e morremos sem alternativa, ao rimar da sorte

n’um pouco do teu eu, n’um muito do meu ego... Eterna também é e será a morte!

ESOTÉRICO


Corta o espaço da boca da noite o riso nervoso de bruxas e duendes,
assustador, febril, estridente bate nos ouvidos da gente como açoite
e pior, bem pior, jorra a adrenalina no fluxo sangüíneo, gelatinando artérias
do cenho franzido à boca tão séria, os poros explodem em medo de esquinas.
E tudo se passa n’um pavor crescente que a lua reflete e esconde, demente,
dragão e São Jorge em luta mortal - Quem venceu, quem vencerá? -
Nas mãos, o destino - passado, futuro, presente - As cartas não mentem...
Astros comandam os homens, o mítico adorna a corola da estrada.
e o terror está no ontem que passou e não volta.
O hoje e o futuro (que nem sempre chega), vestidos de mel ou de sal,
são páginas que pairam solertes entre os mortais, vindas do antes...
... Flertes do agora, para o nunca mais...

EQUAÇÕES


Sim, todos os mistérios podem ser desvendados ainda que em séculos.
Solucioná-los, eis o desiderato dos homens - do prático, ao sonhador -
Não venham, entanto, pintar quadros sem os matizes da magia, do mítico
(do que solução depende para parir novos mistérios).
Somos a soma e divisão de tempos idos e dos tempos que virão,
também dos próprios mistérios dessa graça atemporal chamada vida;
ela, como o próprio tempo e todos os mistérios, cabe inteira
na figura pura e curva de todas as circunferências onde o tudo e o nada
convivem, se entrelaçam e passam e passam e tornam a passar eternamente... De perto, na primeira fila deste espetáculo, mudo e zerado,
o destino de cada um aplaude e se realiza travestido de incógnitas...


SOMBRAS



Espeto nas sombras do avarandado de uma casa esquecida
um filme em preto em branco. Vida, minha vida!
Ali adiante, parece, o campo é menos cinza, quase verde
sublimado de um tempo de vir ou ser, de esquecer-te!
A pálida noite se dissipa na penumbra do nada ter,
na reminiscência dolorosa, fria, ah, e sem prazer.
A terra como espelho de meus olhos explode úmida,
gotas de orvalhos esculpem, à punhaladas túrgidas,
o meu jamais na geada dos atalhos...

Repete-se a cena à sombra, maior, espanta e se repete
o filme, preto e branco, vida, minha vida, marionete.
O vento povoa o nada do antes, repassa o que me esmaga.
Cai o pano, a alma adormece e, parece, esquece!...
N’algum lugar do sempre a cena se apaga...

CONCLUSÃO



Consoante o escopo desse atual contexto
de nada valem agora, minhas alegorias
nem o sinalizar de um novo texto,
nem luz dissipada de inexistente dia.

Não há culpados pelo quanto noto,
talvez nem saibas o que procuras,
contaminamos as águas deste copo,
gotas de estupidez mataram a ternura.

De nada valeram nossas descobertas
e a intolerância indicando a sorte
matou o ontem, fez-se porta aberta
para o até sempre de nossas mortes.

Leva contigo, ao menos por esporte
os bons momentos e, na hora certa,
quando teus passos encontrar teu norte
saudade minha, então, em ti desperta...

CONDIÇÃO HUMANA


Luz, luar, brinquedo, rua
continua a prece desta noite tenra
e lá se vão arestas, frestas, prendas,
quedando impunes ao raptar ternuras.
Ah, vaga-lumes destas claras asas
que enternecem escuros esvoaçando nuas
nas cordilheiras puras de tuas encruzilhadas.

Raios perdidos, mal nascidos,
nos sonhos pálidos do nunca vem
do trem do dia, aguçam mistérios
na noite plácida que avança invernos
resfriando tudo em gélido abraço
de desvalido cansaço, cálido...
No horizonte, buscando espaço,
aponta à barra tênue, uma luz difusa,
que, n’um crescendo partejar de musas,
inunda a terra com a vez do dia.

Assim é a vida, assim o é, repetia,
o velho mestre ao discípulo atento
sem preconizar ou refletir lamentos,
são vários ciclos dentro de um, apenas
Do mel das graças ao sal das penas
há que vivê-los, noites, dias e alvoradas,
pois cada passo nessa caminhada,
ao rumo frágil que ao longe some,
deixa pegadas, forma o universo
e o merecer à condição de homem...

CINZAS

Nos confins desse desate, calmaria, desempate, para a nau no quanto baste.
É chegado o entardecer...
Luz de vela, tremulante, já não há seguir adiante, nem retorno ou pode ser.
Falsa calma reprimida toma conta, entorpece, fecha os olhos, faz-se prece,
n’uma dor quase suicida... Esquecer, prostrar-se em nada,
não existem madrugadas, nem há mais alvorecer...
A contagem regressiva atropela o recomeço neste ser que se completa
pelo avesso dos sonhos, metáforas e limo das metas, por onde derrapa a vida...
Como enfim, disse o poeta, se há um barco ancorado nas águas do improviso,

navegá-lo é preciso, desde o sempre até o fim...

CÁLICE


O que olhos e mãos invisíveis da alma viram, tocaram, sentiram
não está ou cabe em enciclopédias, nem pode a história marcar a palma.
Nem tudo foi ou está escrito; existem comédias, tragédias, crises,
ilusões e passagens de infinito, nesses desvãos do ontem e do agora
que teimam passar como que por fora de sua dimensão real e absoluta.
Adiante o nada a tudo espreita - e desse nada se refaz a luta -
E desse nada, a oração refeita...
Passam entre guerras, vitórias e derrotas, diversas rotas do passar efêmero
perseguindo luas, desdobrando espelhos, nos insondáveis fundos desse medo.
Há que se ver além das reticências, mesmo ao galope desse desenlace,
porque do alçapão das consciências escapam sulcos que povoam faces...
E na agonia da dimensão transitada a vez do tempo é sempre a estrada
íngreme, curva, escassa, torta, presa aos desígnios de inexcedível força...

LÂMINA


Um longo punhal de lâmina afiada,        
ares soturnos,                                          
corta a garganta de uma alvorada,          
desatando raios, explodindo almas...      
E do noturno ido, sem palmas,               

restou esquecido o confete de lágrima.  

Apesar disso, eis que surge o dia
parindo ilusões na manhã que chega
reciclando águas que ficam presas
à umbelical febre dos que odeiam.
E os teus olhos, de minha elegia
ironicamente consagram toda agonia!...

PERDIÇÃO


Assim indicam os tormentos n’uns goles, vai-se o afago
a tempestade é eterna n’águas que a poeira enxugou.
E se há luz no firmamento, pueril indago o que sou...
Não cabe em tua lanterna. no labirinto das horas,
as pilhas nesse desplante golpeado pelo fugidio agora,
que pouco sabe do antes que nunca foi, nem passou...
menos sabe sobre a guerra, buraco negro, quem pudera,
que mistura sangue à terra...

E sem luz neste ainda triste
que me arranha a garganta temporal que em mim ficou,
em meus gestos, medos, fobias, desde quando tu partiste,
em fantasias que trago para aguentar minha espera...


VINHETAS

    
Passam ao largo, vinhetas
Que se encontram no infinito
N’um concreto apressado
Nelas o infinito meu
E no meio fio da sarjeta
Descobre o nós com o seu
Navalhas cortam passados.
Despido de qualquer mito...
Nem tudo é o que parece
Sai, chega, vai, volta
O direito do anzol é torto
Pelas trilhas desbotadas
Perder a vida é estar morto
Expandindo nas estradas
E na morte a gente esquece...
Um quê de natureza morta
Os trilhos são paralelos
Que se acende e revigora
Com começo, meio e fim
No sim d’alma rejuvenescida
Em verdade, são assim
Pelo sopro que produz a vida
Com a aparência daquelas
Pelo vigor d’uma nova aurora!


quinta-feira, 5 de março de 2015

LUA

Na natureza quieta,
uma manhã desperta
esmaecida e fria,
partejando o dia.

Tenta proteger o corpo
-do frio que não sofro-
pobre mulher de rua
conhecida por “Lua”!

Essa mulher -quem sabe-
vivida, de tantas fases,
pintou mil céus em quase
bem e de mal me quer...

Foi muito linda quando nova
e dessa beleza retém provas
na face, no olhar esquivo
quiçá brilhante, quiçá ativo.

À herança, como horizonte,
expõem uma lua sob a ponte,
fantasmagórica volta do ontem
na derradeira fase minguante.

DUALIDADE


Sei que vais dizer: “tem nada a ver, o que ocorreu é banal, pode esquecer”,
não é assim, p’rá mim (e nem será), o que passou, não passará...
Fui todo presa, ceguei de luz, feliz (até por crer que eras feliz, sei lá...).

Agora que dizes, passou p’rá ti e passará p’rá mim (tem nada a ver),
banalidades p’rá esquecer, vejo que fui nem aprendiz de feiticeiro, me iludi
querendo eterno e verdadeiro o céu que nunca esteve em ti...

Eu que o criei tenho de agora, não importa como ou em que hora,
apagá-lo na senda última do coração... Desilusão, tudo escurece...

E o que foi ou pensei ser... Esquece!... Esquece!...

terça-feira, 3 de março de 2015

CEGUEIRA


Não deixa de ser uma questão relevante diante da retórica repressiva
este andar/rodar/girar maluco, desses calcanhares
que pisoteiam e machucam o passar incólume.
E nem adianta o repisar, como o acende/apaga dos vaga-lumes,
desse seguir o verde e o espiral das horas que chegam com pressa
e depressa se vão embora, contaminadas à loucura de um ficar efêmero.
Os homens enfermos do que odeiam não se dão conta e mais se afligem
que o imenso peso do quanto fazem é o infinitesimal do quanto dizem,
sendo o maior de seus defeitos, a tentativa de combater os efeitos
e não as causas que, vãs e perenemente, tantos os oprimem.
Mais que isso, cegos se entrechocam (moscas tontas dançando o repetido,
enfadonho, sinistro, triste, solitário e algoz exercício do egoísmo)
sem se darem conta que importante é viver muito além do se sentir vivo,
não apenas para si, muito mais para os outros na alegria do pão dividido...
Enquanto isso, a Natureza vilipendiada e agredida grita, indica e explode
partejando vidas e, além disso, ensinando que viver o nós ainda se pode...

CIRANDADO


Guardei na bainha a adaga... àquela, ainda suja do sangue da vaca amarela:
Quem mandou fazer aquilo, um dilúvio na panela, mil quilos da amarela?
Perdi mais de mil rodas, sem perder rodas cutia,se p’rá alguns saiu de moda
Quero, só para as gurias, cantar verso pé-quebrado, de maçãs e melancias...
Quem mandou rodar o tempo esquecido da titia, perder noites, perder dias,
perder sopros, alquimias? Foi Jó que teve escravos, rosa, cravo, cachimbó!
A ciranda que foi “inha”, cirandou e fez passar, volta e meia, meia volta,
quem mais deu?.. quem mais vai dar?... os guerreiros da vovó?
Quem mandou perder os dedos pelo vidro do anel?
Quem mandou perder-se em medos e ser o bobo do quartel?...
Sou pobre, pobre, pobre, lá da ponte do Ibicui, passam ricos, os nobres, todos passam por ali... Tu também passa em mim pela ponte do Ibicui,,,
De marré, marré, deci *, pedir filha em casamento é negado ainda assim...
Quem mandou negar a fé se a riqueza está no sim? Oferecer ouro e prata
Até sangue de barata, sem conseguir ir até o fim
destes passa-passarás em que se quer passar, ficando com o que não vinha
de um futuro que estava além de lá, em amanhãs que a gente tinha...
- Quem mandou trancar porteiras às escoriações vividas?
Quem mandou fechar fronteiras sem curar todas as feridas?...
Por isso dona vida entrei dentro dessa roda rodando espirais de nada,
sem dizer frases bonitas, sem saber quando e quanto era a entrada...
Quem mandou viver saudades da infância que era tão minha?
O tempo não tem idade ou instância que eu nem sonhava que tinha...
E as brincadeiras antigas, de roda, prazer, cantigas, repassadas em folhetim
enquanto um inocente sorriso volta inteirinho p’rá mim...


*(Marais, bairro pobre de Paris, França; o de marré, marré, deci, da brincadeira é corruptela da expressão “marais je sui”, cuja tradução literal para o português é “de Marais eu sou”).

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015

... OUTRAS, DO MOLEQUE ...

 ...OUTRAS HISTÓRIAS DO MOLEQUE...
                                                                                                                 Itagiba José

Naquela manhã, que não era um 29 de junho qualquer, ainda que como todos os demais estivesse muito frio, o moleque fora acordado e obrigado a levantar da cama muito antes do que gostava, por volta das 07:00 ou 08:00hs da manhã, “um crime”, acreditava... mas à força de gritos e xingamento, logo ali o relho trançado de oito, fez com que ponderasse sobre a questão e o melhor caminho a seguir, isto é, ir ao “tambo” de leite buscar o leite à mamadeira da irmã menor...e já, conforme sua mãe mandara enfatizando o “jááá!”, triplicando o “á” em muitos “ás”... Lá fora o ainda sonolento moleque berrou sua inconformidade verbalizada à altura da desobediência, teimosia e imprecações...

Adiante-se que o moleque fizera, com vários outros moleques, (con)“tratos” que tinham de ser cumpridos sob pena de pagamento de “multas” também previamente estipuladas; ditos (con)“tratos” eram, por exemplo, o do “verdinho” que consistia em portar, sempre, no bolso da calça ou da camisa, uma folha verde, arrancada de plantas e ao se encontrarem, os (con)“tratantes” desafiavam um ao outro com o repto: “verdinho aí, não pago arrancar...’ quem tinha o verde consigo apresentava de imediato, azar do que não tivesse pois lhe era exigido pagar a “multa” estipulada; dentre outros, também se sobressaía o “trato do tapufe!” que consistia em, sem aviso, de surpresa, à traição ou à socapa, bater com a mão espalmada sobre qualquer coisa que o (con)”tratante” portasse em suas mãos, adjudicando para si o produto recolhido do chão, sendo excetuados com sobras de razões e em natural convenção de valores, os livros e cadernos do colégio, os produtos comprados nos “bolichos” (armazéns) a mando da mãe e, mais raramente, a mando do pai, etc... “Gibis” eram os mais procurados e quando se portava em mãos algum ou alguns deles, a atenção, o zelo, o cuidado, eram quintuplicados...; tinha também o “trato” do “paralisa” (ou “mandrake” como diziam em Porto Alegre) que tornava paralisado o (con)”tratante” quando não estava com os dedos cruzados (normalmente o indicador e o médio) ao comando do outro que berrara “paralisa” e o “paralisado” somente voltava ao normal após o outro liberá-lo através do comando “livre!”. A propósito, engraçado era quando os ditos (co)”tratantes” tinham entre si, concomitantes, (con)“tratos” de “tapufe” e “paralisa”, dando para imaginar as possibilidades sem conta da cena entre o “tapufiado” e o “paralisado” ou vice-versa ou ainda, versa-vice, um para o outro e/ou o outro para o um, etc...

Após a breve digressão, voltemos ao moleque e seu “tenebroso” problema, quase acordando às portas do “tambo” de leite, tendo que cuidar-se das peripécias que o martirizavam devido aos “n” (con)“tratos” que tinha com todo o mundo conhecido (por si, claro); sabia que não bateriam na vasilha de leite pois estava a mando de sua mãe, mas quem daria garantias à parafernália que portava nos bolsos, à cintura dependurados às calças em sacos de estopa ou lona rústica, como a “funda” (“bodoque” ou “atiradeira”, para alguns), o pião, as “bolitas” (“bolinhas de vidro”), os “bois” de osso integrantes da manada de gado de sua “estância” (fazenda) de brinquedo... Era precioso todo o cuidado e mais um pouco porque àquela hora era muito, muito, mas muito cedo para o moleque e sempre tem alguém que está muito, mas muito mais desperto que ele... Não deu outra, em meio do caminho de volta encontrou o Jura (Jurandir), o Quico (Saul Adair) e o Zote (Luiz Alberto, cujo apelido ao início era Gurizote), com o primeiro, ao descuido do moleque “tapufiando” a “funda” que estava (esquecida pelo mesmo, é verdade) pendendo do bolso esquerdo traseiro das calças... ao tentar defender sua “funda” o moleque não apenas a perdeu para o “tapufiador” como também escapando-lhe das mãos a vasilha de leite, este foi sugado pela terra de “chão batido” confundindo-se com a geada que recém começava a “levantar”... Quase desesperado o moleque não sabia como se safar dessa... não podia “aparecer” em casa sem o leite... O que fazer?... Sem outra idéia melhor, voltou ao tambo contou ao Sr. Madeira tudo o que ocorrera, ocultando o “tapufe” de Jura e pediu, implorou, rogou ao velho que repusesse o leite derramado... O bom homem, ainda que relutante pois conhecia aquele moleque p’rá lá de arteiro, desaforado, moleque, enfim, o socorreu todavia exigindo uma contrapartida: nunca mais o moleque atiraria pedras nos cachorros dele... evidentemente, o moleque aceitou o encargo e, para ficar bem esclarecido, nunca mais atirou pedras nos cachorros do “Seu” Madeira (não fosse o plural nos cachorros, quase que cometo uma frase de duplo sentido, o que não seria justo ao então e muito agradecido moleque...).

Tais passagens, idas e vindas de uma manhã de muito frio (e sono, pelo moleque) demandaram grande atraso ao cumprimento da tarefa simples de ir ao “tambo” trazer o leite com o que sua irmãzinha estrebuchava de fome, aos berros, enervando ainda mais a mãe, transformando um reles minuto em portentosa hora e em efeito geométrico, à pena que merecia, por isso, o moleque. E como ele era muito fujão, a mãe fechou todas as aberturas da casa, deixando apenas aberta a da cozinha por onde ele fatalmente entraria e tão logo o fizesse se fecharia às suas costas... E assim foi feito, lá vem o moleque aliviado pela recuperação do leite restou esquecido do seu comportamento quando ganhara à rua ao sair para o “tambo” e sem pressentir o temporal armado, ingressou na cozinha, nem se dando conta de que estava tudo fechado, depositou a vasilha de leite por sobre a mesa e logo sentiu o hálito quente de sua mãe verbalizando o temido “... agora vamos ‘conversar’ sobre o que disseste lá fora, ao sair e, também o porquê desse atraso”... de relance (ou “relancina” como costumava dizer) viu o “trançado de oito”, rebenque, nas mãos da mãe e aquela visão foi o suficiente para lançá-lo ao interior da casa em busca de uma abertura que, naquele momento, não existia... corre p’rá cá e p’rá lá estava sendo encurralado quando sua irmã, um pouco mais velha que ele (três anos), Ezolda Catarina, a Zôzô (por erro do Cartório de Registro o nome saiu com essa grafia equivocada – o nome deveria ser idêntico ao da Isolda, de Tristão) vem em seu socorro, agarrando-se às pernas da mãe que dela tenta desvencilhar-se dando chances ao moleque pela única saída que tinha, isto é, pela porta da cozinha por onde entrara... Daí a rua, o campo, o mundo e a linha férrea que por ali passava tendo o moleque optado por esta, dirigindo-se para os lados dos quartéis, à Ponte do Sapo... Enquanto isso a pobrezinha da Zôzô tomou uns “sacalões” da mãe e, juntas saíram atrás do moleque que tomara uma distância relativamente grande de uns 200 ou 300m à frente., gritando que iria se “matar” em flagrante e distorcida, infantil também, pressão/coação psicológica sentimentaloide, chantagem emocional melhor dizendo, que fez efeito na querida mana e, acreditou, na própria mãe... Ninguém me ama, ninguém me quer, vou me matar e vocês vão chorar... Por sobre os trilhos e dormentes o moleque parou ao início da estrutura da ponte que apresentava uma depressão há mais ou menos um metro abaixo da linha férrea, onde formava uma base exposta de mais ou menos um metro quadrado dali partindo descida sinuosa até a linha d’água... Pois bem, o moleque deu uma olhada para trás e vendo a mãe e a irmã a uma distância razoável, por mera intuição considerou que de onde estavam não o veriam saltar nessa base, que não enxergavam e, em canhestra atuação teatral, se “jogou” à base, “desaparecendo” aos olhos das duas, saindo abaixadinho (imaginem, ele que não era tão grande assim) pela vereda até a linha d’água, contornando-a e seguindo às escondidas até definitivamente se afastar dali, decidindo a partir de então se dirigir à casa da irmã mais velha que já estava casada e tivera seu filho, o Antônio Jualci, de apelido “Tunico”, o primeiro sobrinho do moleque. E assim foi feito...
Gelci, o cunhado do moleque, o “Farinha” como fora apelidado, recém chegara da padaria onde trabalhara a noite inteira e foi informado pelo moleque que este viera ali para “escutar” o jogo do Brasil contra a Suécia, grande final da Copa do Mundo de 1958... É hoje? Perguntara, sim é hoje, informara, às 03:00hs (15:00hs)... Bem então vou “tirar um cochilo” disse “Farinha”, me acorda quando começar... tá bem, tá bem... disse o moleque e ficou nisso o papo... O moleque “adonou-se” do rádio Standar Eletric e, impaciente, logo, logo, “sintonizou” a emissora paulista, a Bandeirantes onde gostava de “escutar” os jogos do campeonato Paulista sobressaindo o grande Palmeiras, seu time, e os outros como o Corinthians, campeão do quarto centenário, grande rival que foi depois substituído pelo Santos Futebol Clube, da Era Pelé, com aquele ataque demolidor – Dorval, Mengálvio, Pagão (Coutinho) Pelé e Pepe; saliente-se que as emissoras de Porto Alegre, exceto a Radio Farroupilha, não eram acessadas quer em ondas curtas, quer em ondas médias (transmissões em AM) pelos aparelhos de rádios em Uruguaiana, por isso a preferência quase automática pelas emissoras do Rio de Janeiro e de São Paulo (Rádios Nacional, Tamoio, Mayrink Veiga, Tupi, Relógio, Mundial, dentre outras) cujo som entrava em excelentes condições, rivalizando com as rádios argentinas como a Belgrano e El Mundo, de Buenos Aires). Na Bandeirantes destacavam-se os grandes locutores (speakers, à época), narradores de futebol, como os fenomenais Edson Leite e Pedro Luís e, como comentarista esportivo, Mário Moraes, todos preferidos e ídolos do moleque.

Para surpresa do moleque homiziado na casa da irmã, do som alto e claro da rádio Bandeirantes ouviu-se a voz inconfundível de Edson Leite, falando, diretamente do Estádio Rasunda, em Estocolmo informando o início do jogo para daqui a pouco... mas o jogo era as 03:00 hs, será que mudaram tudo, como era possível... o moleque não sabia do tal de “fuso horário”, nem que a hora assinalada para o de início do jogo era a hora sueca... Correu então para avisar “Farinha” que o jogo estava prestes a iniciar, trazendo-o meio cambaleante de sono para escutar consigo... E começa o jogo, nervos à flor da pele... É Gilmar o goleiro que tem de pegar tudo, é Djalma Santos o melhor lateral Direito que se recuperara e, finalmente, estrearia no mundial em substituição ao De Sordi que jogara todas até aquele dia, tem Belini e Orlando os zagueiros central e o quarto e a Enciclopédia do Futebol, Nilton Santos, na lateral esquerda... No meio campo está lá o grande protetor da zaga, Zito como centromédio e Didi, o Príncipe Etíope e sua folha seca, também Zagalo, o Formiguinha, ponta esquerda que “fechava” o meio, à frente, no ataque, o endiabrado Mané Garrincha, o Anjo das Pernas Tortas, Alegria do Povo que transformava todo marcador em “Joãos” através dos dribles desconcertantes que dava (incrível, invariavelmente para o mesmo lado) e também Vavá o centroavante goleador, guerreiro, oportunista, tanque, peito de aço... Mas tinha também Pelé, gênio de 17 anos que encantou a todos, tornando-se o “Rei” do futebol, merecidamente a partir de então e para todo o sempre, claro, reconhecido como o melhor jogador de futebol de todos os tempos... Deixa-se de falar sobre os jogadores suecos pois o moleque não conseguiu guardar entre eles um nome que fosse, nem mesmo os nomes dos autores dos gols da Suécia... Ah, o jogo, convém falar sobre o jogo na ótica do moleque, influenciado pela narração emotiva de Edson Leite e nos comentários abalizados de Mário Moraes... O início foi duro... logo, logo, por volta dos 10 minutos de jogo a Suécia fez seu primeiro gol e, tanto o garoto quanto o ”Farinha” sentiram descer a nuvem negra da final de 1950, contra o Uruguai (o moleque era muito pequeno, então, mas se lembrava perfeitamente do choro de seu pai, dos vizinhos e outros tantos naquele fatídico dia – mas isso é outra história), também deu para sentir na pele o ferro e fogo da campanha de 1954 ( quando o Brasil perdeu para a Hungria n’um baile que nem Humberto Tozzi, grande ponta de lança do Palmeiras conseguiu evitar, o que também é outra história...)... Aleluia, Em menos do que dez minutos depois, Vavá, o centroavante tanque e goleador empata a partida e, logo adiante, desempata e o Brasil faz 3 a 1, gol de Pelé, faz 4 a 1, gol de Zagalo e a Suécia, faltando 10 minutos para acabar o jogo fez seu segundo gol, perigando o primeiro título mundial de futebol do Brasil a esta altura já festejado por todos... no finalzinho Pelé faria seu segundo gol, o quinto e último gol do Brasil, campeão do mundo pela primeira vez... A imensa alegria de todos é indescritível, basta dizer que foram explodidas tantas bombas que quase todos os moradores da cidade vizinha, Passo de Los Libres, na Argentina, ficaram surdos pelo som e asmáticos pela fumaça... (é exagero, perdoem-me os amigos argentinos, é só uma figura de linguagem, nada mais que isso...).

O moleque e sua irmã Rita, a “Oca”, seu cunhado Gelci, o “Farinha”, saíram à frente da casa, acompanhando os demais vizinhos da sempre querida Sete de Setembro, a rua em que nascera... E tudo foi festa em um dia de festa, pois não, eis que era 29 de junho de 1958, dia de São Pedro, à noite com muitas fogueiras para serem realizadas, muita batata doce americana (a da cor amarela que, parece, só tem naquelas plagas) para assar nas fogueiras, muitos rojões e busca-pés, brincadeiras, quadrilhas juninas, e tanto mais que, naquele tempo, acontecia a respeito... Com a cidade toda em festa como todo o Brasil, aliás, quase ao anoitecer, empurrado obstinadamente pela irmã, o moleque trilhou o caminho de casa, contando com a presença do pai o que evitaria tomar uma bela e merecida surra... Jamais soube como e em que hora sua mãe e a mana “Zôzô” souberam que ele estava homiziado na casa da mana “Oca”, com a mãe aguardando-o para dar fecho àquela prometida e não cumprida “conversa” matinal... A felicidade geral pela vitória do Brasil, porém, amenizara todo e qualquer dissabor ou rancor e nem mesmo ao pai do moleque fora comunicado pela mãe o ocorrido...

Cientificando-se da presença do pai, o moleque ingressou meio que sorrateiramente à casa... interpelado pelos pais, disse que esteve visitando a mana “Oca”, ouvira pelo rádio a vitória do Brasil, agora e finalmente campeão do mundo de futebol, ao que o pai, entusiasmado, disse ao moleque, citando o grande Nelson Rodrigues, derrubou-se para sempre o nosso sentimento de inferioridade, deixamos de ser vira-latas, agora somos a Pátria de chuteiras, campeã de futebol do mundo...

Porém o pai, logo a seguir ao tomar conhecimento do que “aprontara” o moleque naquela manhã fria e, para o moleque, cheia de sono e desconforto, baixou-lhe o espírito do conselheiro-educador, aquele que fazia o moleque ficar seriamente pensando, em dúvidas, se não teria sido melhor levar umas “lambadas” do trançado de oito da mãe e tudo já teria passado, do que, como agora, ter de olhar no fundo dos olhos de seu pai que pausada, delicada e amorosamente lhe obrigava a pensar sobre o certo e o errado de suas atitudes e a justificá-las com argumentos razoáveis, acaso tivesse e fosse possível...


Enquanto isso, lá fora, as fogueiras estavam sendo acendidas, os rojões e busca-pés explodiam, e alguns corajosos e, quem duvida, inexpugnáveis às dores ou queimaduras, passavam correndo de pés descalços por sobre brasas, comiam batatas doces americanas, pulavam as fogueiras, dançavam quadrilhas e “pericons”, nos folguedos juninos... Embora tentasse o moleque não conseguiu reduzir o “sermão” do pai... mesmo assim e ao final, chegou a tempo de se divertir bastante enquanto crepitavam as fogueiras e as brincadeiras...