CADERNOS DE POEMAS DO POETA ITAGIBA JOSÉ (TEMÁTICOS)
I – POEMAS TRÁGICOS
II – POEMAS LÍRICOS
III – POEMAS CLÁSSICOS
IV – POEMAS ÉPICOS
I
POEMAS TRÁGICOS
- ÍNDICE –
Acidente
Facho de Luz
Morte Natural
Na Arena
Engrenagem
Bêbedos
Imaginação
O Algoz
Cavalos de Batalha
Triângulo
O Direito de Estar Só
Rosa de Chica
De Óculos Escuros
Remoinho
Sala de Jantar
Submundo
Identidade
Pés de Barros
O Passeio
Miséria
Do Ponto de Vista do Criminoso Ocasional
Percurso
Alegoria
Moleque Engraxate
Rancor
Desilusão
Nenhum Por Nós
Sol Posto
Prostituta
Loucura
POEMAS TRÁGICOS-POETA ITAGIBA JOSÉ
ACIDENTE
Um carro em alta,
Na rua baixa,
Canta pneu,
Um baque, surdo,
Bradou bem alto
O que ocorreu...
Um corpo rola
E o carro em alta
Na rua baixa
Sangra pneu!
FACHO DE LUZ
Essa luz, tirem essa luz de cima de mim!
Ela me cega, essa luz, tirem, tirem de mim!
E novamente o torpor, na cadência do nada,
Invadia àquela vida que, na madrugada,
Diante da luz, dessa luz que a atormentava,
Se precipitara na loucura da escuridão.
Essa luz, dizia baixinho, essa luz, essa luz,
Murmurava o que ninguém suspeitava
Ou ouvira, jamais; e dormia e chorava
E morria e renascia para morrer de novo.
O médico, sonolento, da pequena cidade
Tentava fazê-la voltar à consciência...
Para que despertá-la? Se perguntava,
Retirar de seus olhos essa luz que a cega
E minutos atrás a mergulhara no abismo?
Como dizer àquela pobre mulher
Que o marido, os filhos, a sua família,
Há pouco sorrindo, há pouco tão viva,
Passara além do abismo à eternidade?
Nessa luz, a duzentos por hora nessa luz!
Essa luz, devagar, a curva ... meu Deus!
Essa luz, tirem essa luz de cima de mim...!
MORTE NATURAL
Morreu como tanta gente
Sem campos de batalhas,
Sem cama, sem palavras,
No anonimato.
Em troca das flores,
Velas ou lágrimas,
Comuns diante da morte,
Ganhou o aparato policial,
A curiosidade popular
E a manchete do jornal.
Ele que pouco ousara
Ter tempo de beijar os seus,
Beijou o asfalto à cem por hora.
Morreu como tanta gente,
No anonimato,
Atropelado pelo progresso.
NA ARENA
... E aí a calça caiu
Na gargalhada geral
Dos espectadores ...
Quem lhe mandou entrar
Na arena do circo
Sem roupas, sem artifícios
E sem o nariz de palhaço?
Afinal é o riso a praga
Que açoita o ridículo
E o bem que me refaz
Em teus braços.
Enquanto lhe caía as calças
Sua vergonha tirava férias ...
ENGRENAGEM
Andava pela periferia,
No fundo querendo penetrar no núcleo.
Dardejava, encanecia, pudera
Não é todo dia que se pode pensar raposa
E se deliciar em uvas maduras ou verdes,
Não importa, sempre uvas, ora!
De tanto se expor, foi sugado,
Caiu no teatro de marionetes,
Aceitando os cordões que lhe impuseram
E a manipulação de suas ideias e ideais.
Foi espicaçado, moído, desmoralizado,
Doutrinado, mas estava dentro do núcleo,
Seguro, sóbrio, e isso já lhe bastava.
Caiu quando acreditou estar subindo
E, triturado, jamais ser reencontrou,
Nem valeria a pena ou poderia fazê-lo
Eis que apodrecera como as uvas
Atiradas à pretensa raposa que seria,
Abocanhado por sua própria ambição.
… E dizer que um dia ele havia sido
Um contestador, da periferia,
E, quem sabe, um ilustre ser humano
Corrompido somente de ilusões e esperanças!
BÊBEDOS
Carne esponjosa
Regando a sarjeta
De lixo humano.
Bêbedo, como um trapo
Dorme com o sol do meio-dia
Batendo em sua cara.
Desviando do monturo,
Indiferente e irritado,
O mundo passa ao largo
Com olhos e nariz, tapados.
Mundo dos homens
Regando a natureza
Com sua poluição.
Como o próprio bêbedo
Que reprova e expulsa,
Batendo em sua cara.
Embora todos os benefícios
Não dá para passar ao largo,
Nem tapar olhos, boca ou ouvidos.
SEM PALAVRAS
Passou o dorso da mão direita
Sobre os lábios lambuzados
De sol, baba e cachaça,
Da mistura do suor com o pó
Fez seu último gesto simbólico.
Retirara da vida a febre, o vício
Em andanças por entre copos e garrafas
Buscando o próprio ego que vilipendiara
Abdicando de amigos e familiares.
Quis ser sorriso, foi um escárnio
Quis o mundo e nem teve a decência
De lutar para ter, pelo menos, a si mesmo;
Quis ser um deus e foi só um alcoólatra,
Um demônio feito de despojos!
Ao limpar os lábios com o dorso da mão
Fê-lo para reencontrar-se com o amém
Sequer conseguindo reinventar-se perdão
Do que há muito esquecera, também,
Nem disse adeus, mesmo fosse alcoólico...
Passar o dorso da mão direita, à chalaça,
Nos lábios lambuzados de suor e cachaça,
Foi seu derradeiro gesto simbólico...
TETUSKIN!
Apanhara a rosa no jardim do sonho
E desde então o sonho ficara rosa,
A noite se fizera dia,
E o dia se fizera vida.
Desfolhada a rosa
A vida se repaginou em noite
E do sonho restaram espinhos.
Tetuskin! Tetuskin! Tetuskin!
Tetuskin é tão incompreensível
Quanto a dor que sentimos
Ao perder o amor nosso de cada hora.
Tetuskin! Tetuskin! Tetuskin!
… Ela espinhava de solidão!
O ALGOZ
Sorria de fechar olhos e abrir orelhas
Mas permanecia mudo
Com tal atitude, parecia uma caricatura
E despudoradamente, negava o seu apoio.
Como que recuperando o controle
Sobre o músculo facial antes retesado
Vociferou seu ódio sobre a indefesa vítima
Que o mundo se encarregara de lhe devolver
E se deliciou em ser a taboa podre
A que o náufrago tentava se agarrar.
Tudo estava bem agora,
Conseguira após tantos anos
A vingança alimentada pelo ódio
Que por extensão o mantivera ativo
Durante toda uma vida.
Realizara sua vingança
E desmentira os idiotas que a proclamavam
Como uma felicidade efêmera
Diante daquela oferecida pelo perdão.
Naquele momento deixou de ser a vítima dos outros
Para se revelar vítima de si mesmo
E jamais admitiu que os idiotas, à final,
Os idiotas tinham razão!
CAVALOS DE BATALHA
As rodas de borracha deslizavam
Mansamente, na cidade grande
E nada chamaria mais a atenção
Naquela tarde de chumbo e sol
Do que tanta miséria retratada
No todo daquela carroça;
A própria ironia, como se buscando
Um lugarzinho no asfalto quente,
se postara imediatamente atrás,
Num carro importado que buzinava
Querendo empurrar o lixo à frente,
dobrar à esquina, fugir ao contágio...
Percebido um gesto fugidio,
Nervoso, da mão que varou o vento
Indicando entrada à esquerda
O mundo parou, como sempre,
Para a miséria atravessar a rua...
Não sei qual o mais infeliz,
Se o cavalo ou o carroceiro
Ambos desnutridos, desolados
Puxando seus infortúnios,
Um atrelado a uma carroça
Outro, sem saber como ou por que,
Atrelado ao chumbo e sol da vida!
IMAGINAÇÃO (Em Algum Lugar do Passado)
Encontrara sua amada
Após buscá-la inutilmente na realidade
Reduzida a uma fotografia antiga,
Em uma casa de antiguidade.
Aquele rosto fotografado
No alvorecer da arte fotográfica
Espelhava a meiguice, a ingenuidade
Que ele sonhara haver existido.
Apaixonado por aquela imagem
Sabia que não a veria em carne e osso
Mas acreditava que a encontraria
Em um canto qualquer do infinito,
Lá onde os mortais penetram, apenas
Com as asas da imaginação.
Um dia, após violenta tempestade,
À sua frente fez-se o arco-íris
E, rapidamente alçou-se à estrada colorida
Percorrendo-a n'último sopro de vida.
Com a chave, que não soube explicar
Como viera ter às suas mãos,
Abriu as portas do Céu e encontrou sua amada.
A fotografia, do início de um século,
Transmudara-se para aqueles braços
Que o envolveram em sua Paz e Amor.
A cidade inteira, enquanto isso,
Penalizada comentava que perdera
Seu cidadão mais pitoresco:
Um bom sujeito, louco e inofensivo,
Que amava, como se o ato de amar
Por si só não fosse uma loucura,
Amava uma fotografia!
OBS: Registre-se que o poema foi escrito em ago/1967 e publicado em Dez/1976, anos antes da realização do belíssimo filme “Somewhere in time” (Português: “Em algum lugar do passado”), de 1983, estrelado por Cristopher Reeves e a encantadora, meiga, Jane Seymour, também Christopher Plummer, sendo o tema (história) idêntico, ou quase, ao deste Poema. Cremos tenha sido por mera coincidência!
ROSA DE CHICA
Rosa Laídes Vieira era seu nome e ninguém sabia,
Rosa de Chica era como a chamavam.
Tinha seus problemas sociais, morais, venais,
Mas fora moça prendada, de família, ingênua,
Até que um dia conheceu o cravo e com ele o espinho,
A dor, o abandono, a rua, o mundo e ninguém sabia.
Desprezada, humilhada, pisoteada, arrancou do útero
O filho que a amaldiçoara. Pariu na cidade grande!
Vendo arrancada do fundo de si mesma
A materialização de sua desgraça e pecado,
Instintivamente apertou a criança contra as coxas
E seu urro de dor abafou o único vagido da criança.
Esse foi o último fio de realidade
Que Rosa Laídes rompeu em um gesto de defesa
E foi nesta data que nasceu Rosa de Chica
Completa para o mundo... e ninguém sabia.
Rosa de Chica viveu durante anos à margem,
Na obscura rua da fatalidade, desdenhada,
À margem da Rosa Laídes que fora...
Quem matou o filho de Rosa Laídes?
Não foi Rosa Laídes, foi a de Chica!
Quem criou Rosa de Chica? Foi Rosa Laídes?
A conjuntura? O Destino? O Estado Puerperal?
Não, o estado Puerperal isoladamente
não mata filho de ninguém, nem de uma Rosa de Chica
sem pressões, loucuras ou arrependimentos!
Para analisar o nascimento de Rosa de Chica, comecemos por Laídes,
Moça prendada, de família, ingênua, até que conhece o cravo
E com ele o espinho, a dor, o abandono, a rua, o mundo...
Quem matou a Rosa Laíde e também seu filho,
Fazendo nascer a Rosa de Chica que todos ridicularizavam,
Foi tudo isso, meus jovem, foi tudo isso!
TRIÂNGULO
Belisca João o pé de José que bate na bola
Belisca João o pé de André que bate na cara de João.
João não reflete, se perde, reage e bate em André,
José se intromete, atrapalha, separa João e André.
Uma bala, uma faca, uma pedra, é o fim de José.
É João, é André, é a fuga, o medo, a noite, a morte!
Quem matou? Quem morreu? João, André? Oh, José!
João e André, três anos depois, é a condicional.
Já não é mais João, já não é mais André, são fantasmas
Libertos das grades de ferro da Penitenciária,
Prisioneiros ainda das grades chamadas lembranças
Que beliscam João, que beliscam André,
Se intrometem, atrapalham, separam João e André,
Como outros josés que trazem José...
Belisca João o pé de André que lhe bate na cara,
João não reflete, se perde, reage e bate em André.
Uma faca, uma bala, duas pedras, é o fim de João,
Também é o fim de André ... E José?
Morre agora, José!
O DIREITO DE ESTAR SÓ
Um dos gêmeos revoltado resmungava
O outro, humilde, permanecia quieto.
O primeiro estendeu-se comprimindo o outro
E tudo não passava de uma provocação,
Não estavam delimitadas suas áreas,
Nem cabia acordo; ao mais forte, tudo!
Enquanto se dilatava o ventre da mãe
Um sugava o alimento, o outro a fome;
Um o poder, o outro a servidão;
Um a exuberância física, o acinte,
O outro a fraqueza, a humilhação
E quando vieram ao mundo,
Ultrapassado o portal do indizível,
O esfomeado engoliu o seu ódio,
O opulento engoliu o seu orgulho
E, mesmo assim, conseguiram permanecerem sós.
Abortados, jamais viriam saber
Que repetiram em um ventre de mulher
O drama do ventre do mundo.
SALA DE JANTAR
A sopa fora servida quente e aguada
aos comensais da semana
e nem seus picantes temperos
alteraram a monotonia dos convivas.
Os pensamentos sobrevoavam extremos:
Qual a melhor maneira de jogar a sopa?
sobre o outro? no assoalho? ou no estômago?
As colheres retiniam nos pratos
que, conforme a sopa desaparecia,
mais se expunham ao metal feminino.
A mesa em leque fechava o ciclo
e os bancos duros integravam os caracteres
dos desventurados que suportavam.
Ao som do apito estridente
os convivas, cabisbaixos e ordenadamente,
acompanhados por guardas e metralhadoras
voltaram às celas e aos devaneios...
Amanhã, tudo seria igual e novamente!
SUBMUNDO
Das veias do tempo, desprendeu sua história
Que jorrou fértil no ouvido curioso.
O farrapo falava de dores e mortes,
Definindo desgraças sem chorar suas causas,
Mas suas consequências;
A principal delas, ser ele apenado
Para o resto da vida!
Ele outrora orgulhoso e estúpido
Dono de uma cidade
E da manchete do jornal policial,
Ficara reduzido a um fardo de lamúrias.
Sozinho com suas lembranças
Passava seus dias e nas paredes
Da cela suja onde reinava,
Sabe-se lá se por ironia ou crença,
Escreveu em letras tremidas:
“O CRIME NÃO COMPENSA”.
DE ÓCULOS ESCUROS
Hoje, estou a olhar o mundo de óculos escuros
E vejo tudo cinza,
Desanimo diante da perspectiva de enfrentar meu dia
E a natureza contribui para esse desânimo,
Está quente, grave, abafado.
Apesar disso tenho de fazer o que faço sempre,
Agir no mesmo diapasão
E dedilhar o conhecidíssimo teclado
Da velha máquina de escrever,
Cair na mesma rotina, cheirando a mofo.
Quando menino colori meus óculos de cor-de-rosa,
Depois várias cores alternaram-se nas lentes
Exceto a rosa que, agora sei, não mais virá.
Ao verde da adolescência sucederam-se o vermelho,
O amarelo, o lilás e este cinza que me cerca
E me força a usá-lo cada vez mais
Mantendo-se, possivelmente, como símbolo
Do azedume recolhido no interior de meu ego
Durante minha própria campanha na vida.
Espero que minha decadência física,
Amanhã, seja minha ascendência moral
Que possa cobri de branco o conteúdo inócuo
Trazido nas lentes da reminiscência.
Por enquanto e, pelo menos, hoje,
Estou olhando o mundo de óculos escuros
E posso afirmar, com toda certeza,
Não há beleza no que vejo!
REMOINHO
Ajuda! Meu Deus, quem ajuda?
Vagando, vazado, reprimido,
Sem ter um riso ou a ti;
Ultrapassei o castigo, o bem
Da volta, não tem nada além
Nem aquém. Na lei do espaço
Quebrado me perdi, atingido,
Vivendo o não sei se eu sei
Ajuda? Onde está a ajuda?
Que se fez intangível, ruim,
Se no furor da verdade
Que se jogou sobre mim,
Ou no torpor da mentira
Onde com febre vivi?
Onde está, meu Deus, a ajuda?
O endereço dela nem tenho ou sei
Mas alguém tem de ser o alguém
Que perdi em meu dia a dia
Quando a tive e calei, e calei.
Ajuda! Ajuda! Sou eu ... sou ...!
IDENTIDADE
Mantenho diante do vejo e sinto
Esta postura antropofágica como defesa;
Se não tenho o porto de herói ou guerreiro
É porque me contento em ser covarde ou,
Pelo menos, ser normal como todos os outros.
Procuro manter coerência em meus momentos
Para que no gênese de meus pensamentos
Possa reter a ordem que o cotidiano retira;
Assim, construo dois mundos
O que pode parecer inadmissível:
Enquanto do lado de fora da muralha
Porto-me como gladiador embrutecido
Lá dentro deixo cantarem pássaros
No jorrar da cascata da imaginação.
Não tenho pretensão de mostrar-me como sou
Abrir-me para ser retalhado não é exatamente
O que desejo; não tenho coragem para tanto
Reconheço que se aparência e verdade
Puderem ser mantidas sem atropelos
Passarei pela realidade imposta pelo meio
Sem prejudicá-la ou combatê-la.
À final, a inércia e a aceitação passiva
Fazem parte do arsenal da humanidade
E só e fraco não tenho forças para vergá-las.
Todos transferiram a solução para todos
E guardaram dentro de si o melhor que têm,
Não sou exceção, pudera!
PÉS DE BARRO
E a televisão abriu seu noticiário
Com o conteúdo patético de sempre:
Os homens continuam matando e morrendo,
O mundo, velha esponja regada a sangue,
Não se satura, nem explode de ódio,
Continuando, indolentemente, o mesmo mundo.
Até o pequeno e ousado jornal da cidadezinha
Conserva esta mesma postura trágica,
Tão antiga como o próprio anonimato
Das boas ações que o cotidiano abriga.
Tais ações, não têm a bela agressividade
Que as outras detém, nem lhes sobra
Um toque de extraordinário ou pecado
E por não terem mistérios ou ritos pagãos
Não fazem performance na publicidade,
Em decorrência, mão dão lucro ou audiência.
Cantemos, pois, o mal, tudo dos crimes,
Apontando guerras santas ou profanas
E de qualquer forma vis porque guerras,
Sem movermos mais que o necessário,
Quem sabe até nem isso, que se lixem,
Para salvar a pele dos insensatos, se possível.
O mal é tão grande que necessitamos
Criar super-heróis e violência gratuita
Para povoar os sonhos de nossos filhos.
Somos tão fracos que apresentamos o mal como um deus
E o bem, ah, o bem, como efêmero paliativo.
Esse ciclo da vida e loucura, continua a passar
Por nossos sentidos, tato, olfato, visão,
Nesse medo que temos uns dos outros
Vital ingrediente para o vigor do noticiário.
E dizer que vivemos de nossas misérias...
DO PONTO DE VISTA DO CRIMINOSO OCASIONAL
Sinto o peso do mundo sobre mim
Pesa-me uma vida mais que a morte
Tudo se conjugou para o resultado
Que extinguiu sonho, extirpou força
E, sem ânimo, prostrou a realidade.
Vertiginosamente ruiu a fé, o poder
E, impotente diante de um corpo,
Só, fraco, vazio, torpe, vi meu ego
Retratado em tantos monstros.
Instrumento, causa, consequência
Não importa, fui todas as coisas
Ou adjetivos, todas elas, tudo.
Interrompi uma trajetória, uma luz
Continuarei a caminhada, a dois,
Levando a minha vítima comigo,
Eu também vítima de meu passado!
PERCURSO
Quando então chegarem as lembranças, na lembrança deste céu
e teimosamente revigorar-se a esperança, na esperança deste céu
estarei regressando às reticências, na demência de sonhos incompletos,
vivendo assim o derradeiro lance de estrada que me leva até o depois.
Quando, então, voltar a ser garoto e não ser e fazer rir entre os moleques,
temperarei crepúsculos e alvoradas à fragrância de sonhos incompletos;
quando voltar a ser ninguém, ao ninguém que sempre sou,
no esquecimento, serei mero pó carregado nas asas dos ventos
na plena orgia de saber-me nunca mais!
ALEGORIA
Cuidado que o bicho papão está
solto
o pão está caro e o dia está
roxo
e a luz acesa é a luz a pagar.
Cuidado, o celular estrila no bolso
apertado
e o riso de graça estraçalha
a vida no bocado
que fica na sua, continua nos homens,
na boca da noite, da fome.
Cuidado, o lado tem lado na rua,
devora tua própria escala
de nariz do palhaço, de morte
que reduz tudo ao nada
e brilha à sombra da vida
que se impõe ou pensa no nada
do teu tudo escasso que o vírus consome!
O PASSEIO
Ia Maria
Uruguaiana
a Porto Alegre
vendendo vida
e ria tanto
e como ria
a Porto Alegre.
Era o passeio,
carro do ano,
tão almejado,
a Porto Alegre.
Mas de repente
bate em Maria
nos olhos turvos
à curva à frente
e o riso cessa
cessa o instante
e Porto Alegre
fica distante.
Perdeu o Porto
grande alegria
com a Maria
que chegaria.
Cheia de espera,
toda Maria
que era linda,
de Porto Alegre
ficou na estrada,
nem vinte anos,
de Porto Alegre
cheia de espera.
Em geada fria,
sem fantasia
a Uruguaiana
e o passeio
tão esperado
restou Maria
não consumado.
Curva em Maria
tanta existia,
à curva nada
sobrou a estrada!
MISÉRIA
Tempo de pobreza
miséria dividida,
prato do dia
o sol do meio-dia.
À noite, as estrelas
e a água potável
da fonte inesgotável.
Enxuga o orvalho
de olhos, ranhetas,
espaços falhos, cabeça
no estômago vazio.
Imagina o mastigar
no deglutir gestos
engolidos em seco.
Tempos de pobreza
miséria esturricada
prato de dias a fio
a própria miséria!
Nem há mais razões,
estrelas, fontes, colmeias,
só misto de nada com tristezas.
MOLEQUE ENGRAXATE
Tão cedo para a vida acordaste
Moleque engraxate, tão cedo choraste
O choro que o mundo te provocou
Moleque engraxate a ilusão terminou.
Caminhas inseguro, moleque engraxate
Carregas na língua a fala que bate,
Pequeno e sisudo, arguto e vilão
Aprendes e professas outro palavrão.
Proclamas a glória de saber lustrar,
Tu que não sabes nem mesmo brincar
E o germe que viça em teu peito inocente
É o vírus do ódio que por tudo sentes.
O amor, infância são coisas banais
Sofres na carne realidade, punhais,
As feridas abertas não cicatrizarão,
Sucumbes ao vício, desconheces perdão.
Trabalhas agachado aos pés d’outra gente,
Pensa que dinheiro, moleque engraxate,
A tudo e a todos convence e abate.
Ah, quando te olho assim na sujeira,
Na altura do nada, criança fagueira
Deploro esta vida de muitos madrasta
Que divide os homens em classes e castas.
Vejo-te moleque, sem eira nem beira,
Pequeno engraxate entregue à fogueira
Do mundo imundo que bate e tonteia
E te fez tão jovem conhecer suas teias.
É noite e ainda tu andas nas ruas,
Perambulas sem dono, sem lar, continuas,
Apregoa tua fibra moleque falaz...
Moleque engraxate que pena me dás!
RANCOR
Da caligrafia do tempo
Despenca esmaecida
Folha amarela, esquecida
Ao peso dos contratempos.
Fotografia de inverno,
De tantos outros infernos
Das estações ressentidas.
DESILUSÃO
Eu o forte!
Nada vendo em teus olhos,
Vi além, o reflexo dos meus.
E sozinho amei,
Inventei
E arrebentei de nada.
Eu o forte! Eu, meu nada!
NENHUM POR NÓS
Flutuo em tua praia
Sabendo-me sozinho
E, só em mim, desmaia
O escuro do caminho.
Na luz desse dia
Que o sonho anuncia
Navego, me entrego...
Tu, na mesma praia,
Muito mais sozinha
D'outras madrugadas,
Feres como espinhos
As flores anunciadas
E não se formam ninhos
Na noite do enfim, sós,
Aborta-se dia não nascido
No escuro da indiferença.
Em nós e em cada um
Morre plural jamais vivido
Jazem corações e crenças,
Tristemente, por nós, nenhum!
SOL POSTO
E cai a tarde assim
Como a zombar de mim
Mostrando o que perdi,
Suspenso por um triz
O sol morre infeliz
Como eu também morri.
É tanto o encantamento
Na dor deste momento,
Registro a olho nu
E a cor da tarde calma
Esvai-se como a alma
Da tarde que foi tu...
Mas amanhã é certo
O sol aceso, esperto,
Inteiro e renascido
Virá banhar de luz
A vida que seduz
Todos os sentidos.
Cá dentro o meu sol posto
Expulsa para o rosto
A noite em que estou,
Nenhum sonho me diz
Adiante, o dia feliz,
Da tarde que voltou!
PROSTITUTA
Prostituta tua luta, tua labuta é imoral
Usa o corpo que parece a manchete de um jornal
Eu te acuso, ms te uso e te uso
E te acuso de venal, pecadora, desgraçada,
Sem vergonha e marginal.
Prostituta te entregas a quem te pague afinal
Te transformas na amante, na amada,
No refúgio, na esposa ocasional
E também no 'quebra-galho' mais bestial.
Hoje o Pedro, ontem o Paulo, amanhã?
quem sabe quem, pouco importa
corpo máquina, não pertences a ninguém.
Teu lar é a sarjeta, teu corpo, o 'ganha-pão'
Tua alcova, teus abusos, em qualquer lugar estão.
Prostituta, filha pária, catalizas teus vinténs,
O amor tu desconheces, só dinheiro te convém,
Vives na promiscuidade, é dela que provéns,
Sem jamais ouvir-viver o caminho que é de bem.
Prostituta, Madalena da era espacial
Não tem pena, te condenas a viver pelo mal.
Vês a filha que geraste, que vida ela terá?
Seu futuro, oxalá, não seja o 'trottoir',
Não tem pai, não terá mãe, não terá nada!
Prostituta mais te acuso, mas te uso
Embora queira te ajudar.
Prostituta tua luta, tua labuta é imoral
Usa o corpo que parece a manchete de um jornal.
Prostituta te ajuda, volta à vida, te ajuda,
Pede ajuda e perdão para os erros teus;
Prostituta te ajuda e te lembras, te ajuda
E te lembras que ainda existe Deus.
LOUCURA
Parado, olhei essa distância
que o separava de mim,
as grades da cela o mantinham afastado
do tempo, alienado, suo, irreverente;
sem compreender sua realidade
nem seu destino, não opinava
e introspectivo, parecia triste.
Olhou-me, devastando minha sanidade
e em um lampejo de inteligência sã
cuspiu-me toda a sua desgraça:
"Joga-me quatro bananas,
joga-me quatro bananas!", ordenou-me
diante de minha surpresa e constrangimento.
Por um momento meu silêncio e sua ira se defrontaram.
À explosão de escárnio sobreveio a frase que o mantinha vivo:
"Vou matar todos vocês, vou matar! Um dia, vou matar!"
Por que tanta agressividade? perguntei-lhe,
"Agressividade? agressividade?...
é que tu não sabes o que é ser louco!"
Recolhi-me à pretensa sanidade que detenho
com receio de meu egoísmo ressaltar meu ego
porque, quem sabe, louco tenha sido desde sempre.