quarta-feira, 24 de fevereiro de 2021

DOS CADERNOS DE POEMAS (TEMÁTICOS)


CADERNOS DE POEMAS DO POETA ITAGIBA JOSÉ (TEMÁTICOS)


I – POEMAS TRÁGICOS


II – POEMAS LÍRICOS


III – POEMAS CLÁSSICOS


IV – POEMAS ÉPICOS


I


POEMAS TRÁGICOS


- ÍNDICE –

Acidente

Facho de Luz

Morte Natural

Na Arena

Engrenagem

Bêbedos

Imaginação

O Algoz

Cavalos de Batalha

Triângulo

O Direito de Estar Só

Rosa de Chica

De Óculos Escuros

Remoinho

Sala de Jantar

Submundo

Identidade

Pés de Barros

O Passeio

Miséria

Do Ponto de Vista do Criminoso Ocasional

Percurso

Alegoria

Moleque Engraxate

Rancor

Desilusão

Nenhum Por Nós

Sol Posto

Prostituta

Loucura


POEMAS TRÁGICOS-POETA ITAGIBA JOSÉ


ACIDENTE

Um carro em alta,

Na rua baixa,

Canta pneu,

Um baque, surdo,

Bradou bem alto

O que ocorreu...

Um corpo rola

Como um bola
Cheia de adeus

E o carro em alta

Na rua baixa

Sangra pneu!


FACHO DE LUZ

Essa luz, tirem essa luz de cima de mim!

Ela me cega, essa luz, tirem, tirem de mim!

E novamente o torpor, na cadência do nada,

Invadia àquela vida que, na madrugada,

Diante da luz, dessa luz que a atormentava,

Se precipitara na loucura da escuridão.

Essa luz, dizia baixinho, essa luz, essa luz,

Murmurava o que ninguém suspeitava

Ou ouvira, jamais; e dormia e chorava

E morria e renascia para morrer de novo.

O médico, sonolento, da pequena cidade

Tentava fazê-la voltar à consciência...

Para que despertá-la? Se perguntava,

Retirar de seus olhos essa luz que a cega

E minutos atrás a mergulhara no abismo?

Como dizer àquela pobre mulher

Que o marido, os filhos, a sua família,

Há pouco sorrindo, há pouco tão viva,

Passara além do abismo à eternidade?

Nessa luz, a duzentos por hora nessa luz!


Essa luz, devagar, a curva ... meu Deus!

Essa luz, tirem essa luz de cima de mim...!


MORTE NATURAL

Morreu como tanta gente

Sem campos de batalhas,

Sem cama, sem palavras,

No anonimato.

            Em troca das flores,

            Velas ou lágrimas,

            Comuns diante da morte,

            Ganhou o aparato policial,

            A curiosidade popular

            E a manchete do jornal.

                        Ele que pouco ousara

                        Ter tempo de beijar os seus,

                        Beijou o asfalto à cem por hora.

                        Morreu como tanta gente,

                        No anonimato,

                        Atropelado pelo progresso.


NA ARENA

... E aí a calça caiu

Na gargalhada geral

Dos espectadores ...

Quem lhe mandou entrar

Na arena do circo

Sem roupas, sem artifícios

E sem o nariz de palhaço?

                                                Afinal é o riso a praga

                                                Que açoita o ridículo

                                                E o bem que me refaz

                                                Em teus braços.

                        Enquanto lhe caía as calças

                        Sua vergonha tirava férias ...


ENGRENAGEM

Andava pela periferia,

No fundo querendo penetrar no núcleo.

Dardejava, encanecia, pudera

Não é todo dia que se pode pensar raposa

E se deliciar em uvas maduras ou verdes,

Não importa, sempre uvas, ora!

De tanto se expor, foi sugado,

Caiu no teatro de marionetes,

Aceitando os cordões que lhe impuseram

E a manipulação de suas ideias e ideais.

Foi espicaçado, moído, desmoralizado,

Doutrinado, mas estava dentro do núcleo,

Seguro, sóbrio, e isso já lhe bastava.

Caiu quando acreditou estar subindo

E, triturado, jamais ser reencontrou,

Nem valeria a pena ou poderia fazê-lo

Eis que apodrecera como as uvas

Atiradas à pretensa raposa que seria,

Abocanhado por sua própria ambição.

… E dizer que um dia ele havia sido

Um contestador, da periferia,

E, quem sabe, um ilustre ser humano

Corrompido somente de ilusões e esperanças!


BÊBEDOS

Carne esponjosa

Regando a sarjeta

De lixo humano.

Bêbedo, como um trapo

Dorme com o sol do meio-dia

Batendo em sua cara.

Desviando do monturo,

Indiferente e irritado,

O mundo passa ao largo

Com olhos e nariz, tapados.                                           

                                                         Mundo dos homens

                                                         Regando a natureza

                                                         Com sua poluição.

                                                         Como o próprio bêbedo                        

                                                          Que reprova e expulsa,        

                                                          Dorme com o sol do meio-dia

                                                    Batendo em sua cara.

                                                  Embora todos os benefícios

                                                Não dá para passar ao largo,

                                              Nem tapar olhos, boca ou ouvidos.


                                SEM PALAVRAS

                                                Passou o dorso da mão direita

                                                Sobre os lábios lambuzados

                                                De sol, baba e cachaça,

                                                Da mistura do suor com o pó

                                                Fez seu último gesto simbólico.

Retirara da vida a febre, o vício

Em andanças por entre copos e garrafas

Buscando o próprio ego que vilipendiara

Abdicando de amigos e familiares.

                                                Quis ser sorriso, foi um escárnio

                                                Quis o mundo e nem teve a decência

                                                De lutar para ter, pelo menos, a si mesmo;

                                                Quis ser um deus e foi só um alcoólatra,

                                                Um demônio feito de despojos!

Ao limpar os lábios com o dorso da mão

Fê-lo para reencontrar-se com o amém

Sequer conseguindo reinventar-se perdão

Do que há muito esquecera, também,

Nem disse adeus, mesmo fosse alcoólico...

                                                Passar o dorso da mão direita, à chalaça,

                                                Nos lábios lambuzados de suor e cachaça,

                                                Foi seu derradeiro gesto simbólico...


TETUSKIN!

Apanhara a rosa no jardim do sonho

E desde então o sonho ficara rosa,

A noite se fizera dia,

E o dia se fizera vida.

Desfolhada a rosa

A vida se repaginou em noite

E do sonho restaram espinhos.

Tetuskin! Tetuskin! Tetuskin!

Ninguém entendia o que ela gritava
Para a vida, desesperada, crua,
Na linguagem dura da própria vida.

Tetuskin é tão incompreensível

Quanto a dor que sentimos

Ao perder o amor nosso de cada hora.

Tetuskin! Tetuskin! Tetuskin!

… Ela espinhava de solidão!


                            O ALGOZ

Sorria de fechar olhos e abrir orelhas

Mas permanecia mudo

Com tal atitude, parecia uma caricatura

E despudoradamente, negava o seu apoio.

            Como que recuperando o controle

            Sobre o músculo facial antes retesado

            Vociferou seu ódio sobre a indefesa vítima

            Que o mundo se encarregara de lhe devolver

            E se deliciou em ser a taboa podre

            A que o náufrago tentava se agarrar.

                                Tudo estava bem agora,

                                 Conseguira após tantos anos

                                 A vingança alimentada pelo ódio

                                Que por extensão o mantivera ativo

                                   Durante toda uma vida.

Realizara sua vingança

E desmentira os idiotas que a proclamavam

Como uma felicidade efêmera

Diante daquela oferecida pelo perdão.

                            Naquele momento deixou de ser a vítima dos outros

                                    Para se revelar vítima de si mesmo

                                        E jamais admitiu que os idiotas, à final,

                                                Os idiotas tinham razão!


                                    CAVALOS DE BATALHA

        As rodas de borracha deslizavam

        Mansamente, na cidade grande

        E nada chamaria mais a atenção

        Naquela tarde de chumbo e sol

        Do que tanta miséria retratada

        No todo daquela carroça;

A própria ironia, como se buscando

Um lugarzinho no asfalto quente,

se postara imediatamente atrás,

Num carro importado que buzinava

Querendo empurrar o lixo à frente,

dobrar à esquina, fugir ao contágio...

                            Percebido um gesto fugidio,

                            Nervoso, da mão que varou o vento

                            Indicando entrada à esquerda

                            O mundo parou, como sempre,

                            Para a miséria atravessar a rua...

Não sei qual o mais infeliz,

Se o cavalo ou o carroceiro

Ambos desnutridos, desolados

Puxando seus infortúnios,

Um atrelado a uma carroça

Outro, sem saber como ou por que,

Atrelado ao chumbo e sol da vida!


IMAGINAÇÃO (Em Algum Lugar do Passado)

Encontrara sua amada

Após buscá-la inutilmente na realidade

Reduzida a uma fotografia antiga,

Em uma casa de antiguidade.

Aquele rosto fotografado

No alvorecer da arte fotográfica

Espelhava a meiguice, a ingenuidade

Que ele sonhara haver existido.

Apaixonado por aquela imagem

Sabia que não a veria em carne e osso

Mas acreditava que a encontraria

Em um canto qualquer do infinito,

Lá onde os mortais penetram, apenas

Com as asas da imaginação.


Um dia, após violenta tempestade,

À sua frente fez-se o arco-íris

E, rapidamente alçou-se à estrada colorida

Percorrendo-a n'último sopro de vida.

Com a chave, que não soube explicar

Como viera ter às suas mãos,

Abriu as portas do Céu e encontrou sua amada.

A fotografia, do início de um século,

Transmudara-se para aqueles braços

Que o envolveram em sua Paz e Amor.


A cidade inteira, enquanto isso,

Penalizada comentava que perdera

Seu cidadão mais pitoresco:

Um bom sujeito, louco e inofensivo,

Que amava, como se o ato de amar

Por si só não fosse uma loucura,

Amava uma fotografia!


OBS: Registre-se que o poema foi escrito em ago/1967 e publicado em Dez/1976, anos antes da realização do belíssimo filme “Somewhere in time” (Português: “Em algum lugar do passado”), de 1983, estrelado por Cristopher Reeves e a encantadora, meiga, Jane Seymour, também Christopher Plummer, sendo o tema (história) idêntico, ou quase, ao deste Poema. Cremos tenha sido por mera coincidência!


ROSA DE CHICA

Rosa Laídes Vieira era seu nome e ninguém sabia,

Rosa de Chica era como a chamavam.

Tinha seus problemas sociais, morais, venais,

Mas fora moça prendada, de família, ingênua,

Até que um dia conheceu o cravo e com ele o espinho,

A dor, o abandono, a rua, o mundo e ninguém sabia.


Desprezada, humilhada, pisoteada, arrancou do útero

O filho que a amaldiçoara. Pariu na cidade grande!

Vendo arrancada do fundo de si mesma

A materialização de sua desgraça e pecado,

Instintivamente apertou a criança contra as coxas

E seu urro de dor abafou o único vagido da criança.

Esse foi o último fio de realidade

Que Rosa Laídes rompeu em um gesto de defesa

E foi nesta data que nasceu Rosa de Chica

Completa para o mundo... e ninguém sabia.


Rosa de Chica viveu durante anos à margem,

Na obscura rua da fatalidade, desdenhada,

À margem da Rosa Laídes que fora...

Quem matou o filho de Rosa Laídes?

Não foi Rosa Laídes, foi a de Chica!

Quem criou Rosa de Chica? Foi Rosa Laídes?

A conjuntura? O Destino? O Estado Puerperal?

Não, o estado Puerperal isoladamente

não mata filho de ninguém, nem de uma Rosa de Chica

sem pressões, loucuras ou arrependimentos!


Para analisar o nascimento de Rosa de Chica, comecemos por Laídes,

Moça prendada, de família, ingênua, até que conhece o cravo

E com ele o espinho, a dor, o abandono, a rua, o mundo...

Quem matou a Rosa Laíde e também seu filho,

Fazendo nascer a Rosa de Chica que todos ridicularizavam,

Foi tudo isso, meus jovem, foi tudo isso!


                                TRIÂNGULO

Belisca João o pé de José que bate na bola

Belisca João o pé de André que bate na cara de João.

João não reflete, se perde, reage e bate em André,

José se intromete, atrapalha, separa João e André.

                                Uma bala, uma faca, uma pedra, é o fim de José.

                                É João, é André, é a fuga, o medo, a noite, a morte!

                                Quem matou? Quem morreu? João, André? Oh, José!

João e André, três anos depois, é a condicional.

Já não é mais João, já não é mais André, são fantasmas

Libertos das grades de ferro da Penitenciária,

Prisioneiros ainda das grades chamadas lembranças

Que beliscam João, que beliscam André,

Se intrometem, atrapalham, separam João e André,

Como outros josés que trazem José...

                                Belisca João o pé de André que lhe bate na cara,

                                João não reflete, se perde, reage e bate em André.

                                Uma faca, uma bala, duas pedras, é o fim de João,

                                Também é o fim de André ... E José?

                                Morre agora, José!


O DIREITO DE ESTAR SÓ

Um dos gêmeos revoltado resmungava

O outro, humilde, permanecia quieto.

O primeiro estendeu-se comprimindo o outro

E tudo não passava de uma provocação,

Não estavam delimitadas suas áreas,

Nem cabia acordo; ao mais forte, tudo!

Enquanto se dilatava o ventre da mãe

Um sugava o alimento, o outro a fome;

Um o poder, o outro a servidão;

Um a exuberância física, o acinte,

O outro a fraqueza, a humilhação

E quando vieram ao mundo,

Ultrapassado o portal do indizível, 

O esfomeado engoliu o seu ódio,

O opulento engoliu o seu orgulho

E, mesmo assim, conseguiram permanecerem sós.

Abortados, jamais viriam saber

Que repetiram em um ventre de mulher

O drama do ventre do mundo.


 SALA DE JANTAR

A sopa fora servida quente e aguada

aos comensais da semana

e nem seus picantes temperos

alteraram a monotonia dos convivas.

Os pensamentos sobrevoavam extremos:

Qual a melhor maneira de jogar a sopa?

sobre o outro? no assoalho? ou no estômago?

As colheres retiniam nos pratos

que, conforme a sopa desaparecia,

mais se expunham ao metal feminino.

A mesa em leque fechava o ciclo

e os bancos duros integravam os caracteres

dos desventurados que suportavam.

Ao som do apito estridente

os convivas, cabisbaixos e ordenadamente,

acompanhados por guardas e metralhadoras

voltaram às celas e aos devaneios...

Amanhã, tudo seria igual e novamente! 


SUBMUNDO

Das veias do tempo, desprendeu sua história

Que jorrou fértil no ouvido curioso.

O farrapo falava de dores e mortes,

Definindo desgraças sem chorar suas causas,

Mas suas consequências;

A principal delas, ser ele apenado

Para o resto da vida!


Ele outrora orgulhoso e estúpido

Dono de uma cidade

E da manchete do jornal policial,

Ficara reduzido a um fardo de lamúrias.


Sozinho com suas lembranças

Passava seus dias e nas paredes

Da cela suja onde reinava,

Sabe-se lá se por ironia ou crença,

Escreveu em letras tremidas:

O CRIME NÃO COMPENSA”.


DE ÓCULOS ESCUROS

Hoje, estou a olhar o mundo de óculos escuros

E vejo tudo cinza,

Desanimo diante da perspectiva de enfrentar meu dia

E a natureza contribui para esse desânimo,

Está quente, grave, abafado.

Apesar disso tenho de fazer o que faço sempre,

Agir no mesmo diapasão

E dedilhar o conhecidíssimo teclado

Da velha máquina de escrever,

Cair na mesma rotina, cheirando a mofo.

Quando menino colori meus óculos de cor-de-rosa,

Depois várias cores alternaram-se nas lentes

Exceto a rosa que, agora sei, não mais virá.

Ao verde da adolescência sucederam-se o vermelho,

O amarelo, o lilás e este cinza que me cerca

E me força a usá-lo cada vez mais

Mantendo-se, possivelmente, como símbolo

Do azedume recolhido no interior de meu ego

Durante minha própria campanha na vida.

Espero que minha decadência física,

Amanhã, seja minha ascendência moral

Que possa cobri de branco o conteúdo inócuo

Trazido nas lentes da reminiscência.

Por enquanto e, pelo menos, hoje,

Estou olhando o mundo de óculos escuros

E posso afirmar, com toda certeza,

Não há beleza no que vejo!


                                                REMOINHO

                                Ajuda! Meu Deus, quem ajuda?

                                Vagando, vazado, reprimido,

                                Sem ter um riso ou a ti;

                                Ultrapassei o castigo, o bem

                                Da volta, não tem nada além

                                Nem aquém. Na lei do espaço

                                Quebrado me perdi, atingido,

                                Vivendo o não sei se eu sei

                                Ajuda? Onde está a ajuda?

                                Que se fez intangível, ruim,

                                Se no furor da verdade

                                Que se jogou sobre mim,

                                Ou no torpor da mentira

                                Onde com febre vivi?

                                Onde está, meu Deus, a ajuda?

                                O endereço dela nem tenho ou sei

                                Mas alguém tem de ser o alguém

                                Que perdi em meu dia a dia

                                Quando a tive e calei, e calei.

                                Ajuda! Ajuda! Sou eu ... sou ...!


                IDENTIDADE

Mantenho diante do vejo e sinto

Esta postura antropofágica como defesa;

Se não tenho o porto de herói ou guerreiro

É porque me contento em ser covarde ou,

Pelo menos, ser normal como todos os outros.

                Procuro manter coerência em meus momentos

                Para que no gênese de meus pensamentos

                Possa reter a ordem que o cotidiano retira;

Assim, construo dois mundos

O que pode parecer inadmissível:

Enquanto do lado de fora da muralha

Porto-me como gladiador embrutecido

Lá dentro deixo cantarem pássaros

No jorrar da cascata da imaginação.

                Não tenho pretensão de mostrar-me como sou

                Abrir-me para ser retalhado não é exatamente

                O que desejo; não tenho coragem para tanto

                Reconheço que se aparência e verdade

                Puderem ser mantidas sem atropelos

                Passarei pela realidade imposta pelo meio

                Sem prejudicá-la ou combatê-la.

À final, a inércia e a aceitação passiva

Fazem parte do arsenal da humanidade

E só e fraco não tenho forças para vergá-las.

                Todos transferiram a solução para todos

                E guardaram dentro de si o melhor que têm,

                Não sou exceção, pudera!


                PÉS DE BARRO

E a televisão abriu seu noticiário

Com o conteúdo patético de sempre:

Os homens continuam matando e morrendo,

O mundo, velha esponja regada a sangue,

Não se satura, nem explode de ódio,

Continuando, indolentemente, o mesmo mundo.

Até o pequeno e ousado jornal da cidadezinha

Conserva esta mesma postura trágica,

Tão antiga como o próprio anonimato

Das boas ações que o cotidiano abriga.

Tais ações, não têm a bela agressividade

Que as outras detém, nem lhes sobra

Um toque de extraordinário ou pecado

E por não terem mistérios ou ritos pagãos

Não fazem performance na publicidade,

Em decorrência, mão dão lucro ou audiência.

Cantemos, pois, o mal, tudo dos crimes,

Apontando guerras santas ou profanas

E de qualquer forma vis porque guerras,

Sem movermos mais que o necessário,

Quem sabe até nem isso, que se lixem,

Para salvar a pele dos insensatos, se possível.

                                O mal é tão grande que necessitamos

                                Criar super-heróis e violência gratuita

                                Para povoar os sonhos de nossos filhos.

                                Somos tão fracos que apresentamos o mal como um deus

                                E o bem, ah, o bem, como efêmero paliativo.

Esse ciclo da vida e loucura, continua a passar

Por nossos sentidos, tato, olfato, visão,

Nesse medo que temos uns dos outros

Vital ingrediente para o vigor do noticiário.

                                E dizer que vivemos de nossas misérias...


                DO PONTO DE VISTA DO CRIMINOSO OCASIONAL

                                        Sinto o peso do mundo sobre mim

                                        Pesa-me uma vida mais que a morte

                                        Tudo se conjugou para o resultado

                                        Que extinguiu sonho, extirpou força

                                        E, sem ânimo, prostrou a realidade.

                    Vertiginosamente ruiu a fé, o poder

                    E, impotente diante de um corpo,

                    Só, fraco, vazio, torpe, vi meu ego

                    Retratado em tantos monstros.

                    Instrumento, causa, consequência

                    Não importa, fui todas as coisas

                    Ou adjetivos, todas elas, tudo.

Interrompi uma trajetória, uma luz

Que não era minha e mesmo se fosse,
Não tinha tal direito; a partir daí
Fez-se tarde, falta, fardo, medo,
Fez-se ausência de quem nunca tive.
Fui o epílogo, inesperado e algoz,
De livro escrito por outros gestos,
Inserindo em meu próprio livro
O amargo capítulo de minha culpa,
A dura certeza de não haver desculpa.

                                        Continuarei a caminhada, a dois,

                                        Levando a minha vítima comigo,

                                        Eu também vítima de meu passado!


                                    PERCURSO

Quando então chegarem as lembranças, na lembrança deste céu

e teimosamente revigorar-se a esperança, na esperança deste céu

estarei regressando às reticências, na demência de sonhos incompletos,

vivendo assim o derradeiro lance de estrada que me leva até o depois.

Quando, então, voltar a ser garoto e não ser e fazer rir entre os moleques,

temperarei crepúsculos e alvoradas à fragrância de sonhos incompletos;

quando voltar a ser ninguém, ao ninguém que sempre sou,

no esquecimento, serei mero pó carregado nas asas dos ventos

 na plena orgia de saber-me nunca mais!


ALEGORIA

Cuidado que o bicho papão está

solto

o pão está caro e o dia está

roxo

e a luz acesa é a luz a pagar.

Cuidado, o celular estrila no bolso

apertado

e o riso de graça estraçalha

a vida no bocado

que fica na sua, continua nos homens,

na boca da noite, da fome.

Cuidado, o lado tem lado na rua,

devora tua própria escala

de nariz do palhaço, de morte 

que reduz tudo ao nada

e brilha à sombra da vida 

que se impõe ou pensa no nada

do teu tudo escasso que o vírus consome!


        O PASSEIO

Ia Maria

            Uruguaiana

            a Porto Alegre

vendendo vida

e ria tanto

e como ria

a Porto Alegre.

                Era o passeio,

                carro do ano,

                tão almejado,

                a Porto Alegre.

Mas de repente

bate em Maria

nos olhos turvos

à curva à frente

e o riso cessa

cessa o instante

e Porto Alegre

fica distante.

                Perdeu o Porto

                grande alegria

                com a Maria

                que chegaria.

                Cheia de espera,

                toda Maria

                que era linda,

                de Porto Alegre

                ficou na estrada,

                nem vinte anos,

                de Porto Alegre

                cheia de espera.

Em geada fria,

sem fantasia

a Uruguaiana

retornaria

e o passeio

tão esperado

restou Maria

 não consumado.

                Curva em Maria

                tanta existia,

                à curva nada

                sobrou a estrada!


                MISÉRIA

                                Tempo de pobreza

                                miséria dividida,

                                prato do dia

                                o sol do meio-dia.

À noite, as estrelas

e a água potável

da fonte inesgotável.

Enxuga o orvalho

de olhos, ranhetas,

espaços falhos, cabeça

no estômago vazio.

                                Imagina o mastigar

                                no deglutir gestos

                                engolidos em seco.

Tempos de pobreza

miséria esturricada

prato de dias a fio

a própria miséria!

Nem há mais razões,

estrelas, fontes, colmeias,

só misto de nada com tristezas.


MOLEQUE ENGRAXATE

Tão cedo para a vida acordaste

Moleque engraxate, tão cedo choraste

O choro que o mundo te provocou

Moleque engraxate a ilusão terminou.

Caminhas inseguro, moleque engraxate

Carregas na língua a fala que bate,

Pequeno e sisudo, arguto e vilão

Aprendes e professas outro palavrão.

Proclamas a glória de saber lustrar,

Tu que não sabes nem mesmo brincar

E o germe que viça em teu peito inocente

É o vírus do ódio que por tudo sentes.

O amor, infância são coisas banais

Sofres na carne realidade, punhais,

As feridas abertas não cicatrizarão,

Sucumbes ao vício, desconheces perdão.

Trabalhas agachado aos pés d’outra gente,

Pensa que dinheiro, moleque engraxate,

A tudo e a todos convence e abate.

Ah, quando te olho assim na sujeira,

Na altura do nada, criança fagueira

Deploro esta vida de muitos madrasta

Que divide os homens em classes e castas.

Vejo-te moleque, sem eira nem beira,

Pequeno engraxate entregue à fogueira

Do mundo imundo que bate e tonteia

E te fez tão jovem conhecer suas teias.

É noite e ainda tu andas nas ruas,

Perambulas sem dono, sem lar, continuas,

Apregoa tua fibra moleque falaz...

Moleque engraxate que pena me dás!


            RANCOR

Da caligrafia do tempo

    Despenca esmaecida

         Folha amarela, esquecida

    Ao peso dos contratempos.

          Fotografia de inverno,

             De tantos outros infernos

                  Das estações ressentidas.


DESILUSÃO

                    Eu o forte!

        Nada vendo em teus olhos,

Vi além, o reflexo dos meus.

               E sozinho amei,

            Inventei

       E arrebentei de nada.

Eu o forte! Eu, meu nada!


NENHUM POR NÓS


Flutuo em tua praia

Sabendo-me sozinho

E, só em mim, desmaia

O escuro do caminho.

        Na luz desse dia

        Que o sonho anuncia 

        Navego, me entrego...

Tu, na mesma praia,

Muito mais sozinha

D'outras madrugadas,

Feres como espinhos

As flores anunciadas

    E não se formam ninhos

    Na noite do enfim, sós,

    Aborta-se dia não nascido

    No escuro da indiferença.

Em nós e em cada um

Morre plural jamais vivido

Jazem corações e crenças,

           Tristemente, por nós, nenhum!


                                    SOL POSTO

                                E cai a tarde assim

                                Como a zombar de mim

                                Mostrando o que perdi,

                                Suspenso por um triz

                                O sol morre infeliz

                                Como eu também morri.

                                É tanto o encantamento

                                Na dor deste momento,

                                Registro a olho nu

                                E a cor da tarde calma

                                Esvai-se como a alma

                                Da tarde que foi tu...

                                Mas amanhã é certo

                                O sol aceso, esperto,

                                 Inteiro e renascido

                                Virá banhar de luz

                                 A vida que seduz

                                 Todos os sentidos.

                                Cá dentro o meu sol posto

                                Expulsa para o rosto

                                A noite em que estou,

                                Nenhum sonho me diz

                                Adiante, o dia feliz,

                                Da tarde que voltou!

        

                                PROSTITUTA

    Prostituta tua luta, tua labuta é imoral

    Usa o corpo que parece a manchete de um jornal

    Eu te acuso, ms te uso e te uso

    E te acuso de venal, pecadora, desgraçada,

    Sem vergonha e marginal.

            Prostituta te entregas a quem te pague afinal

            Te transformas na amante, na amada,

            No refúgio, na esposa ocasional

            E também no 'quebra-galho' mais bestial.

    Hoje o Pedro, ontem o Paulo, amanhã?

    quem sabe quem, pouco importa

    corpo máquina, não pertences a ninguém.

    Teu lar é a sarjeta, teu corpo, o 'ganha-pão'

    Tua alcova, teus abusos, em qualquer lugar estão.

Prostituta, filha pária, catalizas teus vinténs,

O amor tu desconheces, só dinheiro te convém,

Vives na promiscuidade, é dela que provéns,

Sem jamais ouvir-viver o caminho que é de bem.

            Prostituta, Madalena da era espacial

            Não tem pena, te condenas a viver pelo mal.

            Vês a filha que geraste, que vida ela terá?

            Seu futuro, oxalá, não seja o 'trottoir',

            Não tem pai, não terá mãe, não terá nada!

            Prostituta mais te acuso, mas te uso

            Embora queira te ajudar.

Prostituta tua luta, tua labuta é imoral

Usa o corpo que parece a manchete de um jornal.

    Prostituta te ajuda, volta à vida, te ajuda,

    Pede ajuda e perdão para os erros teus;

    Prostituta te ajuda e te lembras, te ajuda

    E te lembras que ainda existe Deus.


                LOUCURA

Parado, olhei essa distância

que o separava de mim,

as grades da cela o mantinham afastado

do tempo, alienado, suo, irreverente;

sem compreender sua realidade

nem seu destino, não opinava

e introspectivo, parecia triste.

        Olhou-me, devastando minha sanidade

        e em um lampejo de inteligência sã

        cuspiu-me toda a sua desgraça:

        "Joga-me quatro bananas,

        joga-me quatro bananas!", ordenou-me

        diante de minha surpresa e constrangimento.

Por um momento meu silêncio e sua ira se defrontaram.

À explosão de escárnio sobreveio a frase que o mantinha vivo:

"Vou matar todos vocês, vou matar! Um dia, vou matar!"

        Por que tanta agressividade? perguntei-lhe,

        "Agressividade? agressividade?...

        é que tu não sabes o que é ser louco!"

Recolhi-me à pretensa sanidade que detenho

com receio de meu egoísmo ressaltar meu ego

porque, quem sabe, louco tenha sido desde sempre.