sábado, 21 de setembro de 2019

PERCURSO


Então se deu
a imagem certa ilustrando
a despedida
para além das reticências
do quando de sua nova vida.

E compreendeu, tendo ciência
que do próprio fim
se faz o recomeço,
da própria perda
a lição do novo ganho
que forja estrelas
desde o seu próprio berço...

E logo adiante, buracos negros
de imensurável tamanho,
sem aviso ou apelo
sugarão estrelas
ao trânsito das derrotas...

Eis o início, eis o meio, eis a rota!

domingo, 8 de setembro de 2019

OUTRA DO MOLEQUE - DONA BONECA


Jamais o moleque soube o nome de batismo daquela vizinha; a conheceu como D. Boneca, mulher do “véio” Waldemar, não o do azar (na época circulava ditado que creditava à ocorrência de qualquer percalço ao Waldemar – “Azar do Waldemar!”, era a expressão corriqueira).

D. Boneca era daquelas pessoas que galvanizava às atenções de todos quer pelos ditos e comentários que amiúde espalhava, quer por sua, digamos, falta de erudição ou conhecimento sobre a maioria das coisas que tratava, o que não a impedia de dar seus “pitacos” sobre todo e qualquer assunto, pleno de convicções o que, se sabe, é apanágio dos ignorantes, com o devido perdão aos convictos.

Inegável, todavia, que não o fazia por mal, sim, pelo insano desejo de se demonstrar detentora de um brilho que certamente existia em sua imaginação e atrair terceiros ao mundo ideal que entendia viver, principalmente quando confrontava, sobre qualquer assunto ou comentário, seu amado esposo o “véio” Waldemar e dele, sempre, recebia total e entusiasmada aquiescência através daquele sonoro “Sim!” acompanhado de sorrisos, parceiros escancarados e leais. Waldemar era o “Senhor Concordino” por excelência, de uma cordialidade ímpar! Sóbrio e discreto, sempre!

Para melhor entender D. Boneca talvez baste saber da especial atenção, destinação, carinho até, que dedicava ao binóculo que possuía, um mágico aparelho que segundo ela trazia o longe para bem pertinho, ao alcance da mão e, com isso podia manipular o “longe”, ao seu bel prazer, colocando-o sob sua ótica, vontade e bem querer; também acreditava que, tal como o “longe”, a mágica contida no aparelho por ela manipulado, podia trazer até mesmo idos amores buscando-os, de novo, através de suas lentes e da fé, claro; seguidamente explicando, perguntava-se: se a fé removia montanhas, porque seu mágico binóculo não poderia remover entraves afetivos? trazê-los para bem pertinho para que fossem removidos pelas mãos, corações e a saudade dita doída, se transformasse, mais do que virtual, em inesgotável realização de eventos felizes e caros às pessoas, em especial aos enamorados? Acreditando piamente na “força benéfica” daquele binóculo, mal sabia que, dentro desse mundo, ilusória e inocentemente, compunha falácias e quimeras, todas harmonizadas com sonhos e metáforas... E quem pode atirar pedras ou não se deixar tocar pelo menos por um átimo de segundo diante dessa sutileza, dessa fuga em direção ao encantamento... Nesse sentido, certamente D. Boneca obtinha sucesso e distribuía luz, mesmo que advinda do fogo fátuo que emanava ...

Certo, também, que outra função, não tão nobre, era à sorrelfa exercida por aquele objeto, o binóculo; servia ele também para penetrar no âmago dos lares e intimidades dos vizinhos, à esquerda, à direita, à frente, à diagonal, aos fundos, sem preferência pela operadora, D. Boneca que, assim, sabia mais de todos do que de si própria e era portadora de novidades que em primeira mão e aos cochichos exarava ao pé de ouvidos sedentos de “fofocas”.

Foi através dele que D. Boneca “descobriu” que uma doença, encoberta pelo obsequioso silêncio da família, desfigurara o rosto do “seu” Danúbio. Ocorre que, então, o câncer era novidade entre as doenças e, na crendice dos incautos, era considerada flagelo enviado por Deus como castigo pelo comportamento do indigitado doente, que não trilhara por caminhos que Ele declarara correto, fazendo súcia com demônios... Assim, era comum esconderem a doença ou chamá-la por qualquer outro nome, menos nominá-la pelo que, de fato, era o seu, isto é, câncer. Afora isso, também por ser, então, sempre fatal era um atestado de óbito ambulante, com data de vencimento marcada para próximo.

Solícita, prestativa, sempre pronta a socorrer terceiros com seus abalizados conhecimentos D. Boneca buscou e dissertou aos familiares do doente sua teoria de possível cura; através de acurados estudos, certamente, notara que o câncer era um micróbio insaciável que, segundo a segundo, consumia a carne e tudo o mais do portador e isto estava bem claro no caso do “seu” Danúbio que já contava com um buraco escancarado na face esquerda e logo adiante o teria na direita, com o nariz e a boca como intermediários e assim por diante. Para sanar o problema, entendia e preconizava fosse o “buraco” preenchido por carne crua e fresca, inicialmente de gado que, acaso não resolvesse, deveria ser trocada por carne crua e fresca de ovelha, de galinha, ou de porco, ou quem sabe de preá, ou pela mistura de todas elas, ou ainda por outros tipos de carnes de animais fornecedores até encontrar àquela, do gosto e predileção do micróbio e que substituiria a do “seu” Danúbio que, assim não muito tempo depois por reação de seu próprio corpo, preencheria o buraco de sua face. E quando não foi assim, a culpa era do gosto seletivo do micróbio pela carne humana, nem quando misturaram todas as carnes em bife prensado e inútil ao desiderato...

Quanto ao micróbio, se não morresse empanturrado de carne animal, seria por indigestão ou cólica, comum a todos os gulosos ou angorrientos (Do ditado espanhol que vivia a repetir – e que aprendera com a tia do moleque, D. Eustáquia: “Todo angorriento, se muere corsiento” – versão literal: Todo guloso, morre de “caganeira” - cólica). Quanto ao mau cheiro exalado pelo repasto do micróbio, nada que um bom perfume, como o Amor Gaúcho (L’Amour Gauchô, para os cultos), não resolvesse. Enfim, o micróbio “comedor” não morreu, ao contrário, matou “seu” Danúbio, para ele, de carne apetitosa embora a idade; ou, quem sabe, o micróbio morreu junto ...

Paralelo a tudo isso, D. Boneca descobrindo mazelas e doenças de terceiros, com a inabalável fé dos predestinados a salvar o mundo, obrava no receituário de ervas, por exemplo indicando chá de malva para dente inchado, inflamado; chá de losna ou de boldo para o fígado (ou figo, como chamava); chá de barba de milho para a bexiga e os rins, também de pata de vaca; suco de limão puro, sem água ou açúcar, para mais de cento e setenta doenças; bife mal passado de fígado de gado e também suco de ameixa seca, para anemia; chá de laranjeira para dor de cabeça; bananas para câimbras ou dores musculares; como poderoso antídoto às infecções lavar a ferida com água de Cinamomo (planta que em Uruguaiana chamam de Paraíso, cujo preparo, ensinava: Macerar folhas da planta em água contida em um recipiente, até deixá-la com a cor verde e lavar a ferida; pegar outras folhas e colocá-las na chapa quente do fogão, até secá-las e, após, transformá-las em pó colocando-o sobre a ferida – funciona como “pó secante”, tendo o conjunto, alto poder de cura e cicatrização do ferimento); para os homens, um “tira perfume” infalível: esfregar a parte perfumada com folhas de cinamomo – era tiro, queda e adeus ao perfume delator ...

Além disso e como não podia deixar de ser D. Boneca ensinava ou discorria sobre “simpatias”, das mais diversas: para casamento, uma das mais difundidas era acender uma vela branca e vermelha (branca da paz, vermelha da paixão) ao pé de Santo Antônio, durante sete sextas-feiras, rezando ajoelhado, vestido de roupa clara e, se conhecida o nome da pessoa amada, declamar com fervor o nome da mesma uma dúzia de vezes; também àquela para mandar embora visita inoportuna, colocando atrás da porta uma vassoura virada; para se proteger de “agouros” ou “maus olhados”, saquinho amarrado de sal, carvão, alho, arruda e guiné, colocados também atrás da porta ou carregados em bolsos ou bolsas; evitar de andar de costas, mesmo por brincadeira, principalmente à noite pondo em risco a saúde e a vida da mãe; não dormir de braços cruzados para evitar que o anjo da guarda abandone o incauto e sobrevenha pesadelos durante o sono e infaustos acontecimentos nos dias seguintes; ao cruzar com gato preto, fazer o sinal da cruz normal três vezes e na mesma quantidade fazê-lo de forma diferente, de baixo para cima e da direita para a esquerda... e muito mais que o moleque não tinha memória tão aguçada, atenta ou esperta para guardar tudo!

Aliás, não foram poucas vezes em que o moleque, desaforado, metido, contradisse ou gargalhou acintosamente de afirmações que D. Boneca do alto de sua inesgotável sabedoria despejava sobre todo mundo, também por sobre sua paciente e mansa mãe que não reagia ao ouvir àquelas, em maioria de vezes, sandices ditas com a convicção de sempre. Incontáveis vezes foi o moleque motivo de queixa apresentada por D. Boneca à mãe dele, por fatos decorrentes de desrespeitosos comentários brincadeiras indevidas perante terceiros, enfim, um desaforado e malcriado que tinha que ser contido pelos pais porque assim, dali não podia se esperar grande coisa, “devendo se endireitar o pepino desde pequeno pena do bicho continuar torto pela vida inteira”... Não poucas vezes a mãe, repreendeu severamente o moleque, insistindo para que ele demonstrasse o respeito devido aos mais velhos, principalmente a uma pessoa tão boa e solícita quanto aquela vizinha, mesmo quando ela se atrapalhava ou exagerava em fantasiosas teorias e contos e, afinal de contas, ele não tinha nada que se meter em assuntos dos mais velhos mesmo se dele concordasse ou discordasse. O moleque aprenderia, mais tarde, o quanto o mundo necessita desses atrapalhados, ou melhor, cândidos e inocentes inofensivos, para não sucumbir às maldades dos poderosos, para esquecê-las, reprimi-las e continuar exercitando o sublime, o bem e a placidez do sonho, sem o pesadelo e grilhões do materialismo pagão, da falta de comiseração, misericórdia, humildade e perdão; não basta apenas ser ou muito menos, ter, eis que é preciso sonhar para ser feliz, apreendeu.

Certa feita, D. Boneca discorreu sobre o destino e escolha dos alimentos após ingressarem à boca do alimentando: disse que, os alimentos sólidos entravam à direita da “goela” (literalmente), enquanto os líquidos, à esquerda desta; quando um ou outro errava o caminho acontecia o inevitável congestionamento goelístico resultando no afogamento do indigitado alimentando. Por isso, necessário muito cuidado no “ingerimento” de alimentos, tentando dar aos líquidos o início e o final da alimentação enquanto no meio os alimentos sólidos que, acaso fossem mal endereçados, seriam auxiliados pelos alimentos líquidos ao menos no sentido de que seriam um tanto quanto mais escorreito, sem travar ou impedir a sequência alimentar. Alertava, porém, porque pequeno, escorregadio (muito mais quando untado de banha de porco) e travesso, para aquele que considerava o mais perigoso dos alimentos sólidos, o arroz, que “vivia” desviando seu endereçamento para o caminho dos alimentos líquidos, criando uma confusão que acabava com ele indo e parando no inóspito “goto”, refinado produtor de “afogação” banhada em lágrimas que iam direto para os olhos do infeliz afogado e que se localizava à esquerda (ou à direita, ou quem sabe ao centro, não sabia ao certo) da garganta de quem de frente a olha, uma espécie de “buraco sem fundo” das mazelas, curvas e incorreções dos labirintos da “goela” de todo e qualquer ser humano. Claro que o moleque ao ouvir tal pregação plena de uma insuspeitável convicção, irrompeu em gargalhadas consideradas ofensivas por D. Boneca que só não bateu nele porque era educada e não conseguiu pegá-lo ...

Bem assim era a incrível D. Boneca que ainda vive pelo menos na lembrança do moleque e muito mais teve de protagonismo na vida deste que, como uma das personagens de sua infância, ainda é conservada em sua memória afetiva que, pensa, ainda bem que não tem o inóspito e profundo “goto”, tampouco o voraz, angorriento, antropofágico e seletivo micróbio que devorou a face do “seu” Danúbio que, parece, foi o único ser humano que morreu de “bife na cara”!