segunda-feira, 22 de março de 2010

Ato de viver

Não chores o passado
nem premedites o futuro.
Por pior que seja a realidade
a surpresa, por seu inesperado
traz um misto de vida
que renova mesmo doloridamente
a carne e o espírito.
Por isso, aprende a viver teu presente
como se ele fosse teu último momento
e dessa forma reterás todos instantes
e formarás a aureóla de felicidade
que todos pretendem encontrar:
nada escapará à vida, tudo será vida.
Não esqueças porém que o ato de viver
não impede o ato de amar:
Um é essência do outro!
Amar a vida deve ser não só um desejo
como também um oceano real e atuante
onde naveguem corpos, espíritos e sonhos
Um dia navios cansados, cascos arrombados
naufragaremos no desconhecido,
apesar disso o mar continuará nos retendo
e vez que outra olhos curiosos, despertos,
revirarão o pó e recomporão nossa paisagem.
A história não deixa em paz, perenemente,
seus integrantes. Vive pois o teu presente
que logo será passado, história, viagem
e de tua vida outros se ocuparão, por certo!

Perspectiva

Não se abraça a essência do vento
e ele impune nos bate no rosto
levando consigo nosso pensamento
que vaga no espaço de nossa ilusão.

Não se cobre o curso do firmamento
e ele impune cabe em nossos olhos
agindo em sorrisos perdidos, amados,
retendo consigo nossa imaginação.

Nem se vive a verdade da vida
que como o vento nos agita o rosto
como o firmamento nos cabe nos olhos
e como o amor ficou para amanhã.

Escuta

Quero que me escutes com os poros de teu corpo e alma
não quero que minha voz penetre em teu ouvidos
nem machuque teus tímpanos com ruídos estéreis,
quero ela penetrando em teu ser, louca e totalmente,
para tocar lá no fundo, que não mostras,
e ressoar, ecoar como sino que canta a aleluia
em tua emotividade e vibrar em ti, no teu querer.
Quero mais, que ela te envolva e me transporte
para o infinito que me acena de teus olhos,
para a espera e o sonho contido em teu gesto,
para a suavidade e a incógnita de teus lábios
e paire tranquila por sobre édens e solidão
e como nau exploradora do desconhecido de teu ego
traga-me, em sua volta, via eternidade
tudo que de ti espero e amo, traga-me a vida
em forma de beijo, o mel em forma de carinho...
Quero que me escutes com os poros de teu corpo e alma.

Velho menino

Velho menino, menino velho
de profundas rugas também n'alma
andas com calma, já não te apressas
foste guerreiro de um tempo antigo
e buscaste abrigo em ilusões.
Traz no teu rosto um riso vago
não é escárnio, nem ironia
é um riso morto, sem fantasia
que tantos dentes já abandonaram.
Veho menino teus desatinos, tua saudade
atrás ficaram; tudo passou, também passaste
no tempo imutável que te adornou
com a branca neve em teu cabelo
e te fez pai e te fez avô
renovando teu espírito enquanto
saldava a dívida em teu corpo.
Já estás cansado, só tens presente,
do teu passado só o bom recordas
e quando acordas no teu futuro
nem acreditas existir mais,
pois bem sabes, velho menino
que o corpo finda e a vida vai...
Inseguro então vacilas, não temes a morte
morreste tanto, temes a vida,
viveste tanto mas vendo-a fugir
por entre teus átomos sentes vontade
de viver mais pois apesar de não ser tão bom
é o que conheces, menino velho.
Não te preocupes, velho menino
terás outras vidas em teus descendentes
e, por igual, terá muitos, muitos dentes
pois meu menino o teu espírito é imortal.

Conjectura

Não é fácil explicar o que nos é insensível,
mais fácil é sentir o que não se explica.
Vejam o amor, por exemplo,
grafado pela ação humana
serve-a sob todos os pretextos.
Esse mesmo amor retirado da essência dos sonhos
não explica nosso egoísmo,
nem se consagra em nossa insanidade.
Ninguém diz: "Amo, porque..."
Ama apenas e nisso se basta!
E se não fora assim, toda a ilogicidade
e imprevisão da vida estariam fundadas
apenas na morte material...
Por isso que, sentir sem poder explicar
ou fazê-lo sem sentir é parte de cada um.
E quem sabe o homem elevado a tanto raciocínio
que lhe desvenda tudo através da lógica
consiga ficar isento de dor ou sofrimento...
... e não seria insípido e sem graça o ato de viver?

Prostituta

Prostituta tua luta, tua labuta é imoral
usa o corpo que parece a manchete de um jornal.
Eu te acuso mas te uso e te uso e te acuso de venal,
pecadora, desgraçada, sem-vergonha e marginal.
Prostituta te entregas a quem te paga à final,
te transformas na amante, na amada,
no refúgio, na esposa ocasional
e também no quebra-galho mais bestial.
Hoje o Pedro, ontem o Paulo... amanhã?
quem sabe quem! Pouco importa
corpo máquina, não pertences a ninguém.
Teu lar é a sarjeta, o teu corpo o ganha-pão,
tua alcova, teus abusos em qualquer lugar estão.
Prostituta filha pária, catalizas teus vinténs
o amor tu desconheces, só o dinheiro te convem
vives na promiscuidade e é dela que provens
sem jamais ouvir-viver o caminho que é do bem.
Prostituta, Madalena da era espacial
não tens pena, te condenas a viver pelo mal.
Vês a filha que geraste, que vida ela terá?
Seu futuro, oxalá, não seja o "trottoir",
não tem pai, não terá mãe, não terá nada...
Prostituta mais te acuso, mas te uso
embora queira te ajudar.
Prostituta tua luta, tua labuta é imoral
usa o corpo que parece a manchete de um jornal.
Prostituta te ajuda, volta a vida, te ajuda,
pede ajuda e perdão para os erros teus
prostituta te ajuda e te lembra, te ajuda
e te lembra que ainda existe Deus!

Sinto que estou só

Eu me sinto tão sozinho
desconheço os caminhos
onde minh'alma andou
é que eu estou perdido
tenho o coração ferido
porque ele muito amou.

Se beijar fosse pecado,
já estaria condenado
pois beijar muito beijei
há porém o desencanto
muitas vezes, entretanto
eu beijei, mas não amei.

Encontro-me inconformado
de tudo já bem cansado,
inclusive de viver.
E me curvo a realidade
é difícil em verdade
ser feliz e não sofrer.

Hoje estou envelhecido
da vida desiludido
sem carinho e sem amor,
só me resta a dura sorte
de esperar até que a morte
venha me livrar da dor.

Pois morrer se-me afigura
como um sonho que me augura
felicidade sem par,
desconheci na poesia
a sublime fantasia
que na morte vou buscar.

domingo, 21 de março de 2010

Andorinha (Microconto/Continho)

Fui súdito de sua beleza; fui certeza do seu amor. Hoje aceito dentro do peito saudade e solidão, qual andorinha ela partiu, p'rá ser rainha n'outro verão.

Anjos (Microconto/Continho)

No céu os anjos crianças foram patinar no gelo; na terra caiu granizo.

Acidente (Microconto/Continho)

O carro em alta, na rua baixa, canta pneu; o corpo rola feito bola, cheio de adeus. Baque surdo brada bem alto o que ocorreu. O carro em alta, na rua baixa, sangra pneu!

domingo, 14 de março de 2010

Bala Perdida (Conto/Continho)


Rita arregalou os olhos. Não podia crer no que via. Agarrada ao marido caído berrava o que lhe martelava o cérebro: O que era aquilo?... de vermelho, manchou o vestido... quase desmaiou... Em pé Marcelino, pálido e sem voz contemplava o amigo caído.

Na mão de Marcelino, o revólver...

Rita custou a se refazer da surpresa e estarrecimento. Só aos pouquinhos foi reaprendendo a respirar, reativar o tato... De súbito, pôs-se a correr desabridamente... Como um bólido desceu a rua e como se tivesse em mãos um megafone gritava a plenos pulmões: Mãenhêee! Mãenhêee!

Era inverno, quase dez horas da noite, os pais de Rita estavam deitados. Embora o prateado da lua brincasse de fantasiar o dia lá fora, o horário era tarde para quem levantava com o sol ou o chumbo da alvorada, ainda mais com o frio intenso que fazia. Tudo era silêncio, o sono chegava breve, agora perturbado por aquele som que chegava de longe pelo grito angustiado, aflito de Rita...Rita?... Mal sabiam os velhos do pesadelo que se avizinhava, recrudescido pelo som nervoso e inopinado que, agora, batia na porta, estalava na frente da casa e vigoroso invadia o quarto e a vida deles...

É a Rita - disse a mãe.
Escuta! - disse seco o pai,
Mãenhêee! - explodiu dentro da casa.
É ela - uníssonos disseram ambos, enquanto que, simultaneamente, saltavam da cama e passando por sobre tralhas que chamavam móveis chegaram à porta da sala do casebre, abrindo-a.

Diante deles, Rita desabou em grunhidos e soluços. as manchas vermelhas do vestido falavam mais alto que o vermelho dos olhos e do próprio pranto: É sangue!

O que foi?... O que é isso?... O que houve contigo?... - as perguntas brotavam em atropelos.

- O Gelcy... - Rita balbucia...
- O quêe?... Por quêe?... - berra o pai
- O que aquele cretino fez contigo? ... - incrimina a mãe.
-... mataram ele... - conclui Rita.
- O quêeee!... Quem?... Por quê? - berram os pais...
- Fala, pelo amor de Deus, fala... - berra a mãe...
- Calma, velha, calma, deixa ela... -
- Que calma nada, fala...
- ... Lá em frente de casa... mataram ele, mãnhêe, mataram ele... - prantos e soluços por toda a Rita a interrompem severamente.
- Onde ele está?... como foi?...Meu Deus... - diz atônito o pai...
- ... Na frente... o Marcelino ...tiro... caído... está morto...

Sai o pai correndo, vestindo calças sobre as ceroulas e meias, de chinelos e camiseta de mangas compridas; logo atrás, a mãe, lhe segue em corrida plena, com um casacão por sobre a camisola, também de meias e chinelos, junto com Rita, ambas em prantos. Os três disparando rua acima, densos de infortúnios.

- Pobre Gelcy, tão moço... - pensavam os pais enquanto corriam...
Rita não pensava. Sofria e corria!

- Compadre, o que foi que eu fiz... - balbuciava Marcelino agarrado ao amigo baleado e que sangrava abundantemente.

Pessoas surgiram de dentro da noite enluarada, quase dia. A curiosidade, antes da solidariedade reunira as pessoas. - O que aconteceu?... - Todos perguntavam e se perguntavam... - O que acontecera?... - Como? Por que? Houve briga? eram tão amigos e agora isso?... - Tantas perguntas e um fato: Gelcy fora baleado por Marcelino, algoz e vítima, que continuava agarrado ao compadre baleado, vítima acidental de um delito.

- Temos que levantar o Gelcy daí e levá-lo para o hospital - falou alguém, mais alto que o rumor do vozerio e letargia, normal, que afeta todos em ocasiões como essa...
- Mas será que ele está vivo? - alguém duvidou...
- Não é bom mexer com o corpo ou qualquer coisa da cena do crime, chamaram a polícia por acaso? - afirmou e perguntou um dos curiosos.
- Chamaram e é bom esperá-la - respondeu um terceiro.
Um vizinho se aproximando de Gelcy vendo-o respirar berrou - Que nada! Ele está vivo; sai Marcelino, tragam uma cadeira, vamos sentá-lo...-

- Tomávamos chimarrão e conversávamos... fui mostrar ao compadre que se acontecesse comigo o que ocorrera com meu mano a coisa seria diferente... Os navais surraram ele na pensão da Tia Florzinha... eram quatro e ele sózinho não arrepiou, mas apanhou tanto que até foi parar no hospital... - tentava explicar Marcelino enquanto alguém lhe assistia e dizia: - È melhor sair correndo daqui, agora, a polícia foi chamada e se te pegam é cana certa... é o tal de flagrante, homem...
- Mas foi um acidente - continuava balbuciando Marcelino - Eu ia mostrar ao compadre que se fosse comigo, e não o meu mano, eu pegava o meu Bagual 22' (marca e calibre de revólver de fabricação argentina) e, atirava nem que fosse p'rá cima, p'rá espantá-los... saquei a arma e fiz o gesto correspondente e a arma disparou com a bala acertando a cabeça do compadre... Meu Deus, meu Deus, o que foi que eu fiz, meu Deus!... matei o meu compadre, matei o meu amigo... e agora, o que faço agora?... -

Um espectador curioso ouvindo Marcelino e refletindo profundamente concluiu que ele fora epílogo de livro que não era seu e não tinha o direito de sê-lo e que por certo carregaria em seus ombros, pelo resto de sua vida sua vítima ou, quem sabe, um cadáver como, aliás, todos carregamos os nossos com o atenuante de nos sabermos apenas espectadores sem culpa ou dolo pelas perdas dos entes queridos próximos e, mais ainda, distantes de qualquer sentimento que não o da constatação estatística, dos terceiros incertos e não sabidos. Mas isso era mera filosofia de uma noite de inverno, muito fria, muito clara, enluarada...

Enquanto isso, levantaram o Gelcy e o sentaram na cadeira. Apertam-lhe no pescoço o orifício por onde adentrara a bala, querendo estancar o sangue. O velho Raul, vizinho, marido de D. Anália, carreiro de profissão, já aprontara o carro rainha puxado pela parelha de cavalos, o Solito e o Luar, com boleia e capota, estava pronto para levar Gelcy ao hospital como finalmente o levou.

Chegam, Rita e seus pais. - Ele está vivo! ... - exclamam! - Gelcy, fala comigo - implora Rita sem obter resposta...

...

Chega a Polícia. A confusão geral vai aos poucos se acalmando. Todos falam à policia, da vítima, do algoz, da poça de sangue que registra o local da queda de Gelcy (a terra sugara o vermelho do sangue de Gelcy e o devolvera como uma mancha negra que nem a noite prateada amenizara) Sai a polícia rumo ao hospital sendo cientificada pelo plantonista que lá, com muito esforço falara Gelcy que fora um acidente, Marcelino não tinha culpa... - Enquanto isso, mesmo com sua liberdade em perigo Marcelino vai com sua bicicleta até o hospital, ficando lá fora ao alcance de qualquer notícia, rezando pela recuperação do amigo.

Devagar o pesoal se afasta do local da tragédia, subidividido em vários grupelhos, encompridando a noite, no aguardo de resposta à curiosidade que detém... e as notícias não tardam... trazidas não se sabe como nem por quem, desencontradas e cheias de mistérios chegam todas ufanas em sua verdade...Gelcy morrera ao chegar ao hospital...ainda estava na mesa de operação lutando pela vida... o médico disse que o risco de morte é muito grande, tendo pouquíssimas chances de sobrevivência... a enfermeira disse que a coisa está tão preta que o óbito é questão de minutos...
A cada notícia, novas conjecturas, novos rumos. Aos poucos, cansados pelas elocubrações e notícias desconexas, na magia da noite que se esvai, os grupelhos vão se dissolvendo até que fica apenas o palco da tragédia iluminado pela lua que morre, pela alvorada que chega e pelo silêncio de um quase nunca mais...

Na sala de operações Gelcy sofria delicada cirurgia. A bala penetrara-lhe pelo pescoço alojando-se em um osso da base do crânio. Por milímitros a bala não lhe atingira a artéria, o que, tivesse ocorrido, o teria matado na hora. Por sorte não sofrera hemorragia interna.À cirurgia meticulosa, demorada, sofrida, não fora possível a extração da bala. Por algum tempo, enquanto convalescente todo o cuidado era pouco, para que a presença da bala na base do crânio não deflagrasse uma hemorragia fatal.

Marcelino foi processado e absolvido, em juízo singular pelo acidente causado. Gelcy, vítima, recuperou-se após algum tempo, do episódio e da lesão sofrida. Não teve seqüelas de qualquer ordem. Ambos continuaram amigos e compadres sendo que Marcelino jamais voltaria a portar arma; aquele Bagual 22' tinha-lhe dado o desgosto e amargura suprema de se ver assassino e
quase o transforma nisso e o que é pior, em cima de um grande amigo.

Gelcy e sua família, vencido o período e trauma inicial, voltaram ao cotidiano; tudo como antes. Ele, mestre padeiro, fazendo pão de qualidade na Padaria Rosa; Rita continuando a realizar seus afazeres de dona de casa e seus bordados nas calmas noites do lar, como àquela, agora distante, n'um frio dia do início de maio daquele ano quando ao levantar os olhos foi surpreendida pelo clarão e estampido de uma arma de fogo e, concomitantemente, com a queda do corpo de Gelcy, abrindo às portas de um inferno que rezava jamais viesse se repetir...

Sete meses depois daquela noite que pensara ter eliminado da lembrança, Rita se encontrava em trabalhos de parto no mesmo hospital, Caridade de Uruguaiana, onde Gelcy fora salvo. Era seu segundo filho e quando do acidente Rita não sabia que o esperava, grávida de dois meses. Olmir José (que seria Almir José, não fosse um erro do escrivão do Cartório de Registro das Pessoas Naturais) o filho recém nascido, segundo o médico obstetra, apresentava paralisia dos membros inferiores, com a possibilidade de ser permanente o que, juntamente com inoportuna e momentânea paralisia dos membros inferiores de Rita na hora do parto, prejudicara seu nascimento sendo o parto efetivado à fórceps. O doloroso diagnóstico viria a ser confirmado com o passar dos anos e catorze operações a que viria a se submeter (O)Almir na vã tentativa de andar com suas próprias pernas.

(O)Almir jamais caminharia fisicamente falando já que, como pessoa tornou-se bem maior e completo do que tantos que, ditos sadios, só sabem deambular com suas própria pernas sem sequer utilizar um átimo de sua imaginação e bondade. (O)Almir somente nasceu e ficou privado de uma condição física, comum a tantos, de resto foi e é superior às vicissitudes e preconceitos que enfrenta e vence!

O disparo acidental de Marcelino fizera mais do que uma vítima! Atingira também (O)Almir mais grave e mais fundo do que atingira Gelcy!

Ninguém desde aí pode eliminar aquela noite cujo prateado brincava de fazer dia. A vida pregara mais uma de suas peças e as muletas (e cadeiras de roda) de (O)Almir, seu sofrimento, suas limitações, formaram o painel e o fardo dolorido de todos.

Para Rita a beleza daquela noite até o momento do disparo, nunca mais se repetiu...

sábado, 13 de março de 2010

Pequena vingança (Mini Conto/Continho)


Hoje, véspera de Natal de um ano qualquer, nem sei se pelo evento maior da Cristandade ter-se transformado, como tudo o mais destes tempos de aflição, nesta corrida consumista insana, comercial, sem limites ou ética, nesta tropelia do ter e do quero mais que esmaga a espiritualidade pelo materialismo pagão e inominável, sei lá se somente por isso ou por algo mais que meu subconsciente esconde diante da futilidade destes tempos, veio-me a mente a história daquele menino, guri, piá que, aos nove anos, em um Natal à moda antiga ganhou de presente o seu primeiro par de sapatos.


Abra-se parêntesis para dizer que até ali andara de pés descalços enfrentando às agruras de solos duros, caminhos cobertos por pedras afiadas e rosetas, espinhos que a Pampa esconde, ruelas, becos, avenidas e trilhas, em verões quentíssimos e invernos gelados do qual quebrara geadas e fizera diuturnamente a via sacra dessas vicissitudes comuns a todos materialmente desafortunados, com as solas dos pés endurecidas, rígidas, rudes, calosas que o continuado enfrentamento proporcionara e bem assim amenizara em boa parte o sofrimento esperado.


E ainda que assim fosse e o uso continuado houvesse deixado as solas dos pés em "melhores condições" para o enfrentamento das intempéries, o frio intenso ou o calor inclemente, espinhos/rosetas, cacos de vidro, lascas de pedras e tanto mais, dilaceraram sua carne, vencendo a barreira natural da calosidade formada, criando chagas e cortes que o tempo, o único e melhor remédio, se encarregara de cicatrizar, até que e novamente, ocorresse um dos fenômenos perversos e doloridos, próprios dos cíclos citados.


O guri não se continha de tanta felicidade ao receber de presente seu primeiro par de sapatos. Mesmo não sabendo calçá-lo, verificou que logo se tornaria especialista nisso também. Ah, as modernidades, como é fácil nelas nos adaptarmos...


Pois bem, após calçado o sapato, não sem muito esforço inicialmente para ajustá-lo aos contornos daqueles pés até ali livres e soltos das rédeas por tanto tempo, o primeiro movimento do piá, o primeiro direcionamento dado aos seus passos agora ensapatados foram, firmes e resolutos, dirigidos à touceira de rosetas mais próxima e com uma satisfação estampada tanto nos olhos quanto na alma, caminhou sobre as rosetas, ao início lentamente como quem saboreia o movimento com total gozo, aumentando o ritmo do deambular com igual aumento de pressão, paulatinamente, até literalmente pisotear as indefesas rosetas que tantas vezes feriram seus pés,
consumando uma pequena, e doce para si, vingança...


Esmagou rosetas sem senti-las penetrando em sua pele; outras rosetas, é verdade, não àquelas que um dia feriram seus pés. Vingara-se nestas e isso aparentemente lhe bastava... Só não recuperara, nem poderia, as dores antes sofridas e tal ato, o de esmagar rosetas, não lhe trouxe lenitivo algum... Não se dera conta da inutilidade de seu gesto...


Iniciava o verão e o sapato seria a salvaguarda para seus pés estropeados; também no inverno quebraria geadas com gosto, sem dores, pés protegidos e sem peso na consciência... Aquele Natal, ao contrário da mensagem dos antigos Natais, de Perdão e Amor na sublimação do Ser, revelara ao guri o poder da retaliação da qual o mais forte sempre, ou quase sempre, lança mão sem se importar pelo desamor que a explode.


Como certamente o piá descobriria mais tarde, toda vingança, mesmo a maior, é inútil, descolorida, sem nexo ou efeito outro que não o de tornar infeliz o pobre de espírito que a comete. No episódio, a alma do guri ficara menor e o significado único trazido pelo presente que recebera, aquele par de sapatos, não foi vivenciado em toda sua extensão e magnitude, perdendo conteúdo o momento feliz vivido, pelo supérfluo de uma vingaça mesquinha... Quantos fazem isso, diariamente, em suas vidas?...

RELEITURA

Tu que vês e não enxergas
Pensas mas não refletes
Mais se quebra do que verga
Menos é do que parece.
Formas assim falso horizonte
Insustentável e sem prumo
Sem o amanhã que do ontem
Resulta desvendando rumos.
Do tanto vivido antes
Este hoje sem doçura
Realiza, dissonante,
Contra-senso, releitura.

Passam ao largo, vinhetas                      Que se encontram no infinito
N'um concreto apressado                        Nelas, o infinito meu
E no meio fio, na sarjeta,                        Descobre o nós, no seu
Navalhas cortam passados.                     Despido de qualquer mito...
Nem tudo é o que parece                        Sai, chega, vem, vai e volta,
O direito do anzol é torto                        Pelas trilhas desbotadas,
Perder a vida é estar morto                     Expandindo-se em estradas
Na morte tudo se esquece...                    N'um quê de natureza morta
Os trilhos são paralelas                           Que se acende e revigora
Com começo, meio e fim,                       No sim d'alma rejuvenescida
Em verdade, são assim                            N'um sopro que produz vida
com a aparência daquelas                        Com vigor de nova aurora!

Contato imediato

Assim que te vejo fico enternecido
Nada é impossível ou proibido
E psicologicamente desando
Sem defesa ou comando
No físico entumescido.
Nada mais vale tanto a pena
Senão alma e corpo, apenas,
Inteiros vivendo, sem alarde
Como se antes fosse cedo
E o adiante muito tarde.
A vida feita brinquedo
A química, o cheiro
Refletem o destempero
Do macho que se expande
E o desejo se faz grande
Imerso de alegorias
Pouco importa seja dia,
Hora, noite, quando ou onde,
O juízo não mais esconde
A esperança, o amor, a fé,
Nada foi! Nada será! Tudo é!

Presença

Um tudo que se foi no tudo que não veio...
Agora e sempre estou lembrando de ti e de mim
Por tudo que fostes e és em mim e fui e sou em ti
Pelo que poderiamos ter sido ao fim e ao meio...
Lembro-te pela fantasia do menino desde o início
Tu um anjo, cabelos claros, naquela alameda
À sombra dela o maior de todos nossos beijos
A inocência de nossos abraços, gestos e afetos,
Os nossos sonhos, receios, nossa tarde leda.
Dos teus olhos de sol graça e carinho se espargiam
Neles tua suavidade, paz, cumplicidade, reluziam
No imenso sonhos de ficarmos juntos à vida inteira
Que mesmo distantes um do outro foi consumado
Por se manter vivo, presente em nós nosso passado
Que se revigora nos encontros que temos à beira
De nossas próprias vidas e histórias em paralelo
E forma, para todo o sempre o indestrutível elo
Do que um para o outro fomos, somos e seremos.
Mal sabíamos então por qual razão, o destino decerto,
Nos condenaria a ser fonte e luz de outros universos
Sem retirar a doçura daquele amor que ainda temos.

Depressão

Na compilação destes dados tresloucados
Amargas horas que me tragam e esmagam
Não vejo ninguém comigo e desacompanhado
Inclusive do meu próprio ego ou mistério, sigo,
Sentindo meu sol se por em horizontes etéreos.
E do zênite deste universo torto, avesso, raso,
Não escapo ou fujo ao meu ocaso... nem reajo!
E como mosca presa à teia da viúva negra
Desando na agonia deste agora antropofágico.
N'um esgar quase trágico mordo a isca da ironia
No paradoxo de estar vivo e sem vida, um nada!
Sou muito mais do que estou agora à revelia...
Preciso crer que deste escuro virá a alvorada
Como em outras vêzes me condenando ao dia!...

Regras do agora

O dia foi destinado para ser vivido. Ativo.
A noite, para o descanso. Brando.
Do destino virá a morte, sem aviso
de quando e onde se fará o encanto
e o descanso, dizem, eterno será (?) ...
Dia ou noite, pouco importa quando,
vives pois as tuas noites e os teus dias
sem descanso ou dor, vivo e satisfeito
sem amargura ou agonias
neste mistério, graça e fulgor
que o agora te oferece e insiste
desabrochado do amor de que és feito
eis que o amanhã é mera fantasia
poderá vir, mas ainda não existe...

Mellyssa, Gabrielle e Luize (MGL-Mundos de Graças Luzídias)

Ao "M" que tenho gravado
No fundo do coração
Acrescentei o "G", forjado
No mesmo amor e afeição.

"M" de "Mel", na doçura
Marota de seus olhinhos
Saltita a inocência pura
Porto do nosso carinho.

"G" de "Gabi", pacotinho
de risos e de ternura
Em teu olhar adivinho
Tuas futuras travessuras.

Adiante, o "L" de lindeza
Que se espera sempre dure
Pintando o sete, a fortaleza
Da Poli-Gatinha, "Lule".

DVDs, filmes, brinquedos,
A infância, "Mel", "Lule", "Gabi",
A vivenciem sem medos
Pais e avós estão aqui!

Anjinhos de caras sujas
De feijão preto, churrasco,
"Cacácas" e, de lambuja
Fraldas e guardanapos.

Manhãs de sol e de vida
Que brilham no nosso céu
São amores, são queridas,
São nossas "Lule", "Gabi" e "Mel".

Gatinha-Gatinha é Mellyssa
Gabrielle Tri com meiguice
E p'rá completar a missa,
Poli "Lule" com a sua morenice.

Cresçam sem pressa meninas
Dos nossos olhos, que amamos
Sejam felizes, traquinas
E, adiante, o que desejamos.

sexta-feira, 12 de março de 2010

Um sopro de vida, apenas.

Mais que o riso, mais que a prece
Queria que tu me desses
Um sopro da vida que sobra em ti
Não precisa mais que tanto
P'rá recuperar todo encanto
Da vida que falta em mim.

Se deres o que te peço
Do zero ao tudo, recomeço
Na vida que estará em mim.
Ao contrário, deves saber
Condenas-me a morrer
Por falta do que sobra em ti.

Charla de balcão

Escorado ao balcão
bate charla João
jogando trela p'rá fora
carneando problemas
falquejando dilemas
no copo da hora.
Vai gastando bombachas
botas, cuscos, guaiacas,
gineteando ilusões
pela pampa da vida
na visão destemida
é o senhor das ações.
E o dia assim passa
sem saber como, passa
'à lo largo' de João
quase nada é sentido
pois o que faz sentido
é o copo na mão!

Balão de aniversário

Tu que tiraste e queimaste o negro sangue,
a seiva, a flor, no canto de tuas guerras
ouví os gemidos dos seres exangues,
e os tenebrosos rugidos do centro da terra.
Haverá de sentir, eu também e como,
na pele, n 'alma, em tudo o que somos
Os efeitos do mal que praticamos
Destruindo o planeta que habitamos.

A terra oca, desmatada, vazia
Flutua qual balão de aniversário
da rota do sol, perdido, à revelia,
Desnorteada, bêbada em seu eixo,
no espanto do agora, este rosário
Tropeça no buraco negro do desleixo
E a natureza cobra o seu preço...

Saga

Senhor,
não me agrida com sua barriga
cheia de reis e fartura,
contenha-se!
Sou o Zé que a fome adotou
e, aparentemente, Deus esqueceu.
Sei, e como sei, minha fraqueza
não vêm de sua prepotência e força,
ela vem de meu nome dispersivo
(e forte quando unido -quando?!!!),
de minha desigualdade intrínseca
e de uma vaidade que se deleita
diante da demagogia que a infla
e dilacera.

Senhor,
não me agrida com seus raios
cheios de trovóes e ameaças,
contenha-se!
Vê o céu encher-se de lágrimas
e o mar de céu,
o universo apresentar-se ali ao alcance
da mão e ambição da humanidade?
Escutou acaso o som
de minha humilhação contida,
explodindo minha garganta,
implodindo meu orgulho, minha fé?
(eis-me assim mais fraco, só
e arrebentado).
Caminho sobre brasas,
mas ergo o teu nome,
recebo cinzas e elejo à fome
meu cotidiano.

Senhor,
não me agrida com sua esmola
cheia de fugas e piedade,
contenha-se!
Não busque através dela saldar dívidas
que possa ter com sua consciência.
Não mereço carregar em mim mais este peso,
permita-me a irreverência de recusá-la.
Deixe-me pensar que assim respiro,
pequena travessura deste eterno menino,
este etéreo e intangível ar de liberdade.
Minha imaginação atropelada pela realidade
não fere sua passagem, não atinge sua paisagem.

Senhor, não me agrida com suas promessas
cheias de arco-íris e quimeras,
contenha-se!
Um minuto de seu silêncio
pelo silêncio de uma vida
(sem importância porque minha vida)
um minuto para mim, o seu escravo,
para todos os zés, escravos seus,
que seguirão sem sonhos, ao sabor da história
dela fazendo o embuste
que iludirá os descendentes.
Permito tudo. O que mais deseja? Porque me agride?
Os que virão continuarão a saga da hipocrisia
que me leva a serví-lo. Todos felizes, para sempre.

Stress

Correu célere em busca do amanhã
na doida certeza que o alcançaria.
Sem tempo a perder e tudo a fazer
preocupou-se e ganhou uma úlcera.
Fechou-se em si mesmo dobrando o ritmo,
cultivando a volúpia do poder.

Duro foi despertar sem identidade
naquele hospital que desconhecia.
Um corpo cansado, uma mente abalada.
Um nada ao quadrado!
Enquanto corria rumo ao amanhã
não se deixava viver o presente
nem ser ou fazer alguém feliz.

Recuperado, não buscou o amanhã antecipado
e viveu em cada segundo sua eternidade
compreendendo que a vida ou a felicidade
é o instante que fica, embora passado
é o instante que passa, embora presente
é o instante que vem pelo inesperado.

Cristo

Quem é Cristo?
Deve ser esta força
que impulsiona minha fé,
ou então essa tremenda
energia de mais de mil cavalos
que impulsiona meu motor;
um motor cansado, abatido
cuja última gota de gasolina
se foi há muito tempo;
um motor cujos pistões
tocam a música inaudível
do ronronar da incerteza
e cujas bielas foram soltas
pela ação corrosiva da desventura;
um motor que não merece
nem o óleo que consome e queima e não existe.

Quem é Cristo?
Deve ser esta força
que impulsiona minha fé,
não pode ser este mundo
que laureia minha descrença
e nem pede auxílio, nem auxilia!
Apenas mata ou entorpece
enquanto aos fracos reveste
dessa farsa passiva de existência.

Quem é Cristo?
Não diga que é o Filho de Deus
sem sentir o que isso significa
tornando-a uma frase vazia que o tempo
agilmente colocou entre o fanatismo
de alguns e o ateísmo de outros.

Cristo é o dia, é a noite (estrelada),
é a chaga, é a dor, a alegria, a beleza,
é o sorriso, é a paz, o meu corpo,
o teu corpo, é o espírito, é a prece,
Cristo, enfim, é o Amor em letras versais,
em todos os idiomas, sob todos os nomes,
sobre todos os mundos.

À minha musa

Lês os tolos versos que te escrevo
com o coração a ouvir baixinho
a canção ternura, a canção carinho
que neles a te ofertar me atrevo.

Sentes na maciez da pétala caída
o suave perfume de aroma agreste
e a naturalidade que ao poema deste
além da grande paz nele contida.

Vês nos versos que invadem o espaço
o teu perfil formado no regaço
da inspiração tênue que ele alinha.

Do infinito a luz a terra espreita
Tal qual meu sonho que de ti aceita
a sua própria vida, musa minha.

Visão

No trajeto teu trejeito
aromado e satisfeito
mesmo com este verão,
lá de longe eu te sigo
tendo como meu abrigo
este sol de tua visão.
Permito-me a eloqüência
sem deter a impaciência
que meu ser todo comporta
e, bem sei, é teu encanto
causa viva deste espanto
que à loucura me transporta.
Lamento que esta alegria
de te ver sempre de dia
não te faça perceber
que a noite, deprimido
qual demônio arrependido
de ti tento esquecer;
não adianta, és minha cruz
e em meus sonhos és a luz
que não posso segurar
entre os dedos reverentes
alma e corpo, convergentes,
és meu ponto de chegar.
Quando passas, não te chamo
tu não sabes, eu te amo,
amo teu jeito de andar,
amo teu rosto, os seios,
teus quadris e seus recheios
e tudo que não posso olhar.

Inventário

Parecendo distraída
Passeava meio perdida
Em meio aos devaneios
De sua mormacenta vida.
O vento batia palmas
Na tarde louca d'alma
E a sede que beija sua boca
Quase rasa, sem os recheios
Que um dia fizeram marcas
Perde-se no ultimato
Dessas lembranças amargas
Vestidas de lágrimas tortas
Despetaladas dos fatos
Lambuzados nas derrotas.

O que fizera de si?
O que fizera pra si?
A sensação de estar morta
Era só um de seus pesares.

Ao girar os calcanhares
Perdeu-se na desventura
Tonta, quase sem sentido
Não percebendo ter sido
Escolha, medo, tortura,
Gagueira no tanto ido.
Soube neste agora turvo
que o tudo que buscara
Só existia num nada,
No escuro dessa estrada
Em que sempre tropeçara...

quarta-feira, 3 de março de 2010

Finitude

E quando desces o sol
sobre a neve do meu cotidiano,
o gelo desliza, degela
inundando a primavera de cascatas
que soam um marulhar de sonhos e estrelas.

É tua presença, neste sol amarelo e vivo
quem aquece e reanima o tudo tido e ido
refazendo, célula a célula, o inomínável
(infinito e intangível instante de amor)
É tua presença em tudo isso, provocando
visão de centelhas de eternidade em mim,
ao gelo da tarde de ontem e de antes que morre.
A noite então, está distante
e a plenitude do sempre
rasga-se em luzes de agora
e o tudo é, existo, a vida é e transcorre...

Mas nada é definitivo, nem nós o somos
e as correntes de elos fortes rebentam-se
entre o peso e a dor do haver passado.
Nem mais cascatas, nem mais abismos,
a alvura da paisagem cega e os ombros curvos
abraçam a noite polar. E tudo é nunca mais...

Metamorfose

Espera que eu creia nas juras que faz?
Que pensa que eu sou?
Esgotou o seu crédito, sabia?
Lamento dizê-lo, simplesmente acabou!
Já não faço do vento uma parcela
de minha soma ou de qualquer total
nem castelos de areia abrigam minha crença,
e o mundo continua a girar, tudo bem, tudo igual!
Somente fiquei mais objetivo, temperado,
enfim eu mudei, não sou mais o mesmo.
Aquele passionalismo que foi minha expressão,
o arrebatamento, a ilusão acabou, acabou!
Vivi o bastante, errei outro tanto, mas aprendi,
as lições foram variadas, custou muito, mas aprendi!
Vê, não me venhas com juras, promessas,
não creio em você. Ah!, a grande vantagem
é que agora creio em mim e piso na terra.
De resto, agradeço a você
por ter feito de mim exatamente o que sou:
um ser racional que colheu do amor
um pouco de dor e muito de paz...
um ser que sonha dentro dos limites
que a realidade impõem.
Por isso, não venhas com juras que creio
em sua aptidão de jurar... por nada!
O meu sonho morreu em suas mentiras
e através delas você passou em minha vida,
passou, deve conformar-se com sua herança!
Adeus, suas juras não têm o meu crédito
e o amor feneceu na própria ilusão que ele foi.
Adeus a vida é isso aí, exatamente
e eu renascido para o mundo real
agora que aprendi, vou renovar o fascínio
que sinto, em outras paisagens, todavia
não usarei mais binóculos ou lentes de óculos,
verei por mim mesmo... e com estes olhos, ora!

Cavalos de batalha

As rodas de borracha deslizavam
mansamente na cidade grande
e nada chamaria mais atenção
naquela tarde de chumbo e sol
do que tanta miséria retratada
no todo daquela carroça.
Própria ironia como se buscando
um lugarzinho no asfalto,
se postara imediatamente atrás da carroça;
um carro importado buzinava,
queria empurrar o lixo à frente,
dobrar a rua, desviar, fugir ao contágio...
Percebido um gesto fugídio,
nervoso, da mão que varou o espaço
indicando entrada à esquerda,
o mundo parou como sempre
para a miséria atravessar a rua
sem saber qual o mais infeliz
se o cavalo ou o carroceiro
ambos desnutridos, desolados
puxando seus infortúnios,
um atrelado a uma carroça
o outro, sem saber como ou por que,
atrelado ao chumbo e sol da vida.

Projeto

Não farei tese, síntese ou quaresma,
nem quero lavar as mãos no sangue do mundo,
quero apenas mediar todas as questões
sem prevenção ou jurisprudência, isento!

Baseado nessas premissas
construirei meu silogismo
e conduzirei meus passos
à Lógica que amo tanto;
nem por amá-la, entretanto,
deixarei de traí-la em nome
da loucura primitiva que habita
o fundo de mim mesmo,
essa loucura que me faz procela,
eloqüência ou redemoínho e me projeta
sobre o norte de tantas paixões
com a ferocidade da revolta
e me esfacela, me sangra, me ilude
e me faz um ser inexplicável
cheio de vida e de morte...

Reconheço-me, assim, inimigo
de meu próprio objetivo
mas, talvez por isso mesmo,
detendo a força necessária
para vencer-me, conhecer-me, conquistar-me.

Incógnita

Quem és?
vens de uma noite
que ninguém entende
e dilapidas um dia
que ninguém viveu.

Quem és?
sorris ante a ignorância
e te serves dela como um trunfo
e te esqueces dela como um sábio.
Talvez sejas a solidão, a dor,
ou simplesmente a verdade
que não quero admitir
nem enfrentar. Quem és?

Ah, reconheço em teu aroma,
em tua obesidade, o volume
crescente de tua coragem
e, apesar de minhas negaças,
como o tempo, estraçalhas as mesmas
e surges imponente e grave
no manto que cobre tua nudez
e reduz o teu impacto.

Como uma artista de mil predicados
no strip-tease do tempo
deslizas o manto e te descobres
aos olhos curiosos do historiador.
Por que não me deixas tocá-la, agora,
tal como és, sem sombras ou dúvidas?
E em troca me dás, a minha certeza,
a verdade que os séculos cobriram de pó
e nem recompensas a minha procura,
ao contrário alimentas as minhas perguntas...
Quem és?

Fuga

Não estou p'rá ninguém
nem p'rá mim,
estou de férias de tudo,
de todos, enfim eu saí
lá p'r'os confins da terra,
lá p'r'os confins de mim...

Não estou p'rá ninguém
nem p'rá sonhos ou tragédias,
nem p'rá ritos ou porquês,
quero descartar a comédia
que me fez em um só tempo
ter amor e odiar você.

Não estou p'rá ninguém
nem p'rá minha solidão...

A infância perdida

O Itinha que eu tinha
hoje não tenho mais,
perdi-o nos labirintos
do mundo civilizado.
Presumo que o Itinha
afogou-se na vergonha
de ter-me alterado tanto
e mudado como cera
ao toque do cotidiano,
desaguando em tantos vícios
com status de adulto.

Por que é que não retive
o Itinha que ainda vive
no menino que eu fui?
O Itinha que eu tinha
hoje eu tenho na lembrança.