Engraçado,
a primeira coisa que lhe passou pela cabeça naquele momento terrível
foi, exatamente, jogar água, muita água pelo corpo, pela roupa,
contra àquelas chamas que lhe lambiam, queimavam e o faziam,
finalmente, crer que o inferno realmente
existe!
Mais
interessante, ainda, é que a fumaça o fazia sentir-se pesado,
embotando seus sentidos, todavia, sem sufocá-lo ou intoxicá-lo; ele
movia-se com certa dificuldade, pesadamente, enquanto uma sensação
de ardência ou ardor tomava conta de seu corpo e de seus olhos.
Sabia
que precisava fazer algo, sair dali correndo, caso contrário,
parecia, morreria “assado”, porém como iria consegui-lo? se nem
sabia como chegara ali, não conhecia aquela casa, jamais a vira e,
sinceramente, nem sabia como fora apanhado naquela situação. Tudo
era tão confuso, etéreo e obscuro, entretanto, o calor era
sufocante, real, existia e queimava, a fumaça, o terror anunciando o
apocalipse... Sua mente se recusava a recuar no tempo tornando o
passado uma incógnita, nebuloso como o ambiente em que agora seu
corpo e alma se encontravam, aumentando sua tensão neste enigma!
Estava ali molhado e ardido, com o inferno em sua volta queimando até
os maus pensamentos, em desespero, agitado, confuso e com medo!
De
sã consciência, como se fosse possível conservá-la sã naquela
situação, não saberia contar com a precisão que agora se faz
necessário o que se passou posteriormente. Lembrava-se da sensação
de buscar mais e mais água e, conseguindo encontrá-la, vinda
sabe-se de onde, nela lambuzou-se, molhou-se todo e na busca daquela
pequena brecha que parecia ser uma janela aberta impetuosamente
jogou-se por entre às chamas com suas mãos cobrindo seu rosto,
ultrapassando-as e chegando à abertura que de fato era uma janela só
que localizada à respeitável altura, como se fosse um segundo ou
terceiro andar, não soube definir bem, todavia consciente de que
estava muito acima do solo porquanto vira, de relance, intensa
movimentação lá em baixo, na rua que, tampouco, reconheceu onde
era ou se realmente era uma rua. Voltou-se então às chamas com o
olhar de quem busca uma melhor solução, ponderando se melhor seria
se jogar à rua, com o risco inerente de morte ou, em melhores
hipóteses quebrar pernas, costelas, braços, enfim, sabe-se lá,
todos os ossos, ou voltar às chamas, atravessá-las em busca de
outra saída, quem sabe uma escada, pagando o preço de mais uma ou
algumas novas tostadinhas. Não dá para precisar com muita exatidão
o que houve de fato, só soube que pensou ter visto um vulto,
diminuto é verdade, que pareceu mover-se atrás das chamas e que,
n’um impulso insensato e irresistível foi arrastado para junto do
mesmo, jogando-se através das chamas, desprezando a relativa
segurança que a janela lhe dava, em síntese deixando o purgatório,
voltando para o inferno, sem muito pensar, como se fosse possível
pensar, então. Além das chamas encontrou um corpo caído, era de
uma criança, de, quem sabe uns sete ou oito anos que desfalecera
sufocado pela fumaça e cujo corpo já apresentava pequenas
queimaduras em algumas partes.
Seus
braços, suas mãos, seus olhos, mais, muito mais do que todo o resto
do corpo, lhe ardiam, seus cabelos crepitavam, ficando mais crespos
do que realmente o eram; em alguns pontos a própria roupa, agora
seca, iniciava a queimar. Tomou a criança em seus braços e a
sensação de torpor, de impotência, de terror até, que gelava seu
sangue, dele tomou conta... De nada, absolutamente nada lembraria
adiante, exceto uma vaga impressão de que voara por sobre as chamas
com a criança em seus braços e pousara com ela na mesma janela, o
purgatório onde antes estivera e ali, bem ali, agora viria lhes
alcançar o socorro, através dos Bombeiros, heróis anônimos com
sua escada mágica!
Na
manhã seguinte, acordou em sua cama com as mãos, os braços e
algumas partes do corpo, ardendo, quase em carne viva, com visíveis
sinais de queimadura. Por um bocado de tempo ficou sem saber o que
acontecera realmente e após muito pensar, não teve, nem muito tempo
depois, nem hoje tem ou encontrou explicações plausíveis para o
que denominou como um fenômeno chamado “Um estranho caso de
incêndio”. Sabia que era bobagem, mas a única coisa que realmente
lembra com inusitada sensação de alívio e alegria e que restou
íntegra daqueles momentos cruciais é a de voar por sobre as chamas
carregando uma criança nos braços, como se fosse, voar por sobre as
dificuldades e sofrimentos que todos sentem aqui ou acolá e volta e
meia machucam, levando no colo a esperança.
Em rápida retrospectiva naquela manhã conferiu que
ontem havia sido treze, logo hoje é quatorze, tudo confirmado pelo
calendário ao seu alcance; lembrava-se que fora deitar por volta das
onze e meia ou quase meia-noite, em sua casa e que, cansado,
adormecera quase imediatamente; não era sonâmbulo nem dado a sonhar
ou se lembrar de ter sonhado, por mais adoidado que tivessem sido
como o que achava ter tido. Teria sido sonho ou, e muito mais para
este lado, pesadelo dos bravos e tão real que lhe deixou marcas,
dores e, principalmente uma terrível preocupação com a próxima
noite e todas as outras noites que virão...
Ainda sob o vendaval e vertigens das tantas
interrogações que lhe soterravam foi procurar nos jornais da cidade
notícias sobre possíveis incêndios, nada encontrando, não
ocorrera nenhum incêndio digno de anotação jornalística, muito
menos salvamentos de quem quer que seja. Como explicar as
queimaduras? Como? Se tivesse acordado com a cama molhada diria que,
inadvertidamente, urinara na cama e, embora o desconforto, tudo
estaria bem e, exceto pela falta de explicação das queimaduras,
pelo menos a água faria sentido... Acordar pronto para enfaixar os
braços e mãos com gazes e pomadas, tenha dó, é pior do que trocar
fraldas, pois não?... Não fossem as queimaduras teria certeza de
que fora sonho porquanto a sensação de voar, o calor, o clímax e o
heroísmo somente poderiam ser explicados por esse lado, ora... o
fantástico é que não conseguia e acreditava que nem mágico
conseguiria, explicar o inexplicável: o quê que realmente
acontecera enquanto dormira, aparentemente, tranquilamente, afinal
acordara pela manhã na sua própria cama onde deitara na noite
anterior... Era um caso sério, insondável...
...
Enquanto
isso, cerca de 1500,00 Km, ao norte dali, o único jornal da pequena
cidade em estrondosa manchete relatava, às minúcias, do incêndio
ocorrido no prédio mais alto da cidade, o edifício Chico Xavier de
portentosos três andares, durante a madrugada, enfocando com grande
alarde o salvamento de uma criança, de oito anos de idade, feito por
um desconhecido que, vindo sabe-se lá de onde, logo após o feito
heróico, desaparecera em meio a confusão que se forma nessas
ocasiões, ao que parece, ferido e sem esperar os agradecimentos ou
as homenagens que, juntamente com os Bombeiros, certamente lhe seriam
endereçadas...