quinta-feira, 26 de março de 2020

OUTRA DO MOLEQUE - OS CLÁSSICOS MUSICAIS


Conforme escrito, dito e repetido, o moleque participou de inúmeras serenatas com seu pai e seus amigos seresteiros, ratificando a iluminada presença do virtuose do violão, Miguel “Dedo de Ouro”, o ritmista Charanga, o pandeirista Geada, Beijo e seu bandolim, dentre outros que desfilavam pelas ruas de Uruguaiana, religiosamente nas noites de sábado para domingo, cantando músicas da época, todas marcadas por belíssimas e poéticas letras que espelhavam a profunda e nutrida cultura artística de seus compositores; além deles, os intérpretes possuíam qualidades inigualáveis a ponto de, até agora, poucos tenham alcançados o nível de qualificação daqueles, podendo se dizer que, no masculino, ainda reina com folga, o grande Orlando Silva, “O Cantor das multidões” cuja qualidade artística, canto, afinação, interpretação e voz ainda não tem ou teve quem possa sequer se comparar; no feminino, entretanto, a maravilhosa Dalva de Oliveira, a rouxinol que reinou absoluta, até a chegada da incomparável Elis Regina que, dotada de incomum condição a ponto de sua garganta ser classificada como se fosse um instrumento musical afinadíssimo, superando àquela com larga margem devendo continuar detentora desse cetro e reverência, como Orlando e junto deste, para todo o sempre, como os melhores cantores brasileiros de música popular, de todos os tempos, sabendo-se que outros tantos, da época, tinham grande qualificação, bastando citar alguns como Sílvio Caldas (O Caboclinho Querido), Francisco Alves (O Rei da Voz), Emilinha Borba, Marlene, Linda batista, Carmen Miranda, Angela Maria (A Sapoti), Nelson Gonçalves e um pouco mais adiante, Miltinho, Altemar Dutra, Moacyr Franco, Roberto Carlos, Jessé, Maria Bethânia, Alcione (a Marrom), Wanderléya, Núbia Laffaiete, etc.

Então, se pode dizer que o moleque além de gostar muito, tinha um bom conhecimento da música popular eis que cercado por “cobras criadas” desta e sabia, cantarolava até, várias das músicas ditas de serestas principalmente a considerada rainha, a belíssima “Chão de Estrelas” composição de Orestes Barbosa e Sílvio Caldas cujos versos, como “... A lua furando nosso zinco / Salpicava de estrelas nosso chão / Tu pisavas nos astros distraída / Sem saber que a ventura desta vida / É a cabrocha, o luar e o violão.” estão inscritos nos píncaros das metáforas; aliás, esse nível foi alcançado pela celebrada música de Nelson Cavaquinho “A flor e o espinho” nos versos carregados de lirismo, o que se encontra em todos os demais, que explode corações derramando (com)paixão “Tire seu sorriso do caminho / Que eu quero passar com a minha dor / Hoje pra você eu sou espinho / Espinho não machuca a flor...”; também por Guilherme Figueiredo e Luiz Gonzaga no celebrado “Assum Preto”, (respeitada a grafia dada à letra, então) “... Assum preto véve sorto / Mas num pode avoar / Mil veiz a sina de uma gaiola / Desde que o céu, ai, pudesse oiá /...”; ou ainda pelo cantor, compositor e poeta, Moacyr Franco, com seu “Pedágio” que dentre elevados e marcantes versos, lá pelas tantas declama “... Só se vive mesmo nove meses / Pois o resto, amiga, a gente morre .../... Deixe o mundo se matar lá fora / E me mate só de amor aqui...".

Registre-se que o moleque, logo adiante, integrou o Canto Orfeônico Villa Lobos do Cólegio Estadual Dom Hermeto, regido pela sábia professora Ieda, e se tem pálida ideia de sua paixão pela música. Antes disso, porém, em uma tarde em que se dirigia para uma “pelada” com toda a gurizada da região, no campo do Sete de Setembro dos irmãos Sapatta, Neri, Marcelino e Osvaldo (Touro), palco do grande clássico do futebol amador, contra o Internacional, e que ficava localizado logo após a antena da Rádio Charrua, ao passar à frente da casa do sargento Cesar ouviu uma canção que mudaria ou ampliaria exponencialmente sua paixão pela música: ocorre que dito sargento escutava, em sua eletrola ou toca-disco, uma música cuja maviosidade e beleza encantou ao moleque que, lhe parecia, nunca tinha escutado nada parecido, nem tão lindo.

O moleque ao ouvir aquele som encantado, parou, recostando-se a cerca de madeira que separava o pátio da frente da casa à calçada e se deixou escorregar até sentar no chão, à sombra do paraíso (cinamomo), embevecido ou melhor, hipnotizado pelo que ouvia e nem se deu conta que seus movimentos e gestos eram acompanhado pelo sargento, cuja voz o alcançou embora lhe parecesse vinda de muito longe: “O que é que houve, moleque, está bem?”, “Sim”, respondeu completando, “é que eu estava escutando a música.” “Gostaste da música?” perguntou-lhe Cesar, “Sim, ela é muito linda!”. Intrigado possivelmente, surpreso certamente, o sargento propôs ao moleque que entrasse em sua casa que ele colocaria a tocar a música desde o início e assim aconteceu. Ela era muito linda como dissera e sentira, mais linda ainda ouvida desde o começo.

Finda a audição, a pedido do moleque que seguia ensinamentos de seu pai de que, sempre, deveria buscar a autoria, o sargento Cesar a identificou como sendo um dos Noturnos de Frederic Chopin, o Opus 14 ou, 26 ou 27, não lembra bem, e que ficara alegre por encontrar alguém que, como ele, gostasse de música erudita como fez questão de frisar, só que jamais poderia imaginar que essa pessoa fosse o moleque que ele evitava por ser muito malcriado, desaforado até, que aprontava demais para todos daquela região, inclusive para o próprio sargento e seus cachorros e, também, para os cachorros e para o tentente Otacílio, seu vizinho. Não foi propriamente um "pito" e nem isso foi assim recebido pelo moleque, desde que era mera constatação. Apesar dessas ressalvas, Cesar acabou mostrando uma coleção de discos de clássicos da música erudita, pontificando compositores como Ludwig Von Beethoven (5ª Sinfonia, Adágio da Sonata “Ao Luar”, Four Elise, dentre outras tantas maravilhas) Amadeus Wolfang Mozart (o mais completo, perfeito compositor de todos os tempos), Chopin (com seus Noturnos e Rapsódias), Johann Sebastian Bach (Jesus Cristo, Alegria dos Homens), Schubert (e sua comovente Ave Maria), Tchaikovski (O Lago dos Cisnes, Concerto nº 1 para piano), etc., acrescentando a tudo isso, óperas famosas, jamais ouvidas pelo moleque, como “Carmen” de Bizet (com a grande Dama e soprano Maria Callas, cantando a “Habanera”), Turandot (com a excepcional Nessum Dorma) e Nabuco (com o, também excepcional, Va Pensiero), ambas de Giuseppe Verdi, e outros discos mais... Lamentando apenas não ter sequer um disquinho de Caruso, fenomenal tenor italiano, Cesar visivelmente entusiasmado pelo interesse demonstrado, convidou o moleque para ficar ali, agora, para ouvir com ele algumas daquelas joias musicais.

Embora estivesse sinceramente impelido a ficar, o moleque optou pelo que lhe parecia mais agradável naquele momento e para o qual havia saído de casa, além do mais lá no campo do Sete estaria reunido com vários amigos, inclusive com seu amigo/irmão José Nilto Guirland e outros como os João Carlos (o Melena e o Imbido), o Wilson Guedes (Coco), o Vilmar (Gago), o Jurandir (Jura Gato), o Deca (Parrudo, que muio tempo depois seria goleiro do Grêmio FB Porto Alegrense),o Salvador Chorão, o Juarez Barbat, o Pedrinho (Sabugo), o Otto Pires (o Bronca), o Joal (Selo), o Luiz Chaves e muitos outros mais, jogando ou tentando jogar bola, o que era tão bom quanto ouvir aquela beleza de música chamada Noturno... fosse como fosse o convite do sargento Cesar era sem data marcada e a audição de todos aqueles discos e músicas poderia ser em qualquer dia considerando a disponibilidade do sargento, com duração sem marcação de tempo para terminar, como ocorreria logo, logo e por diversas vezes. Pode-se dizer que o sargento Cesar foi quem abriu às portas do maravilhoso mundo das músicas eruditas e óperas ao moleque.

A partir daí, seguidamente o moleque tinha o prazer de escutar músicas na companhia do sargento e de sua família, até porque, e também, a discoteca do sargento tinha vários discos de música popular, dos grandes intérpretes de então, que incluía, além daqueles já citados, o vozeirão de Vicente Celestino, Carlos Galhardo, Nora Nei, Jamelão, muitos tangos de Carlos Gardel cantados por ele e por outros como Hugo Del Carril, com a música francesa representada pelo “chansonier du France” Maurice Chevalier (perdão se a grafia estiver incorreta), pela grande Edith Piaf (La vie en Rose) e outros e a americana do norte por Nat King Cole (Mona Lisa) e Frank Sinatra (My Way). Para que mais, heim?

Foi o sargento quem ensinou ao moleque que a música se dividia em Erudita e Popular, cada uma com seus clássicos, além do que a música erudita um dia também fora música popular. Que, naquele momento, tinha-se na música popular algumas que já eram clássicos, como “Noite Cheia de Estrelas” de Vicente Celestino (cuja melodia e letra eram de beleza ímpar, principalmente nos versos “... As estrelas tão serenas / Qual dilúvio de falenas / andam tontas ao luar / Todo astral ficou silente / Para escutar / O teu nome entre as endechas / Às dolorosas queixas / Ao luar …”), “Aquarela do Brasil” de Ari Barroso, “Luar do Sertão” de Catulo da Paixão Cearense, “Carinhoso” de Pixinguinha e João de Barro, e algumas composições de Lupicínio Rodrigues, a supra referida “Chão de Estrelas”, ao que se poderia acrescentar, fosse agora, “As rosas não falam” de Cartola, também “A flor e o espinho”, “Mucuripe” de Fagner e Belchior, muitas ou quase todas de Roberto e Erasmo Carlos, “Pedágio” de Moacyr Franco, as canções maravilhosas dos grandes poetas Chico Buarque de Hollanda (“Sabia”, “Olhos nos olhos”, “A banda”, “Cálice”, “Construção” e tantas outras), Tom Jobim “Luiza”, “Passarim”, “Águas de março”), Vinicius de Moraes (“Um homem chamado Alfredo”, “Valsinha”, “Tardes em Itapoã”...). A lista é enorme, não cabendo em tão pouco espaço, muito menos se somadas estas clássicas com às da música erudita ou óperas (que é, no frigir dos ovos, uma peça teatral cujos diálogos são cantados...).

Por coincidência do destino, ou não, em um domingo, meados da década de 1950, entre a programação do Cine Teatro Carlos Gomes e a do Cine Corbacho, com dinheiro da entrada completado por seu pai, o moleque optou por este último devido ao sugestivo título do filme: “Melodia Imortal” estrelado pelos famosos artistas norte-americanos, Tyrone Power e Kim Novack, provocante beldade que só perdia em glamour para Ingrid Bergmann, atriz de “Casablanca” cuja beleza física era emoldurada por uma candura envolvida por sutil malícia própria das mulheres dignas de se chamar de lindas (prestem atenção, há muita diferença entre uma mulher bonita, e são tantas, e uma mulher linda, infelizmente em bem menor número). O tema desse filme versava sobre um grande músico, “Duchen” como foi gravado pelo moleque de tanto ser repetido pelo ator que, ao se sentar ao piano anunciava “a música de Duchen” e, incrivelmente, sua trilha musical se escorava nos Noturnos de Chopin, em especial e repetidamente o do Opus 14 ou 26 ou 27, àquele que hipnotizara o moleque em frente a casa do sargento Cesar, fazendo-o esquecer, pelo menos enquanto durou tal audição, da “pelada” para onde se dirigia, encantamento que ainda persiste quando tem o privilégio de ouvi-lo e não importa quantas são às vezes de tanto.

Aquele filme auxiliou ao moleque se interessar ainda mais pela música erudita, tanto quanto se interessava pela popular e, aparentemente por efeito tipo bumerangue, também desenvolveu ainda um maior interesse e predileção pela música gaúcha, mais próxima, sem descurar da ascensão do baião e outros ritmos nordestinos, como se sabe e se demonstra por si só, muito semelhantes aos nossos, com xotes, rancheiras e outros; como ou, por isso, os sambas (de roda, partido alto, canção, etc.), os “choros”, tangos e boleros não foram sequer arranhados na preferência musical do moleque, que apenas foi ampliada como continuaria sendo quando surgiram o “iéiéié” da “jovem guarda” e Roberto Carlos, antes o “rock and roll”, a pitada de jazz da bossa nova e sua musa Nara Leão, seu artífice João Gilberto e da canção de Tom Jobim e Vinicius de Moraes "Garota de Ipanema" desenhando a ondulante beleza e frescor da juventude de Helô Pinheiro, o fenômeno e aparição dos geniais Beatles logo adiante seguidos pelos Rolling Stones e outros "quetais"...

Abra-se parentesis, finalmente, para os maravilhosos e inolvidáveis tangos que sempre estiveram no gosto e repertório oferecido ao Moleque com intérpretes como Carlos Gardel, Hugo del Carril, Libertad Lamarque e tantos outros e, bem depois, Astor Piazzola e sua esposa Amelita Baltar (especialmente interpretando a “Balada para um Loco” letra e música de Piazzola, também criador da maravilha instrumental chamada “Libertango” que deu origem ao movimento musical argentino “Tango Novo”); inclua-se, também, à música latino-americana como um todo, onde se sobressaíram os ritmos caribenhos e inumeráveis boleros sem esquecer os mariachis mexicanos, a música norte-americana com o "fox", o "soul", o jazz, o rock and roll (que tomaria conta do mundo) e outros ritmos. Tudo isso, sem esquecer das músicas dos demais continentes, em especial do europeu, trazidas pelos colonizadores portugueses, ingleses, franceses, italianos (os ancestrais do moleque), etc.

A música é algo que transcende ao humano chegando bem perto do divino, servindo como aconchego, fuga, encontro, espera, refúgio, penetrando n'alma de forma que eleva e sublima o melhor de cada um de nós. Nestes duros tempos que vivenciamos, pleno de dúvidas, temores, a doença que se alastra originária de um inimigo invisível, à tocaia, tenhamos além da fé e da preparação para enfrentá-lo e vencê-lo, o doce, rijo e forte bastão que a música oferece ao corpo e espírito, sem deixar de doar, trazer em seu bojo, nada além do que esperança, paz e serenidade a nos irmanar com os anjos. Amém!

terça-feira, 24 de março de 2020

OUTRA DO MOLEQUE - DANÇAS GAUCHESCAS


No Grupo Escolar Municipal Maria Moritz, da Uruguaiana de então, e como certamente segue sendo até os dias atuais, a volta às aulas que se dava ao início de março, trazia o alarido próprio das crianças, a maioria alegre pelo retorno e reencontro com os professores (para o moleque, em especial com a sua amada professora Dona Buby), amigos e colegas que as férias de quase ou mais de três meses transformava em um latifúndio de tempo, ausência e saudade. Logo adiante, entretanto, as imposições do ano letivo expondo seus deveres consagrados ao cumprimento, decretavam vigente respeito ao trabalho, aos estudos, à obrigação do aprendizado às lições dadas pelos mestres. Em pouco tempo, tudo retornava a rotina de antes das férias, recompondo-se o cotidiano com sua algaravia ou sisudez, dependentes da situação e/ou envolvimento da ação posta.

A par da magnitude disso, por volta de abril, mais propriamente ao início da segunda quinzena desse mês, funcionando até como lazer aos alunos ou culto às tradições gaúchas, pela dança, começavam os preparativos às festas juninas onde os guris e gurias, no(s) dia(s) da(s) apresentação(ões) se paramentavam: os guris, de botas, esporas, guaíacas, pelegos, boinas, chapéus, lenços vermelhos dos maragatos ou brancos dos chimangos, faca na cintura ou atravessada às costas, enfim tudo que compunha ou lembrasse ou se aproximasse das "pilchas" do gaúcho rural; as gurias com vestidos rendados compridos cobrindo até os tornozelos e mangas também rendadas e compridas, ou conjunto de saia e blusa também rendadas e compridas, flores ou laço nos cabelos, enfeites a altura do pescoço, brincos e anéis, enfim vestidas para festa. Como preparativo os ensaios das danças duravam várias semanas, à festa junina ou apresentação(ões) e festejos programados paras os dias 13, 24 e/ou 29 de junho, onde as danças, artes e folguedos ocorressem em realização o mais impecável possível.

Das danças gauchescas duramente ensaiadas sobressaiam “Dança do Balaio”, “Dança do Pezinho”, “Dança do Pau de Fita”, “Dança do Pericón” (esta, a mais difícil por ter passos marcados concatenados com os demais pares de bailarinos, atuantes), além de outras danças menos votadas, como a da “Polca da Relação”, todas, plenas de muita graciosidade, humor, gauchismo, brasilidade e latinidade.

A “Dança do Balaio” cuja cantiga entoada por gaita, violão e pandeiro, tinha como letra: “Eu queria ser balaio / Balaio eu queria ser / Pra andar dependurado / Na cintura de você / Balaio, meu bem balaio, Sinhá / Balaio do coração / Moça que não tem balaio, Sinhá / Bota a costurar no chão / Eu queria ser balaio / Na colheita da mandioca / Pra ficar dependurado / Na cintura da chinoca / Balaio, meu bem, balaio Sinhá / Balaio do coração / Moça que não tem balaio, Sinhá / Bota a costurar no chão / Mandei fazer um balaio / Pra guardar meu algodão / O balaio saiu pequeno / Não quero balaio não”, com as “Chinocas” ou “Prendas” portando cestos de vime, talos de taquara, cipó ou bambu junto à cintura, dançando xotes com seus parceiros, corpos separados por mínima distância.
A “Dança do Pezinho”, com cantiga também entoada pelos instrumentos citados, tinha como letra: “Ai bota aqui, / Ai bota ali o teu pezinho / O teu pezinho / Bem juntinho com o meu / Ai bota aqui, / Ai bota ali o teu pezinho / O teu pezinho / Bem juntinho com o meu / E depois não vai dizer / Que você se arrependeu / E depois não vai dizer / Que você já me esqueceu / E agora que estamos juntinhos / Me dá um abraço / E um beijinho / E depois não vai dizer / Que você já me esqueceu”.

Já a “Dança do Pau de Fitas”, se realizava somente com a música, rancheira sem cantoria e consistia em bailado ao redor de um mastro onde, no seu topo, eram presas as fitas de diversas e vibrantes cores portadas, na outra ponta, por cada um dos bailarinos, casais de rapazes e moças, que desenvolviam o bailado em torno desse mastro entrelaçando as fitas harmoniosa e regularmente até o limite onde não tinha mais como prosseguir, daí então, voltavam observando ordem inversa até recomporem o desenho inicial.

Por sua vez, a “Dança do Pericón”, um chamamé com igual acompanhamento musical, tinha passos marcados e assaz elaborados à formação de diferentes figurinos no curso da dança, em andamento coreografado como uma espécie de quadrilha, por isso sendo de difícil aprendizado, exigindo muita atenção, compenetração até dos dançarinos nos ensaios comandados pelo exigente e perfeccionista “Professor Serafim”, todavia, de jocosa letra: “A dança do sarapico / É uma dança muito engraçada / O pobre dança com rico / e o patrão com a empregada...” Imitando o famoso “mi de gavetão” das “trovas” o gaiteiro pausava o instrumento na sequência e desenvolvimento da dança, oferecendo acordes de manutenção, enquanto os casais, um de cada vez, dançando se dirigiam ao centro da roda e recitavam versos galantes como por exemplo “Eu gosto da rosa branca / Sem desfazer a açucena / Não sei o que tem meus olhos / Que gostam da cor morena” ou de cunho galhofeiro, às vezes quase ofensivos, outras, inofensivos, se é que é possível assim definir pois que dependiam da entonação dada pelo(a) declamador(a), como “Lá atraz daquele cerro / Corre água com sabão / Há mais de sete anos / Tu não lava teu 'garrão” e outros com surpresas pela criatividade ou 'non sense', como “Tanta laranja madura / Tanto limão pelo chão / Tanto sangue derramado / … Porque que não faz morcilha?”...

Ao final da apresentação, em maioria de vezes, se realizavam os périplos da “Polca da Relação”, dança que conforme o próprio nome diz, era uma polca, de origem polonesa claro, que a cada quatro ou cinco compassos tinha o andamento parado e o casal de dançarinos da vez, dirigindo-se ao centro e cada um declamando versos ou trovas, como queiram, fosse dirigido ao parceiro ou parceira, fosse dirigido a terceiros, também dançarinos participantes, como um repto.

Mal sabia ou não sabia, então, o moleque que tudo isso, para nós brasileiros, gaúchos, ou vice-versa, não importa, se devia ao pioneirismo de um grupo de rapazes capitaneados pelos jovens Paixão Cortes e Barbosa Lessa, desde o Colégio Estadual Júlio de Castilhos, o Julinho, levados por ideais farroupilhas, foram beber em fontes primevas trazendo de volta, à tona, a quase esquecida tradição, formando logo adiante e a partir disso tudo, o primeiro Centro de Tradições Gaúchas, o “35” repositório, lume e guardião da cultura gaúcha, totem do Movimento de Tradições Gaúchas – MTG, decorrência disso tudo.

É claro que o moleque dançou “pericón” e teve como parceira uma bela guria, a alemoazinha chamada Cleci; bem que ele queria fosse a Gata, para ele Gatinha, só que ela não participou, nem a Clotildes, sua amiga, e que se dizia chamar Erotildes (talvez porque Eros fosse o deus grego do amor, filho de Afrodite, mais conhecido como Cupido, porém duvida o moleque que ela soubesse disso, mas tudo é possível, ou porque simplesmente não gostava de seu nome original...) que, após muitos “pericóns” viria a casar com Nêne, um guapo rapaz conhecido do moleque, formando belíssima família que encantava pelo amor, respeito e ternura e que, em busca de oportunidades profissionais, fixaram residência lá pelas plagas de Osasco, na região metropolitana de São Paulo.

Pensando bem, agora à distância, aquela alemoazinha era um encanto só, meiga, bela e muito boa dançarina, possivelmente não teria prenda melhor para ser a parceira daquele guri de muita sorte que, até quando falhava na pretensão, a força do destino vinha e consertava com sobras na qualidade do realizado!

Registre-se, para efeitos de dar nome e divulgação a quem merece, que a parte musical ficava a cargo dos competentes músicos: Antão, na gaita-piano, Matias no violão, ambos com idades de nove ou dez anos e o grande Geada, virtuose do pandeiro; o “conjunto” produzia música de muita qualidade, participando relevantemente para o brilho das festas juninas daquela “nossa” eterna Escola.

Foram tantas as ocorrências nesse tempo que a memória por vezes falha ou às mistura em tropelias de difícil ordenação... de qualquer forma, uma das muitas que se sobressaíram, marcou bastante pelo inusitado, quer pela boa intenção, quer pela má ou equivocada interpretação, na sequência, pela violência da reação e, o precoce fim de um romance que poderia se encaminhar para algo mais sério, adiante. Assim, na Polca da Relação, o par composto por Pipico e Lenira, foram apressados pelo pai da moça, “Seu” Lila que queria ir embora levando a filha, antes mesmo da Polca começar e ficou ali, resmungando e criando caso, enquanto se desenrolava a dança e, cada vez mais irritado, repetia sem parar um vamos embora imperativo, iniciando contagem de um a dez ou vinte ou mais, exatamente quando o casal se endereçava ao centro do palco de dança, para cada um proferir seu respectivo verso. Abra-se parêntesis para informar que Nira, apelido carinhoso da guria, à “boca pequena” era conhecida como a Olívia Palito, do Popeye, por ser magra demais, especialmente por ter pernas muito finas, ficando fora de si quando a chamavam pelo detestável apelido; deu-se que ela declamou a trova ou versinho endereçado ao seu par, Pipico, de forma graciosa, carinhosa e afetiva, dizendo “Eu tenho um sonho tão lindo / Olhando nos olhos teus / Vejo espelhos, refletindo / Não serem sonhos só meus”; Pipico, grosso e sem nenhum traço ou tato romântico porém, na melhor das intenções e diante da partida daquela guria que, lhe pareceu, queria namorar com ele, declamou “Saracura do banhado / Perna de quiriquiri(*) / Tu te vais e me deixas / Eu também queria ir”, antes de dizer a totalidade do terceiro e do último verso, foi surpreendido pelo tapa no rosto desferido por Lenira que feito isso, saiu aos prantos do palco de dança e se foi correndo para casa seguida pelo pai... E lá se foi para o ralo uma possibilidade para o inábil Pipico que sequer sabia o que era um Quiriquiri... para seu azar, a voluntariosa, violenta e irritada Lenira, ainda que terna sabia, melhor, conhecia àquela ave de corpo desengonçado e pernas muito altas, pior, de pernas muito finas...
Não por acaso aconselha-se aos declamadores, trovadores, leitores que conheçam o significado do que os versos dizem e se possível e principalmente até, o que dizem nas entrelinhas ou sentido implícito, para não serem surpreendidos, como Pipico, pelo inesperado... dizem os expertos que só sabem ler àqueles que leem e interpretam poemas, com o que concordamos!

(*) Quiriquiri, s.m. (ornit.) (bras.) Certa ave da família dos falconideos...” (Dicionário Brasileiro Zero hora, 1994, POA); pernaltos, que se caracterizam pelos tarsos muito compridos e finos (N.A.).

sábado, 21 de março de 2020

CORONAVÍRUS, SOBRENOME COVID-19


Diante da gravidade deste momento, originária da doença que abala o mundo em declarada e reconhecida pandemia, obrigando todos a procedimentos individuais voltados à contenção da expansão do vírus que grassa, contamina e assusta desde a China, reproduzimos o que publicamos nas redes sociais a respeito:

Reflito sobre estes tempos de aflição que vivemos, enquanto o outono chega célere expulsando o verão e ao piscarmos já estaremos no inverno aumentando o perigo da pandemia que vivenciamos, através de um vírus que se propaga e mais parece propaganda de chuveiro ou “ducha”, o tal de “Coronavírus” ou “Covid-19”, com o qual não devemos nos descuidar ainda que para não perder o embalo possamos, como o fizemos, brincar com o seu nome ou apelido. Sobre tal questão de seriedade absoluta eis que atinge a saúde mundial, tem-se que, na observação de amadores, a cada século ou quase um século de distância entre uma ocorrência e outra, diversas pestes assolam ao mundo todo, não respeitando se rico ou pobre, classe social, cor, gênero, raça, nada, atingindo a todos os povos de forma igual.

Assim vivenciamos a “peste negra” na época medieval, as gripes “espanhola” e aviária (esta, apelidada de “gripe do frango”) em épocas mais próximas, epidemias de doenças graves e contagiosas que fulminaram, mataram milhões de seres humanos, que por terem ocorridos, a maioria, em períodos de precário conhecimento científico, foram e/ou se tornaram muito mais letais e, todas, com incrível, grandiosa, capacidade de contágio e velocidade de expansão.

Enquanto isso, devido ao avanço científico da humanidade, graças aos estudos e esforços de milhares de sábios cientistas, pesquisadores, houve diminuição nos efeitos devastadores delas decorrentes. Nem faz muito tempo assim, já adentrados neste século XXI, tivemos algumas pestes controladas em seus efeitos letais e de propagação amenizados, como a “Sars” e a “gripe do empate”, de novo desculpem-me a blague, a famosa “H1N1”; também tivemos na África, quem sabe por desconsideração, morosidade e até, quem sabe, um tanto quanto desidiosa atuação da própria ONU, o terrível “Ebola”; porém, não se pode dizer o mesmo quanto a Sida, sigla em português da Aids, cujos esforços científicos se ainda não resultaram em vacina, alcançaram farmacologia portentosa e de alta precisão diminuindo seus efeitos, até de contágio, e, recentemente, sua cura completa em (in)felizes portadores.

Ao tempo de infância do moleque, entretanto, paulatinamente as doenças epidêmicas foram sendo controladas mediante a vacinação, como “varíola”, “tuberculose” (que vitimou expoentes da literatura então seguidores e ativos escritores da escola romântica, como Bocage, por exemplo), “sarampo”, “crupe”, “tifo”, “caxumba”, “paralisia infantil”, “febre amarela” e outra tantas, as quais, praticamente e durante largo período, foram consideradas extintas e, de tempos em tempos, voltam dar as caras em nosso País quem sabe até porque tenhamos “baixado a guarda” pela ausência das mesmas ou nem isso desde que se sabe do alto poder de regeneração e absorção de vírus e bactérias que, após quase extintos, aumentam consideravelmente tais condições no enfrentamento aos remédios que pouco antes os derrotaram.

Veja-se o exemplo da penicilina descoberta em 1929, quase por acaso pelo cientista inglês Alexander Fleming que, acometido de gripe muito forte analisava, pesquisava, fungos e ao retirar a lâmina que fora submetida ao microscópico, sobre a mesma caiu uma lágrima e, curioso como todo cientista é, recolocou dita lâmina no microscópio para analisar a reação dos fungos com relação ao vírus da gripe. Eureka! deu-se a descoberta da penicilina que salvou milhões de seres humanos desde então, sabendo-se que na primeira guerra mundial morreram mais pessoas por gangrena do que por ferimentos de balas e outros projéteis; aliás dos corpos insepultos dessa Primeira Guerra que terminou em 1918, originou-se a peste chamada Gripe Espanhola* que matou milhões de pessoas no mundo todo.

Por isso tudo que devemos seguir os ensinamentos e orientações dos dirigentes que estão à testa dos órgãos governamentais, operadores e sábios voltados à saúde do nosso País obrando no atendimento das diretrizes dadas para, junto com todos, expulsarmos o tal “coronavírus” de nossas vidas e preocupações voltando em pouco tempo a desfrutar das condições normais que nos une e, especialmente, nos seres próximos objetos de nosso afeto e carinho, efetuarmos os apertos de mãos, beijos, abraços e demais demonstrações concernentes e ora estocados, eis que estamos impedidos de fazê-lo visando evitar a propagação desse vírus, em atendimento às claras e precisas determinações vigentes.

Saliente-se que, na oratória e atitude otimista que pensamos praticar, esperamos que a reclusão compulsória de todos para dentro de seus lares e de si próprio, possa significar o retorno da nossa mais abrangente qualidade, a de meramente ser, deixando de lado o credo despudorado e egoísta do ter, disso resultando de fato e do que nos é dado ou imposto ora vivenciar, a concreta, efetiva possibilidade de cura da falta de solidariedade, comiseração, ternura, amor e perdão, pandemia letal que, infelizmente, professamos e dela poderemos nos curar, basta que todos os “doentes” assim o queiram! Todos à luta contra o coronavírus e, para aqueles que têm mais do que lhes é necessário que realizem filantropia distribuindo ao menos às sobras com os necessitados, auxiliando-os como aos irmãos que todos somos.

domingo, 15 de março de 2020

OBLÍQUO


Percorreu sua existência como se fosse um morto,
um quase morto, um morto vivo, um vivo morto
e o que falou Zaratustra pouco lhe disse, ou diria
um nada bem maior que o nada, p'rá seu conforto
no trôpego andar de seu inenarrável dia a dia.
N'outro nível terno, amante contemplava estrelas
fazendo de tudo para encará-las, contê-las, vê-las,
beber a plenitude do estonteante brilho que cega,
cambaleante, vesgo, na tonteira da plena entrega.
Assim passou mirando céus, travando cancelas
em uma vida oblíqua, estremecida nos alardes
dos viscerais mais ou menos, ou cedo, ou tarde,
escondido no lusco-fusco de bruxuleantes velas.
Quando então seu coração e mente silenciaram
em meio às tormentas do se acordar quem sabe,
seu passar anônimo se fez palco do onde só cabe
a fantasia e os sonhos dos que realmente amaram.

quinta-feira, 5 de março de 2020

OUTRA DO MOLEQUE - LOBINHO (Mascote de Escoteiro)


Convidado pelo Capitão Aimoré de Moraes Gomes, Comandante do destacamento de Escoteiros Leão XIII e cliente assíduo da barbearia do seu pai, o moleque ingressou no Grupo de Escoteiros na condição de Lobinho, mascote, e em várias oportunidades participou de acampamentos do Grupo, com idas ao campo, margeando sangas, cruzando a pampa com mochila às costas e pernoitando em barracas de “camping”, ali chamadas de “carpas” - termo espanhol em decorrência da proximidade com a Argentina - vivenciando o encantamento de noites enluaradas, estreladas, fontes de cantos e poemas de tantos poetas, também tendo logo adiante o esplendor de alvoreceres espetaculares dignos das maiores loas e referências, inesquecíveis, enfim, como o aprendizado pelo contato direto com a natureza, matos e águas límpidas, de tudo isso sorvendo o sumo do respeito, da estima, do companheirismo, complementados pela postura hierárquica, da disciplina e demais idôneos preceitos e práticas da instituição criada pelo inglês Baden Powel.

Em uma daquelas marchas feitas a pé, no melhor estilo dos regimentos de infantaria, os infantes, digo, escoteiros, chefiados pelo referido capitão, rumaram para além das fronteiras do município de Uruguaiana, ingressando na vizinha Quaraí, mais propriamente montando acampamento às franjas do famosíssimo e misterioso Cerro do Jarau, onde, segundo a lenda e crendices habitava Teiniaguá, a Salamanca do Jarau, lindíssima princesa moura que se transformava em lagartixa ou vice-versa, e encantava o incauto que a perseguia mediante sedução próxima aos cantos de sereias retratadas na Odisseia, de Homero, que dentre outros eventos nela conta as aventuras e viagens de Ulisses paciente e incrivelmente esperado pela esposa, Penélope, voltando vinte anos depois sob o anúncio de seu cão, Argos, que o reconheceu... isso, entanto, é clássico consagrado da literatura e mitologia grega, extraordinariamente conhecido que o moleque teve o privilégio de ler através de livro emprestado pela biblioteca pública de sua cidade ora citado apenas para indicar um pouco da grandeza do endeusamento dado a Teiniaguá e o respeito e medo, quem sabe, que gerava em todos que chegavam perto do Cerro, à entrada dele, uma gruta parecida com uma boca escancarada, escura, horripilante e sedenta de novos servos à princesa moura.

De arrepiar, também o fato de que o lampião de querosene, aceso pelo Capitão/Comandante Aimoré, depois de apenas dez passos, nem isso, no interior da gruta, se apagou sem que houvesse vento de qualquer intensidade e sem explicação ou entendimento, pelo menos para o moleque. Para acabar com o capítulo Jarau, contou o capitão Aimoré que as terras à volta e o próprio Jarau, eram ou foram de propriedade do maior vira-casaca gaúcho e quem sabe brasileiro, o General Bento Manuel Ribeiro que na Revolução Farroupilha, ou Guerra dos Farrapos, como queiram, iniciara do lado dos imperiais chamados pelos revoltosos de Pica-Paus, depois virara a casaca passando para o lado dos Farrapos e adiante, voltara às fileiras dos Pica-Paus, sempre com a patente de General, em qualquer dos lados... coisas e coisas de nossa história e lendas...

Voltando ao moleque e sua condição de Lobinho, tinha ele tenra idade quando praticava o tenebroso vício da “chupeta”, não conseguindo conciliar o sono, pelo menos em casa, sem que usasse o “bico” pelo menos por alguns minutos antes de; se não o fizesse, se tornava difícil se entregar aos braços de Morfeu ((já que falamos, antes, em Mitologia Grega deem-me mais um pouquinho de sua paciência para usá-la ao descrever simplesmente a arte natural e necessária do dormir). Não saberia o moleque indicar quem, dentre tantos que conheciam tal “vício” aparentemente zelosamente oculto, teria tido a “maldade” de revelá-lo para o Capitão/Comandante; em uma daquelas marchas/excursões a campos, sangas e arroios, enfim, indo a caminho de mais um acampamento, àquele chegou ao moleque determinando que o escutasse ali, diante de um poço artesiano enquanto mandava que os demais seguissem quarenta passos à frente e lá os aguardassem. Ordem dada, ordem executada por todos, inclusive com o moleque que parou, ficando a sós com o Capitão/Comandante que, vendo que os demais cumpriram a ordem parando adiante, voltou-se para o moleque e, com calma e firmeza na voz, determinou que o mesmo falasse a respeito do “bico” que lhe disseram ele possuía e o utilizava, furtivamente, para dormir. A imposição oral não admitia firulas, trapaças ou negaceios do moleque; tinha ou não tinha? usava ou não usava o tal “bico”? não sobrou um mínimo de espaço à fuga para o moleque que, “emparedado” e um tanto envergonhado, respondeu positivamente às inquisições que lhe foram feitas...

O Capitão/Comandante, então, continuando com a voz grave e pausada, disse ao Moleque que a um escoteiro não era permitido qualquer vício ou dependência que fosse eis que isso estaria ferindo a disciplina, um dos lemas e conceito mais elevado dos dogmas por onde transitava o orgulho e razão de ser do escotismo. Por isso tudo, lamentava mas, não tendo outra alternativa, colocava ao moleque como condição para sua permanência no grupamento Leão XIII, como Escoteiro, no caso, como Lobinho, o abandono ao inominável vício, aqui e agora, ou então que aproveitasse sua última jornada em meio aos demais colegas escoteiros.

Diante disso, desse inevitável (e quantos há na vida?), o Lobinho lembrou do orgulho de seu pai que dera um duro danado para adquirir o fardamento e mochila que ele usava e como um mártir sucumbiu à guilhotina... o que fazer, tinha de ser assim, então, pragmático, rendeu-se e que assim fosse. Disse ao Capitão/Comandante que continuaria escoteiro e não mais “chuparia” o “bico”; este, então, determinou que lhe fosse entregue o terrível e abjeto instrumento do abominável vício, deformador da arcada dentária dentre outros males que provocava segundo disse enfaticamente. Então o moleque, entregou-lhe o “bico” não sem antes rogar lhe fosse dada a oportunidade de se despedir dignamente daquele objeto de sua infância, o que, permitido, fez com sofreguidão e sofrimento, dando as últimas “chupadinhas” em melancólico adeus ou um nunca mais, nunca mais mesmo!

Feito isso, definitivamente entregou o “bico” ao Capitão/Comandante que, sem dó nem piedade, o enviou diretamente às aguas fundas do poço que pareceram responder ao moleque com um “tudo aqui é passado, como adiante tudo o será” …
Nunca mais o moleque, esqueceu de seu último “bico” e daquelas sôfregas, até impúdicas ou impudentes “chupadinhas” no aparelho viciante que lhe obrigaram largar; nunca mais! Seu inconsciente repetia em silêncio, nunca mais! … (“Nunca mais você ouviu falar de mim, mas eu continuei a ter você... - Roberto Carlos, na canção À Distância”).

Chegava o dia da Pátria o que era e continua sendo muito comemorado em Uruguaiana para promover com ênfase à brasilidade, talvez por fazer fronteira com Argentina e Uruguai, sanguíneos povos de idioma Espanhol o que, aliás, exceto pelo Brasil com o Português, todos professam, com a programação do desfile de Sete de Setembro e, lógico, dele participaria o Leão XIII, com todos os seus membros, escoteiros, com o Lobinho à frente deles, como mascote, carregando sob coleira amarrada à correia de couro de um metro e meio de cumprimento, o animal dito símbolo do grupamento, um “zorro” ou “zorrilho”, nomes de origem espanhola, adotado ou usado também em português, espécie de raposa quem sabe pertencente a mesma família do conhecido gambá, ambos conhecidíssimos pela urina fétida e cujo cheiro invulgar se reconhece ou se pode aspirar ou pressentir desde muito longe.

Diga-se, a bem da verdade que Lobinho e mascote se comportaram de forma quase exemplar durante o curso do desfile, dizendo-se “quase” porque, ao final do mesmo, o “zorrilho” deu o ar de sua graça, ou melhor, de sua urina, exalando o mau cheiro que a caracteriza e que n'um instante escraviza, estraga ou afasta o olfato do “índio mais primitivo” (tomando a liberdade de parafrasear um verso do poema “China” do nosso grande poeta nativista, Jaime Caetano Braum, no poema “China” - “... Bendita China gaúcha/ que traz na divina estampa/ um quê de nobre e altivo/ és perfume, és lenitivo/ Que n'um instante escraviza/ o índio mais primitivo...”).

Algum tempo depois, por motivos econômicos de seu amado pai (como sempre e ocorreria consigo em outras tantas vezes pela vida), o moleque, então não mais Lobinho, mas Escoteiro, deixou o grupamento dos Escoteiros do Leão XIII, onde colheu grandes lições e aprendizado exarado, ensinado, colocado e vivenciado, originários do grande Capitão/Comandante Aimoré, homem íntegro, probo, exemplar professor, seguidor e divulgador da filosofia ditada por Baden Powel, aos quais tantos, como o próprio moleque, devem tanto!

Foi mais uma das tantas histórias e passagens que o moleque vivenciou eis que agraciado pela boa sorte de uma infância vivaz, plena de ocorrências e personagens que, como os frequentadores do Clube Sete de Setembro ou mais propriamente do “Seu Emílio” lhe ofereceram não apenas imensurável afeto, mais que isso, inexcedíveis ensinamentos que lhe prepararam para enfrentar a vida, da melhor maneira, sem arrogância ou pretensão de não ser nada além do que continuou sendo, um ser humano e isso é quanto basta, nem melhor nem pior do que ninguém, apenas um ser humano igual a todos os outros, eis que, como todos seus amigos sabem, desde o moleque que foi, acredita piamente, sem cometer qualquer paradoxo, que os seres humanos são iguais em suas desigualdades, isto é, todos têm virtudes e defeitos, por isso iguais sendo que, desiguais intrinsicamente, são as virtudes e os defeitos, fatores díspares e diferenciados que, como minúsculos grãos de areia, não são iguais entre um e outro... Enfim, iguais em nossas desigualdades, desiguais em nossas igualdades, lembrando que isso não é falácia, mais sendo silogismo ou, quem sabe e mais ainda, incorporando a dialética de Friedrich Hegel que é axiomática, sendo melhor encerrar o continho porquanto estamos entrando no sítio da filosofia sem dominá-la e, por isso, expostos aos raios e trovões da própria ignorância do moleque, cruz, credo!