quarta-feira, 27 de dezembro de 2017

DESALINHO

DESALINHO

Ei-la parada, à frente de insensível estrada
Reta, bem além do adiantado lume,
Enquanto isso a luz cede seu brilho,
Por sobre os sinuosos trilhos dos ciúmes
E quimeras, mais do que tuas ou das feras,
Vestindo os flocos multicoloridos
De pães, de circos e do meu abrigo
Buscados em outros sonhos, não vividos.

Ei-la, de novo, em sua mão joia vertida
De íngremes espaços não imaginados
Faz-se presente, sendo presente do passado
Dando mais que a vida à vida, minha vida
Ressuscitada em caminhos e destinos
Guardados em meus próprios desatinos
E nos meus sonhos, até agora, a força vã
Que me impele, sempre, ao teu amanhã.

CELEBRAÇÃO (Ao amigo Alvarino)


O céu está em festa desabrida
A pessoa que lá chegou sorrindo
É a pureza no seu estado mais lindo
E não devemos chorar a despedida,

Quem sabe, honrar o seu legado,
Por sua luz nos ter iluminado...
Fizeste o bem Alvarino amigo,
E só por isso Deus quer ficar contigo.

AS LEIS DO TRUCO


Como já foi contado e recontado, o moleque nasceu em Uruguaiana, Rio Grande do Sul, Brasil e teve uma infância deveras marcante; também, especialmente no continho “No fundo do copo”, informou sua constante andança e peregrinação à casa de jogos de azar do “Seu” Emílio, marido da D. Mariquinha, pais dos amigos Saul Adair Inzabralde, o “Quico” e de Luiz Alberto Inzabralde, o “Gurizote” ou “Zote” como era chamado por todos e de outros como o Anadir, o João, o Zeca, o Toninho (caçula), a Cema (moça, bonita), e as meninas Marisa e Cleusa, a prole de nove filhos.
Dita “casa de jogos” era conhecida como a sede do “Clube Sete de Setembro” e se localizava na Rua Sete de Setembro, onde nascera o moleque, esquina com a Rua Quatorze de Julho, nela instalada e funcionando, além de “cancha de bochas” visível e transparente eis que jogo legalmente permitido (tanto que foi admitido como “esporte”), os proibidos jogos de azar, como os de cartas no geral desenvolvidos em local denominado “carpeta” pelos iniciados, como também o “Jogo de Tava” ou “de Osso” como chamam na capital Porto Alegre, tendo, todos esses jogos, em comum, a realização diária, diurna e noturna, em locais escondidos, disfarçados e respectivamente preparados, com seus participantes, chamados pelos “de fora” como “calaveras”(*), os viciados em jogos que deles fazem exercício em manifesta doença, os profissionais que deles retiram sustento, ambos os tipos, especialmente os primeiros diga-se, vivendo e sobrevivendo no fio da navalha do acaso e do risco.

(*) calavera: vocábulo espanhol que significa “caveira” é utilizada na fronteira do Brasil designando o jogador profissional, acrescentando ao significado da palavra quase homofônica, calaveira (com a letra “i”), do nosso português, usada no sul, que define o indivíduo como caloteiro, velhaco, vagabundo.

O vício do jogo de azar, parece, é quase incurável; as incertezas da vida, como n’um passe de mágica, tornam-se passíveis de realização positiva, na obtenção de vantagens e do sucesso, indizíveis, tudo ao alcance do gesto e atitude do jogador. Quando acontece “perdas” ou “ganhos” em diversas “rodadas” se dizendo “sem” ou “com sorte”, respectivamente, em quaisquer dos casos seguirá impelido a continuar jogando, para buscar ou para manter a sorte de que se acha (des) ou possuído. Em qualquer circunstância, aliás, o viciado continuará jogando até que não lhe reste mais nada para apostar ou condições de cobrir apostas de outrem. O moleque viu jogadores perderem até cavalos aperados, encilhados com esmero, que amarrados no palanque, tronco onde se prende o potro para o encilhar, fora da “carpeta”, aguardavam seus respectivos dono e, como a moeda de jogo que se tornariam (seja em lances de “Bacará”, “Pife ou Pif-Paf”, “Vinte e um” e tantos outros mais, como o “Truco” que, no caso, é o jogo de cartas mais intenso, sério, engraçado e divertido tanto para os jogadores quanto para os assistentes acaso presentes e que é a finalidade e mote deste continho), muitas vezes passaram à propriedade de um estranho que vencera o seu agora ex-dono.
Então tratemos disso, inicialmente, da essência e modos do jogo, as cartas e seus significados. Joga-se o “Truco” de “mano” isto é de um contra o outro; de um, ou “carancho”, contra dois parceiros que formam uma dupla; de duplas, dois parceiros contra outros dois; de trio, três parceiros contra outros três; além desse limite tem-se a perda da eficácia e volição do jogo em si, não sendo tão interessante e divertido como nos demais modos.
De “mano” é individual, cada um por si e Deus por ambos; os demais, exceto pelo modo de um contra uma dupla, são parceiros que integram um mesmo conjunto enfrentando outro conjunto integrado por igual número de parceiros. Nestes conjuntos a comunicação entre os parceiros se dá por mímica mediante sinais expressos pelo rosto sabidos por todos, por isso tais sinais são feitos de forma que os parceiros adversários não os vejam quando da emissão. Assim a mais valiosa carta para efeitos da segunda parte do jogo, o Truco propriamente dito, o Ás de Espada, tem sua presença informada ao outro parceiro mediante o “piscar” do olho direito; o Ás de Paus, a segunda carta mais valiosa e que em Uruguaiana é conhecido como “Ás de Bastos”, pelo “piscar” do olho esquerdo; o Sete de Espada, a terceira, pelo repuxar do lado direito da boca; a quarta, o Sete de Ouros pelo repuxar do lado esquerdo; a quinta carta, o Três, de qualquer naipe, pela suave “mordida” do lábio inferior da boca; o Dois, também de qualquer naipe, sexta carta em importância, pelo passar da mão direita como quem cofia a barba do pescoço abaixo da orelha ao queixo. Seguindo a ordem, decrescente, temos os Ases de Ouro e de Copas, as chamadas cartas “negras”, ou sejam, Reis, Valetes e Damas, de qualquer naipe, os Setes de Paus (ou Bastos) e Copas, os Seis e Cincos, de qualquer naipe e, finalmente, as cartas de menor valia que são os quatros, também de qualquer naipe.
O baralho usado para o jogo, é o denominado Baralho Espanhol (também usado para jogar Escova, pelo menos nas suas modalidades mais conhecidas, Escovinha e Escovão) do qual se extrai ou retira às cartas Dez, Nove e Oito, de todos os naipes, totalizando 40 (quarenta) cartas no Jogo de Truco.
BARALHO DO JOGO DE TRUCO
ÁS DE ESPADA ÁS DE PAUS (OU DE BASTOS) SETE DE ESPADAS SETE DE OURO
TRÊS DE ESPADAS-TRÊS DE PAUS(OU DE BASTOS) -TRÊS DE OURO-TRÊS DE COPAS – DOIS DE ESPADAS – DOIS DE
PAUS (OU DE BASTOS) – DOIS DE COPAS – DOIS DE OURO

ÁS DE OURO E ÁS DE COPAS (GOIMES)– REIS, VALETES E DAMAS, DE TODOS OS NAIPES, SETES DE PAUS OU BASTOS E DE COPAS.






SEIS, CINCOS E QUATROS DE TODOS OS NAIPES




OBS: A ordem e disposição das cartas obedeceu o critério da maior importância ou valor de cada uma iniciando pelos Ases (de espadas, o maior seguido pelo de paus ou bastos), os Setes (de espadas, o mais valioso seguido pelo de ouros), passando pelos Três cujo valor é igual para todos os naipes, como também ocorre nos Dois, também os “Goimes”, ou seja, Ases de ouro e copas, que têm maior valor do que “Negras ou Figuras”, do que os Setes de paus ou bastos e o de copas, que os Seis, os Cincos e os Quatros de qualquer naipe. Nas “Negras ou Figuras”, entre si guardam hierarquia iniciando pelos Reis que valem mais do os Valetes e estes, por sua vez, valem mais do que as Damas. As “Negras ou Figuras” representam 20 (vinte) pontos na contagem do “Invido”, “Real-Invido” ou “Falta-Invido” se acompanhadas de cartas, de mesmo naipe seu; “Negra ou Figura” com “Negra ou Figura”, forma vinte pontos; com Áses, forma vinte e um e assim por diante até aos Setes, quando formam a pontuação máxima, no caso, de vinte e sete; na etapa dos reptos e blefes mais enfáticos, de “Truco!”, “Retruco!” ou “Vale-Quatro!!!”, a segunda etapa propriamente dita, que ocorre após vencida a etapa dos “Invidos”, ou “Faltas”, ou da “Flor”, todas as cartas, incluindo as “Negras ou Figuras”, claro, destacam-se pelo valor a elas atribuídos, conforme acima detalhado.
Voltemos, todavia a descrição do jogo e seu andamento. No início, do jogo e a cada vez que o mesmo se reinicia por uma nova “mão” após o final da anterior, aos jogadores (de “mano” ou em conjunto de parceiros), são dadas três cartas para cada um; na primeira parte, se as três cartas são de mesmo naipe formam a “Flor” que valerá três pontos ao possuidor, todavia se o adversário também tem “Flor” deverá informar a todos e efetuar o repto de enfrentamento “Contra a Flor, o resto!” vencendo aquele que tiver maioria na contagem dos pontos pela soma das cartas integrantes da “Flor” (Às cartas, os pontos são assim atribuídos: dos Áses aos Setes, independentemente de naipes ou importância, seus pontos são idênticos ao do respectivo número da carta, isto é, os Áses valem um, os dois, dois, os três, três, etc, juntas, entretanto, formam total acrescido de 20 pontos, e na “Flor” a pontuação máxima é de trinta e oito pontos (quando a “Flor” é composta pelas cartas de mesmo naipe, Cinco, Seis e Sete); as ditas cartas “Negras ou Figuras”, qualquer delas, independentemente dos naipes, somam vinte pontos cada uma. “Cantada” a “Flor” ela deve ser comprovada ao final da “mão” respectiva, sob pena de entregar ao adversário os pontos que lhe seriam creditados, acrescido de mais um ponto a título de multa; de outro lado, nenhum dos contendores pode, com as cartas na mão, sequer falar em “Flor”, pena de, não a tendo, pagar os pontos e multa ao adversário. Falou em “Flor”, para tudo! Estanca, evita a possibilidade de se desenvolver o “Invido” (*) e, mais ainda, suas possíveis e cabíveis sequências como o “Real-Invido” (**) ou a “Falta-Invido” (***) que tem a capacidade de finalizar o jogo como um todo, em uma só mão. Assim, por exemplo, diz-se da “Flor” formada pelas cartas Cinco, Seis e Sete que é uma “Flor” de Trinta e Oito pontos sendo esta a maior pontuação que uma “Flor” pode alcançar. À “Flor” do naipe de copas, se diz, “de abóbora” porquanto as cartas de copa não tem grande valia à segunda parte do jogo, a do “Truco” propriamente dita. Nos casos de “Invido”, “Real-Invido” ou “Falta-Invido” o maior número que se alcança é o trinta e três formado por sete e seis de qualquer naipe (saliente-se que cartas do um ao sete, com qualquer das cartas “negras”, do mesmo naipe, forma o total de vinte mais o número da carta); ainda, diga-se que o “Invido”, o “Real-Invido” ou a “Falta-Invido” podem ser individualmente invocado por qualquer jogador, cada um a sua vez (o “Mão”, ou o “Pé” da “mão”, se aquele ou outros não o invocaram antes), não guardando preferência ou dependência de comando entre um e outro, isto é, o jogador pode iniciar por qualquer deles, valendo a negativa ou não aceitação de qualquer dos oponentes, um ponto para o proponente.
(*) “Invido”: vocábulo espanhol que significa convite, exortação; (**) “Real-Invido”: toque de realeza e relevo ao Invido; (***) “Falta-Invido”, plus de exortação à finalização do jogo, cartada de tudo ou nada.
Com relação a contagem de pontos, o “Invido” vale dois pontos ao vencedor se proposto e aceito pelo oponente; não aceito, cabe um ponto apenas ao proponente. O “Real-Invido”, vale três pontos ao vencedor, todavia poderá ser repto dado pelo oponente que recebeu a proposição do “Invido”, daí, acumulando, vale cinco pontos ao vencedor: à hipótese de não aceito pelo proponente do “Invido”, o agora proponente do “Real-Invido dado em resposta àquele, ganha três pontos sem necessitar mostrar as cartas ao final da mão; no “Quero!”, cabendo, ainda e neste caso, ao proponente original colocar, ou não, o repto “Falta-Invido” que também pode ser aceita, ou não; se aceita, o perdedor deve exigir do vencedor que comprove os pontos que disse ter porquanto a “Falta-Invido” finaliza o jogo e por isso os pontos ditos tidos devem ser mostrados, no ato, todavia se não aceita a “Falta-Invido” assim proposta por sobre o “Real-Invido” que, por sua vez, fora proposto por sobre “Invido”, o proponente final obterá cinco pontos sem necessitar mostrar suas cartas ao final.
A “Falta-Invido” pode ser proposta desde o início, antes até do “Invido” puro e simples e, à hipótese de sua nâo aceitação, ao proponente caberá um ponto; aceita, o vencedor ganhará o jogo como um todo, exceto quando em jogo de duplas ou trios os jogadores tenham estipulado ao início do jogo, sua formatação em duas “Faltas-Invido” e, neste caso, a contagem final dos pontos totalizará, 18 (dezoito) pontos, com cada “Falta-Invido” valendo 9 (nove) pontos.
Vencida a primeira etapa da mão considerada, ingressa-se na segunda etapa, pela aposição de carta pelo “Mão”. Caso o jogo seja entre dois contendores, chamado “de mano”, tanto o “Mão” que é o que recebe a primeira carta, quanto aquele que distribuiu as cartas, denominado “Pé”, em maioria de vezes jogam sua melhor carta para realizar o que se chama de “Primeira” que será fundamental à hipótese de que o perdedor se recupere na Segunda fase dessa etapa e resulte empatada a Terceira, vencendo então aquele que “fez a Primeira”. Caso o jogo seja de duplas ou trios, etc, quem distribui as cartas sempre será o “Pé”, todavia apenas para o seu parceiro que para ele será “Mão”, enquanto aquele “Mâo”, que as recebe inicialmente, terá o seu parceiro como “Pé” para si; neste caso, ambos os “Pés” chamarão a si a responsabilidade de realizar a “Primeira” lançando sua mais valiosa carta, todavia se não a tiver entre as recebidas, informará ao parceiro ou parceiros tal situação mediante um discreto “fechar dos olhos” obrigando o “Mão” buscar a solução para o problema, quase sempre descartando sua mais valiosa carta.
Nesta etapa, os reptos são “Truco”, “Retruco” e “Vale Quatro” com o primeiro valendo dois pontos ao ganhador quando aceito pelo oponente e se não aceito valendo um ponto àquele; a resposta do oponente poderá ser não, valendo um ponto para o proponente, ou “Retruco” aumentando o valor dos pontos em disputa para três; o proponente original poderá ou não aceitar o contrarrepto, se não aceitar o agora proponente, final, ganhará dois pontos; caso o proponente original queira ir além da aceitação do “retruco” ele lança o repto do “Vale Quatro!” com um sonoro “Quero Vale Quatro!”, que, como o próprio nome indica, vale quatro pontos ao ganhador além do grande abalo moral que causa ao perdedor que tem que oferecer sua testa à aposição de quatro dedos do ganhador que, simbolicamente, os “grudará” ou “colará”, em imediato gesto, na parede, nela ficando gravada “p'rá sempre” sua “vitória” incontestável, seguida de muita pilhéria e gozação ao infeliz perdedor. Por isso, perder um ‘vale quatro” tem um significado marcante, acachapante. No caso de não aceito, caberá ao proponente, agora original e final, três pontos.
O “Quero!”, por isso tudo delimita singularmente o exercício pleno e continuidade dos reptos. Sem o “Quero!”, se esboroam pretensões à sequência do jogo pelo proponente que tem que se contentar com os pontos que obterá pelo não do oponente, pontos estes sempre inferior àqueles pontos oriundos de uma vitória que poderia ser alcançada, sem esquecer que, como um jogo de blefes, a mentira de um pode assustar o outro fazendo-o “correr da raia” por pensar que o proponente, tão seguro que está, tem cartas e condições melhores que as dele... e nem sempre, alíás, quase sempre, não é assim... Enfim, coisas e ocorrências derivadas de um jogo muito “esperto”, “sagaz”, onde a astúcia e a dissimulação quase sempre vence, mas sempre fazendo parte do “enredo” e premiando quem a desempenha com maior eficácia...
Em verdade o moleque não era nem chegou ser especialista do “Jogo de Truco” e por isso, encerra no “Vale Quatro!” a dissertação sobre o que sabe a respeito, todavia, por ser observador e curioso, dele recolheu ensinamento e filosofia que perpassaram sua trajetória e caminhos que seguiu como a pessoa que se tornou e que serviram de grande proveito à formação de sua personalidade. Da observação exercida naqueles tempos, naquele ambiente, dos ditos, dizeres e reptos cantados, gritados até, pelos jogadores lhe restou como moldura, quase pagã, lembranças que, analogamente transferida, ressuscitada para o cotidiano de sua vida, como uma “colagem”, deu-lhe parâmetros, princípios que, entendeu e pratica, basificam e norteiam seu procedimento e postura qualificando tudo isso como “As leis do Truco” que, pensa, acata e obedece, com seus artigos, determinações e procedimentos principais que ensina, finalmente, infra são apresentados, crendo-se de forma abrangente, capaz e coerente com os princípios e cânones morais dos mais elevados e as necessidades existenciais dos justos que entende, por ela, são supridos. Então, partindo-se do pressuposto que a vida, único presente “de graça” que recebemos (no dizer do poeta Moacyr Franco, na canção “Pedágio”, só se vive mesmo nove meses pois o resto a gente morre), é um mistério divino e indiscutível atestando que o milagre existe (qualquer um de nós é um milagre somente pelo fato de estar e continuar vivo sem saber, como, porque ou até quando), pode se obter, sem qualquer dificuldade, por analogia, lições, filosofias, posturas, continuidade e exercícios virtuosos, oriundos de impensáveis fontes, como aquelas praticadas, gritadas, vocalizadas no “Jogo do Truco” que, para o moleque formaram mosaico natural de leis para serem cumpridas, seguidas e praticadas no curso da vida.
AS LEIS DO TRUCO
I – A PRIMEIRA EM CASA, O RESTO NA RUA!

Significado Bruto (Para o Jogo):
Jogar a carta de maior valor, ainda que seja a única de valor que se tenha na mão, porquanto fazer a “primeira” é importantíssimo ao desenvolvimento e estratégia do jogo para o(s) jogador(es).
Significado Bruto (Para a Vida):
À casa, ao lar melhor dizendo, é primordial em relação a todo o resto; somente após totalmente atendidas suas necessidades, materiais e/ou imateriais, é que poderá o(a) provedor(a) distribuir à rua o que restou.

II – O QUE CUSTA, VALE!

Significado Bruto (Para o Jogo):
Para fazer a “primeira”, por exemplo, jogar a carta de maior valor que se tem na mão, ainda que se fique apenas com cartas inexpressivas à sequência do Jogo.
Significado Bruto (Para a Vida):
Deixar ir ou entregar os anéis para preservar os dedos (que valem muito mais do que aqueles).

III – NÃO TE CASES COM CARTAS!

Significado Bruto (Para o Jogo):
Não fraquejar perante a imperiosa necessidade de sacrificar uma carta importante à obtenção do objetivo principal que é a vitória final.
Significado Bruto (Para a Vida):
Não se fanatizar por nada, perdendo o raciocínio e a lógica, reais bênçãos da vida, em nome de um pretenso bem finito ou não, todavia sempre envolto em mistérios que tornam os iniciados em “profetas” e os seguidores em “otários”, enfim, seguir falácias brilhosas sem ser, jamais, brilhantes; nada é mais importante do que tu ou do que tua vida sendo vivida para ti, sem jamais esquecer os outros.

IV – VOU QUERER NÃO É QUERO!

Significado Bruto (Para o Jogo):
Diante de reptos (truco, invido, etc.) do proponente, o oponente usa o artifício malandro da expressão “vou querer” para enganar àquele, que “cai” ou não no golpe; se o proponente ganhar, no caso, não tem valor... A chave para validar a proposta e resultado dela é positiva, sempre, valendo para tanto somente a expressão “Quero!”.
Significado Bruto (Para a Vida):
“Se queres o céu e te contentas com a terra, então, não queres o céu” é um pensamento repetido nas contracapas dos livros de poemas “Metamorfose”, “Ponto e Vírgula” e “Bolinha de Vidro” todos do poeta Itagiba José, que diz tudo sobre a persistência e teimosia em busca daquilo que realmente se quer. O sonho estampado no “Vou Querer” só será “Quero!” se realizado e para tanto é preciso ser persistente e teimoso, um lutador que sabe interpretar, vivenciar e dar valor a sentença “Desistir é a saída dos Fracos! Insistir é a alternativa dos Fortes (do filme “Mãos Talentosas” - homenagem ao médico Neuroligista, Dr. Ben Carson).

V – O QUE É DA ÁGUA, A ÁGUA LEVA!

Significado Bruto (Para o Jogo):
Sentindo a iminente queda o jogador reproduz mantra prevendo, antecipando a derrocada e, na prática, a aceitando ainda que mantenha um fio de esperança na possibilidade de evitá-la.
Significado Bruto (Para a Vida):
A aceitação serena diante do inevitável torna menos dolorosa a perda e mais fortalecido o perdedor, todavia e ainda que se esteja diante do impossível manter acesa a luta, a insistência, a chama da esperança que faz parte do melhor da vida até mesmo quando a água a reclama de volta para si.

VI – SOU PÉ E GARANTO (SOU BASE E SEGURANÇA)!

Significado Bruto (Para o Jogo):
O “Pé” é o alicerce, quem comanda o andamento do jogo e último baluarte tem a responsabilidade de proteger, dar segurança ao(s) parceiro(s) e fazer fluir, da melhor maneira possível, a estratégia adotada àquela “mão”, pelo “Mão”.
Significado Bruto (Para a Vida):
O “Pé” é o líder que comanda familiares, amigos e tantos outros que integram o círculo de conhecidos servindo de exemplo, conforto, refúgio e segurança para todos que nele se apoiam e orbitam, atingindo, muitas vezes sem o saber, até mesmo terceiros, desconhecidos.

VII–SOU MÃO, ENFRENTAMENTO E ESTRATÉGIA

Significado Bruto (Para o Jogo):
O “Mão” inicia o jogo, pela análise de suas próprias cartas e/ou das informações que recebe do(s) parceiro (s), via senha, vai endereçar seu andamento contando com a segurança que cabe ao “Pé” emprestar ao(s) parceiro(s).
Sinificado Bruto (Para a Vida):
Transita-se pela vida por sinuosas trajetórias, altos e baixos, em momentos de paz, de júbilo, de intensa alegria, vitórias, entrecortado e, às vezes, dilacerados, por outros totalmente opostos. O que é ou deve ser considerado pela pessoa constante, é a presença de amigos em todos os momentos, não importando quais; quem tem um amigo que seja tem o maior dos tesouros que se pode almejar. O problema se torna grave quando por vaidade ou estultice, enquanto vencedores, nos tornarmos prêsa fácil à sanha de predadores travestidos de “amigos” que não se apresentam com sua verdadeira identidade... os primeiros a deixar o navio quando este está prestes a naufragar são os ratos... os verdadeiros amigos são os que ficam conosco durante a borrasca e nos incentivam a acreditar que apesar de tudo, o sol está sobre as nuvens e logo adiante raiará mais uma vez, se é que assim o merecemos... Como o “Mão”, desenhas os rumos e objetivos de tua vida, tenhas a sorte de encontrar o “Pé”, teu amigo, sempre a postos para te socorrer, não esqueças, porém, que quando for chamado, deves socorrer quem de ti necessita... O amor é de graça, as boas ações que nele germinam produzem sorrisos, momentos felizes que valem bem mais do que qualquer bem material que possas alcançar...

VIII – FEIO NÃO É PERDER, SIM FUGIR DA RAIA

Significado Bruto (Para o Jogo):
Proposto o repto (qualquer deles) o oponente, pelos mais diversos motivos (sem cartas de valor, pontos, ou porque entende que o rival está bem “calçado”, etc) não o aceita e, pelo “Não!”, não enfrenta o adversário e dependendo da forma ou entonação do não pode deixar impressão desagradável de ter “fugido da raia!”.
Significado Bruto (Para a Vida):
No curso da existência, por várias vezes, nos vemos em situações dificeis que nos fazem tomar decisões mais dificeis ainda para contorná-las. Perder, ganhar, empatar, fugir, se amedrontar ou não, faz parte do show por nós vivido como protagonistas... Devemos, sim, ser como a água que contorna os obstáculos enquanto isso não nos traga o sacrifício ou a quebra de nossos princípios que, se atingidos, nos devem fazer lutar por eles mesmo que seja a última coisa que façamos, afinal “O que custa vale” e não devemos “nos casar com caras” ou ainda e finalmente, sabemos e como sabemos que “o que é da água, a água leva!”.

EPÍLOGO

TEM E TERÃO OUTROS ENSINAMENTOS ESCRITOS E/OU GRITADOS DURANTE O “JOGO DO TRUCO”, INCLUSIVE OS TRAZIDOS POR PUERIS, SINGELOS VERSOS, COMO OS QUE ANUNCIAM E FALAM DA FLOR QUE ENCANTA O POSSUIDOR “Eu tenho uma vaca mansa, forte e mimosa vaca mansa, que dá dez litros de leite, mas é FLOR de vaca mansa...” ... “FLOR E TRUCO! FLOR E TE CORRO!...”... Ou aqueles outros, de um pobre, transitório, chamado “carancho” que despossuído de sorte perdeu tudo, nada tem, mas espera que o ganhador e sortudo da vez, lhe estenda, doe, algumas fichas que vai pacientemente juntando e bem assim, de migalha em migalha, juntadas, forma pequeno montante que lhe trará de volta para o jogo, o que aliás é seu objetivo... E a vida passa por entre a sorte de uns e o desespero de outros... das mãos do “crupiê” as cartas são jogadas ao acaso e que vença quem ainda tiver forças e oxigênio para realizar esperanças (o que aliás é a sina de todo o ser humano)...

Itagiba José

segunda-feira, 9 de outubro de 2017

OUTRA DO MOLEQUE: LEDA, UMA HISTÓRIA DE AMOR



Distraído mas de passos apressados o moleque, de 10 (dez) anos, não mais que isso, descia a Rua General Câmara, na querida cidade de Uruguaiana, na fronteira do Brasil com a Argentina e com o Uruguai (por isso denominada de “Sentinela da Pátria”), dirigindo-se ao campo do “Duque” onde outros guris já estavam jogando bola; ao passar na frente de uma casa, dela saiu uma guriazinha, de não mais do que 9 (nove) anos, com carinha de sete, que lhe perguntou de sopetão: “Tá* indo p’ro* Duque?” - Sim! - afirmou, “Conhece* o meu irmão, Baltazar?”, “Sim, conheço o Balta!” ao que ela emendou, “Então, diz que a mãe tá *chamando ele, agora!”.

Missão recebida, assim, e daquela belíssima fonte, claro que tinha que ser cumprida e o foi. A única dúvida do moleque que persistia era com relação a guria que achou ‘muito mais nova’ que ele (que se achava, no mínimo, ‘quase’ um adulto) e certamente não valeria a pena ‘bater asas’ por ela...mas que a guria era linda, muito linda, isso era... e como!
(* sic)

A guria era encantadora, tinha a voz aveludada como um sussurro de prece, os olhos claros da cor do mel, os cabelos compridos abaixo dos ombros, da mesma cor dos olhos, castanhos claros como um raio de sol que chega por entre nuvens brancas pardacentas e a pele clara envolvida em luzes etéreas que mostravam sua própria alma onde resplandeciam inocência, candura, meiguice e ternura, fontes de seu inexcedível e natural perfume...

Embora fosse criança, uma linda mulher em formação, sabe-se lá como (com a devida licença poética, requerida pelo contador dessa história), certamente foi ou seria a mulher/deusa, inspiradora do grande ‘Poetinha’ Vinicius de Moraes que como um prestidigitador, ilusionista, no verso romântico a anteviu como adulta, antes de sê-lo, desnudando-a inteiramente no belíssimo Poema “Receita de Mulher”...**

(** poema reproduzido, in fine)

A guria se chamava Julieta, nome dado em homenagem a avó materna e, certamente por ser muito alegre e sorridente, a apelidaram de Leda; o guri, todavia, não se chamava Romeu, embora, desde aquele fortuito e precoce encontro viessem a escrever uma bela história amorosa, vivida intensamente e sempre durante toda a vida e, quem sabe além dela, ainda que as vicissitudes, percalços e desacertos tenham impostos caminhos diversos para que cada um os percorressem, levando o outro dentro de si, na lembrança, na saudade, no limbo, avessos e cruezas dos cotidianos solitariamente tidos, vicissitudes e tristezas de serem tão próximos e fisicamente estarem quase sempre, tão longe, também e mesmo assim levando consigo bons, serenos e mágicos momentos que juntos comungaram e vivenciaram...

Dois dias depois, quase a mesma hora daquela tarde em que fora interpelado, o guri descia a mesma rua e igual objetivo ou destino, quando passava pela mesma casa e dela sai a guria de imediato se dizendo agradecida pelo guri ter atendido ao pedido que fizera. Também portador da inocência própria das crianças, o guri timidamente balbuciou um “não tem de quê” e já estava reiniciando a trajetória quando a guria lhe perguntou se, de novo, estava indo “p’ro* Duque?”. À resposta afirmativa, ela engatou outra pergunta, agora mais pessoal, “Como é teu nome?” Dada a resposta, ela emendou, agora uma constatação “Ah, sei, tu mora* perto da casa da vó* e é de lá que eu te conheço... tu brinca* ali no açude com todos os guris e gurias de lá... não sei se tu te lembra* eu sou aquela guria que brincava, com os pé* dentro d’água sentada na barranca do açude**, no verão passado quando tu chegou* com teu cachorro e outros guris...”. O guri meio sem jeito, respondeu que não se lembrava disso até porque praticamente todos os dias brincava no açude... “É, mas naquele dia tu primeiro trepou* na figueira, depois foi no pessegueiro, comeu figo e pêssego verde e ainda arrematou com laranja, verde também, sem medo de que te fizesse* mal...Porque tu come* fruta verde e não espera ela amadurecê?*... ah! como é mesmo o nome do teu cachorro escutei tu chama* ele e gostei do nome só que esqueci?”, O guri falando um pouco mais alto, respondeu às perguntas com exemplar sinceridade “Eu como frutas, verdes, porque ninguém espera elas amadurecê* e as comem logo, logo, então... meu cachorro se chama Flopes e eu também gosto muito desse nome pois foi minha vó quem deu p’rá* ele e até o amestrou para mim... E o teu nome, qual é?...” A guria disse-o e o guri completou que agora lembrava-se dela, daquele dia, brincando com os pés na água do açude** o que jamais esqueceria, e que a conhecia por Leda e embora ambos nomes fossem bonitos este era mais e era assim que iria sempre chama-la, pondo fim a conversa pois uma pessoa adulta deles se aproximava, seguindo para o campo do Duque.
(* sic) – (** do poema “Estática”, reproduzido in fine)

O guri era encarregado de buscar o leite da mamadeira de sua irmã no “tambo” de leite do “Seu” Madeira cuja localização era mais ou menos a um quilômetro de sua casa e cumprir a tarefa lhe custava o tremendo sacrifício de se levantar cedo, o que diariamente lhe trazia problemas com sua nem sempre pacienciosa mãe. A partir do evento referente a guria dos olhos de mel, para surpresa de sua mãe, ele começou a se levantar mais cedo e sem que ninguém o acordasse, para ir ao “tambo”...a única coisa, intrigante, era o fato de que agora, saía mais cedo e demorava mais tempo para voltar. Ocorre que o guri, tanto na ida ao “tambo”, quanto na volta, realizava uma espécie de cotovelo no trajeto, passando na frente da casa da guria querendo vê-la e, com isso, aumentado o trajeto em mais 1,5Km (um quilômetros e meio).

Duas vezes o fez sem que a visse até que, à tarde, seguindo para o campo do Duque, lá estava ela, como se o aguardasse... em meio a rápida conversa mantida por ambos, ele informou suas idas pela manhã ao “tambo” e passagem à frente da casa dela, sem vê-la... com aquela carinha de anjo que sempre apresentaria para ele, informou-lhe que certamente estava dormindo quando, pois não gostava de se levantar cedo, mas se ele dissesse a hora, ela esperaria sua passagem.

N’outro dia, lá estava ela à frente da casa e ambos saíram, em passos lentos, a caminhar por entre as árvores daquela rua que, para ambos, se tornaria uma alameda encantada, que se localizava, como divisa, entre a área conhecida e denominada como “Chácara do Dr. Sérgio” e os fundos do Seminário. Dita rua ou alameda era ladeada por inúmeras árvores cujas copas, no alto se entrelaçavam formando uma espécie de túnel verde deveras bonito.

O tango “Caminito”*** magistralmente interpretado pelo grande e maior cantor argentino, Carlos Gardel, viria a ser considerado por ambos, mais tarde, como premonitório pois falava de um caminho encantado, como a alameda em que tantas vezes passearam, que o tempo passando e passando sem parar ou perguntar se devia ou podia, se encarregara de apagar, de “borrar”, de...
(*** letra do tango em espanhol e com tradução literal para o português, in fine)
A partir de então o moleque não deu mais trabalho para ir ao “tambo” de leite, levantando-se de pronto ao primeiro chamado de sua mãe que não apenas isso estranhava, também a demora do moleque para voltar com o leite à mamadeira da mana menor; até que sua comadre, Dona Delcira, a “fofoqueira” que morava em frente à alameda encantada, divisa entre os fundos do Seminário e um dos lados da “Chácara do Dr. Sérgio”, acabou com o mistério contando que o moleque tinha uma namoradinha que abraçada nele passeava na alameda, pela manhã de quase todos os dias e, embora inocentes crianças, demonstravam muito afeto. A Dona “fofoqueira” adiantou ainda que assistira, pela iniciativa da guria que de surpresa avançara por sobre o moleque, quem sabe o primeiro beijo entre ambos.

Na verdade ocorrera o beijo e na forma narrada pela comadre “fofoqueira” e por isso quase que o leite se derrama pelo chão repetindo o caso em que o Jura Gato, tendo trato de “tapufe” com o moleque, tentara “tapufiar” a “funda” ou “atiradeira” dele e este, na tentativa de defesa, se esquecendo do tarro de leite que tinha à mão derramou todo o conteúdo, tendo de ir ao “Seu” Madeira, dono do “Tambo”, para enchê-lo de volta, sem dinheiro, no “fiado”, e aceitando a proposta do leiteiro, fez o “trato” de não mais atirar pedras nos cachorros dele (historinha já contada)... Desta feita, porém, pouco importaria se o leite fosse derramado porque aquele beijo valera a pena e seria recordado e repetido inúmeras vezes e por toda a vida de ambos!

O pai da guria era trabalhador sazonal, comum naquela Uruguaiana rural de então, sendo no mesmo ano, às vezes taipeiro* ou coisa que o valha, cuidando taipas*, controlando o nível d’água em plantações de arroz, outras vezes na época das tosquias, era esquilador, tosquiando ovelhas, tudo pelo interior do município; e, em outras, ainda, trabalhando em Bello Union, no Uruguai, na fronteira com Barra do Quaraí, então distrito de Uruguaiana, para cortar cana de açúcar e, dizem, cuidando-se muito para não ser picado pela Cruzeira – serpente das mais perigosas cujo potente veneno era fatal – comuns em meio ao canavial (aliás, contavam uma lenda para provar a maior letalidade de uma em relação a outra serpente, que dizia: A Cruzeira e a Cascavel conversavam sobre seus ‘feitos’ e atitudes selvagens, tendo a Cascavel dito que quando mordia uma vítima ficava observando-a para ver onde a mesma cairia morta; ao que a Cruzeira respondeu dizendo que, ao contrário, ela não ficava observando a vítima coisa nenhuma, porquanto, após picá-la saía correndo de perto, com medo de que sua vítima caísse morta em cima dela... estórias, estórias...).
(*Taipeiro, trabalhador que cuidava de taipa e do nível da água na plantação de arroz; taipa, obstáculo que impedia a fuga d’água e que junto com a ‘bomba d‘água’, a mantinha no nível requerido pelo arroz).

A mãe da guria, uma mulher muito bonita, enquanto isso, seguia a saga de tantas outras uruguaianenses de então realizando o comércio “formiga”, atravessando todos os dias a ponte internacional que do lado brasileiro se chama Getúlio Vargas e, do argentino, General Agustin Justus, para comprar produtos alimentícios em Passo de Los Libres e revendê-los em Uruguaiana (chamavam esse comércio de “chibo” – que em português é cabrito – e seus praticantes de “chibeiros” ou “cabriteiros”). Enquanto D. Santa andava pela Argentina, o moleque frequentava sua casa visitando sua namoradinha. E assim passaram-se vários e felizes anos para ambos.
Na esquina da casa da guria, em frente ao Bolicho (armazém) Olinda, aquele de propriedade do “Seu” Araci Castelhano, pai da bela Nair, paixão do amigo/irmão do moleque, o Guirland (cuja história, de ambos, já foi contada no continho que tratava de futebol), tinha o Colégio Leão XIII de propriedade do Professor Elpídio de Moraes Gomes, o Leão XIII, em cujo pátio, a noite e a céu aberto, funcionava um cinema que tinha como operador dos projetores o Toninho “Faniquito”, conhecido operador de cinema (que trabalhara no antigo Cinema Ideal que ficava perto do Engenho de arroz, também do Moinho de trigo, na altura da Rua Vinte e Oito, hoje Dr. Maia) que tinha um cacoete nervoso, o de levantar sobrancelhas e o músculo facial repetidas vezes, no mesmo movimento, para o alto, como se estivesse incitando, intimando ou perguntando “O que que há?” para fictício interlocutor, enquanto seu braço direito tremia, em estranho êxtase com movimentos circulares ... Vez por outra pela precariedade da película ou do equipamento ocorriam cortes na projeção e todos creditavam tais fatos ao cacoete do Toninho... algumas vezes quem sabe o cacoete influenciara ou provocara tais cortes, mas hoje se sabe que quase a totalidade das vezes eles se deviam ao equipamento, a troca ou desenrolar dos rolos de celulose que, por ser frágil, se grudava internamente (isso é história que não sei, nem como, contar... nem o moleque saberia, acho!).
Em uma quarta-feira, à noite, a namoradinha junto com suas amadas e confidentes tias Almerinda e Morena (também mulheres muito bonitas, parecendo ser próprio da família tanta beleza) foi ver um filme no tal cinema e disse ao moleque que queria ver a “fita” com ele e guardaria lugar ao seu lado e o esperaria lá dentro; o moleque, como sempre, sem dinheiro para qualquer coisa, muito menos para pagar a entrada do “Cine” tinha de dar um jeito para nele ingressar e não tendo outra saída, fez o mesmo ato, do que era campeão, quando ia aos estádios de futebol da cidade, decidiu pular o muro, aos fundos do pátio, à beira da estrada de ferro que ia de Uruguaiana à Barra do Quaraí na fronteira com o Uruguai, no escurinho, onde a luz do “Cine” não chegava e de lá viria por entre a vegetação até que como por encanto surgisse em meio ao pessoal que se preparava para assistir a “fita”. Assim pensou e executou; ao pular o muro, incialmente por azar e depois viu que foi por sorte, caiu aos pés de Jacutinga, amigo de serenatas de seu pai e que ali estava fazendo um “bico” como vigia do cinema e o moleque não sabia... “Tu, moleque, sempre tu...” disse desconsolado “... E agora? Vou contar para o teu pai, não tem jeito não” – “Ah, Jacu...” ( com perdão do trocadilho chulo, sempre e jocosamente utilizado pelo moleque quando encontrava o Jacutinga que ficava enraivecido com isso) “...não faz isso não... eu só pulei por causa da minha namorada que ‘tá aí dentro me esperando e eu não tenho dinheiro para entrar... faz de conta que tu não me viu e eu nunca mais vou te encher o saco lá na SAMDU - Serviço de Assistência Médica de Urgência* ou nas serenatas, te chamando e berrando o ‘Ah Jacu’, o que eu sei que tu não gosta...”
(* Espécie de SAMU da época, onde Jacutinga era guarda ou porteiro, o moleque não sabia direito o que ele era lá, para o qual havia levado seu amigo Quico com doença venérea, em outra historinha já contada).
Como funcionara com o “Seu” Madeira, na vez do leite derramado pelo “tapufe” do Jura Gato, também “Ah, Jacu” se rendeu ao pacto proposto pelo moleque, não sem antes adverti-lo que, caso viesse a chamá-lo como rotineiramente fazia e que para ele Jacutinga não tinha graça nenhuma, ele contaria tudo para seu pai. E lá se foi o moleque por entre a vegetação e no limiar do escuro viu onde estava sentada sua querida namorada e esperou que as luzes fossem apagadas ao início da projeção que começou com um noticioso, jornal filmado do tipo documentário, contando ocorrências do Brasil, em especial, claro, da Capital Nacional de então, a belíssima cidade do Rio de Janeiro, e se dirigiu para onde ela estava, sentando-se ao seu lado; à pergunta do porquê da demora respondeu dando uma desculpa qualquer pois isso agora, realmente, não importava e, na verdade, exceto por estar com ela, ali, naquele lugar, naquele momento, nada mais importava.

Muito tempo depois, pouco antes de viajar para morar em Porto Alegre onde iria trabalhar e continuar a estudar, então com quatorze anos, na mesma esquina do Colégio Leão XIII, quando esperava sua namorada, foi interpelado pela mãe da mesma que de forma ríspida perguntou “O que tu faz*, aqui, moleque?” obtendo como resposta “Estou esperando minha namorada”, “E quem é tua namorada?”, “A tua filha!”. Aparentemente surpreendida pela resposta dada, a mãe rilhando os dentes “Quem tu pensa* que é para pensar que minha filha é tua namorada... Ela não é p’rá* teus beiços... Eu não gosto de ti, pé rachado...” e o moleque “Pouco me importa se tu gosta ou não de mim, eu gosto da tua filha e ela de mim e é isso que importa e por isso tu nada pode* fazê*”; outras ofensas saíram aos trambolhões da boca daquela senhora que se sentira ultrajada pelo moleque desaforado, afastando-se dali, esbaforida, partejando ira, raios e trovões que, chegando em casa e tendo sido tudo confirmado, desabaram por sobre a filha, na qual deu uma surra e quebrou as bonecas de louça compradas na Argentina, aplicando-lhe ainda um grande castigo, proibindo-a de se encontrar com aquele moleque imprestável, desaforado, desbocado e sem futuro, e a condenando ficar presa em casa de onde somente podia sair acompanhada por ela, a mãe.
(* sic)

Poucos dias antes da viagem do moleque, que a três ou quatro meses não via a namoradinha, aconteceu algo muito triste; “Seu” José, o pai do Sérgio “da Porca” (também personagem de outro continho), estava muitíssimo doente sendo na prática “velado” vivo pois que todos os vizinhos, em seu último dia, compareceram para confortarem D. Nena do inevitável que se aproximava à galope. Também a mãe do moleque para lá se dirigiu, levando-o. Em lá chegando o moleque viu ao longe, vindo da extremidade da área, pelo campo, a namoradinha, acompanhada pela mãe. Rapidamente o moleque se esgueirou por entre o vão da casa à horta e encoberto por uma árvore postou-se no oitão da casa principal. Ela também percebera seu movimento e quando sua mãe ingressou na casa pelos fundos, pela cozinha, ela escorregou para o oitão, onde ambos, sussurrando, quase mudos, se encontraram, se abraçaram, se beijaram. Ela então narrou as peripécias que sofrera, quase chorou ao relatar a quebra de suas bonecas enquanto ele comunicou que estava deixando Uruguaiana por decisão de seus pais, indo para Porto Alegre, para trabalhar e continuar a estudar. Ali, ambos adolescentes, fizeram um pacto, infelizmente jamais cumprido pois o destino, os dados da sorte ou sabe-se lá o que, não permitiram, de que ela o esperaria até o dia em que ele voltaria para levá-la e juntos ficariam para sempre, confirmando para ambos que a vida não tem nada ou quase nada de contos de fadas sobejando em seus meandros toda a sorte de inquietudes, desencontros, imprevistos, sem quimeras ou ternuras.

Porém, naquele momento, ambos estão iniciando suas respectivas adolescências e, nelas, quase tudo é ou foi permitido, inclusive os pueris e inofensivos sonhos naquele outono quase findo... Preocupados, ambos foram à frente da casa para olhar se podiam ficar mais um pouco juntos e o que aconteceu dali em diante foi algo que devia ser entendido como presságio ou aviso das peças que a vida prega para todos os seres humanos. Para quem da frente olhasse a casa, à esquerda ficava a sala, com porta de acesso; à direita ficava o quarto do casal, que tinha uma janela à altura não mais do que um metro, a cama, onde “Seu” José dava seus estertores, estava colocada logo abaixo dessa janela; pois bem, no exato momento em que o moleque colocou sua cabeça para dentro do quarto, sentiu no seu rosto o hálito quente e ruidoso do “Seu” José dando seu último suspiro... Custou alguns segundos para que o moleque se desse conta do que presenciara e até sentira e aquele último sopro de vida lhe assombraria por muito tempo e adiante... seus ouvidos carregariam o som rouco, seu olfato um hálito e calor vindo das entranhas de um nunca mais individual e exclusivo, na face e nos cabelos o gélido vento trazido pela morte que ali se revelara inteira. Concomitantemente, D. Nena jogou-se por sobre o corpo, ainda quente, de “Seu” José, inundando-o com o convulsivo pranto trazido pela inevitável perda... Então e por isso, o moleque afastou Leda protegendo-a, poupando-a e não permitindo que presenciasse ou sofresse o impacto decorrente da rudeza do triste fim do vizinho...

O moleque passaria alguns anos em Porto Alegre e somente voltaria para Uruguaiana para servir ao Exército, transferido da 3ª Cia. DAM localizada em Porto Alegre, para o glorioso Quartel General da 2ª Divisão de Cavalaria de Uruguaiana onde prestou os serviços militares durante dez meses...

...Entretanto, como já se disse em tantas outras vezes, isso já é uma outra história, também com relação ao moleque e sua namoradinha que, como tudo na vida, passaram, tornaram-se adultos, e não sendo mais as crianças, tiveram suas trajetórias sempre próximas, ainda que, quem sabe nem tanto paralelas pois que por diversas vezes convergiram e se encontraram em pontos infinitos e viveram toda a grandeza e plenitude do que deveria ter sido inteiro, pela vida inteira e, sabe-se, não foi assim... ou foi?... bem se acreditarmos que o momento é a unidade do tempo incalculável para nós vis mortais (dizem os doutos que só Deus consegue calculá-lo) e pode transformar um segundo em eternidade, então é possível que o moleque e sua namoradinha tenham alcançado essa prometida eternidade, bela como a saudade (que só se tem das coisas boas vivenciadas, por isso, infeliz de quem não tem saudade), terna como um sopro de nostalgia, pura e inocente como uma criança dormindo, e que um dia poderá vir a ser contada para que todos entendam que tudo foi e continuará sendo apenas pela força do sentimento que os uniu, sem que, por ele e por isso, em tempo algum tenham prejudicado pessoas que junto com eles ou através deles, fizeram-se seus companheiros, amigos, amantes e passageiros de um mesmo veículo nessa maravilhosa aventura chamada vida!...

...Mas, como contado, tudo isso se passou no alvorecer das vidas desses personagens e quem sabe, um dia, se venha contar o que, depois e enquanto adultos, lhes teria acontecido...



* (sic).
** - Letras dos poemas citados:

- Receita de Mulher -
Vinicius de Moraes
As muito feias que me perdoem
mas beleza é fundamental. É preciso
que haja qualquer coisa de flor em tudo isto
qualquer coisa de dança, qualquer coisa de “huate couture”
em tudo isto (ou então
que a mulher se socialize elegantemente em azul como na República Popular Chinesa).
Não há meio termo possível. É preciso
que tudo isto seja belo. É preciso que súbito
tenha a impressão de ver uma garça apenas pousada e que um rosto
adquira de vez em quando essa cor só encontrável no terceiro minuto da aurora.
É preciso que tudo seja sem ser, mas que se reflita e desabroche
no olhor dos homens. É preciso, absolutamente preciso
que tudo seja belo e inesperado. É preciso que umas pálpebras cerradas
lembrem um verso de Eluard e que se acaricie nuns braços
alguma coisa além da carne: que se os toque
como ao âmbar de uma tarde. Ah, deixa-me dizer-vos
que é preciso que a mulher que ali está como a corola ante o pássaro
seja bela ou tenha pelo menos um rosto que lembre um templo e
seja leve como um resto de nuvem: mas que seja uma nuvem
com olhos e nádegas. Nádegas é importantíssimo. Olhos então
nem se fala, que olhem com certa maldade inocente. Uma boca
fresca (nunca úmida) é também de extrema pertinência.
É preciso que as extremidades sejam magras; que uns ossos
Despontem, sobretudo a rótula no cruzar das pernas, e as pontas pélvicas
no enlaçar de uma cintura semovente.
Gravíssimo é, porém, o problema das saboneteiras; uma mulher sem saboneteiras
é como um rio sem pontes. Indispensável
que haja uma hipótese de barriguinha, e em seguida
a mulher se alteie em cálice, e que seus seios
sejam uma expressão grego-romana, mais que gótica ou barroca
e possam iluminar o escuro com uma capacidade mínima de 5 velas.
Sobremodo pertinaz é estarem a caveira e a coluna vertebral
levemente à mostra; e que exista um grande latifúndio dorsal!
Os membros que terminem como hastes, mas bem haja um certo volume de coxas
e que elas sejam lisas, lisas como a pétala e coberta com suavíssima penugem
no entanto, sensível à carícia em sentido contrário.
É aconselhável na axila uma doce relva com aroma próprio
apenas sensível (um mínimo de produtos farmacêuticos!).
Preferíveis sem dúvida os pescoços longos
de forma que a cabeça dê por vezes a impressão
de nada ter a ver com o corpo, e a mulher não lembre
flôres sem mistérios. Pés e mãos devem conter elementos góticos.
Discretos. A pele deve ser fresca nas mãos, nos braços, no dorso e na face
mas que as concavidades e reentrâncias tenham uma temperatura nunca inferior
a 37º centígrados, podendo eventualmente provocar queimaduras
do 1º grau. Os olhos que sejam de preferência grandes
e de rotação pelo menos tão lenta quanto a da terra; e
que se coloquem sempre para lá de um invisível muro de paixão
que é preciso ultrapassar. Que a mulher seja em princípio alta
ou, caso baixa, que tenha a atitude mental dos altos píncaros.
Ah, que a mulher dê sempre a impressão de que, se se fechar os olhos
ao abri-los ela não mais estará presente
com seus sorriso e suas tramas. Que ela surja, não venha; parta, não vá
e que possua uma certa capacidade de emudecer subitamente e nos fazer beber
o fel da dúvida. Oh, sobretudo
que ela não perca nunca, não importa em que mundo
não importa em que circunstâncias, a sua infinita volubilidade
de pássaro; e que acariciada no fundo de si mesma
transforme-se em fera sem perder sua graça de ave; e que exale sempre
o impossível perfume; e destile sempre
o embriagante mel; e cante sempre o inaudível canto
de sua combustão; e não deixe de ser nunca a eterna dançarina
do efêmero; e em sua incalculável imperfeição
constitua a coisa mais bela e mais perfeita de toda a criação inumerável.


Estática

Itagiba José

Molhava os pés, distraída,
nas águas doces do açude
enquanto nelas, refletida
na mansidão, na quietude,
a inocência saltitava
Que visão! Que encanto dava
aos meus sonhos de guri...
Agora, de volta, aqui,
às águas do mesmo açude
não mais são cristalinas...
Nem a vida, que não pude
evitar de poluí-la...
Resta a imagem da menina
que nunca mais esqueci...

*** Letra da canção citada:

(1) “Caminito”, tango de Gabino Coria Peñaloza(letra) e Juan de Dios Filiberto (Música)

CAMINITO CAMINHOZINHO (versão literal)

Caminito que el tiempo ha borrado Caminhozinho que o tempo apagou
que juntos un dia nos viste pasar, que juntos um dia nos viste passar he venido por última vez, venho pela última vez,
he venido a contarte mi mal. venho contar-te meu mal
Caminito que entonces estabas Caminhozinho que então estavas
bordeado de trébol y juncos en flor bordado de plantas e juncos em flor
una sombra ya pronto serás, uma sombra prontamente serás
una sombra lo mismo que yo. uma sombra o mesmo que eu.
Desde que se fue, Desde que se foi
triste vivo yo, triste vivo eu
caminito amigo caminhozinho amigo
yo también me voy. eu também me vou.
Desde que se fue Desde que se foi
nunca más volvió, nunca mais voltou.
Seguiré sus pasos, Seguirei seus passos,
caminito, adiós. Caminhozinho, adeus.
Caminito cubierto de cardos, Caminhozinho coberto de espinhos la mano del tiempo tu huella borró; a mão do tempo teu sinal apagou yo a tu lado quisiera caer eu a teu lado quisera tombar
y que el tiempo nos mate a los dos... e que o tempo nos mate aos dois...

quarta-feira, 6 de setembro de 2017

VELHICE (LENTAMENTE)


Há uma certa nostalgia ao final do domingo porque se sabe que amanhã, segunda-feira, tudo haverá de recomeçar sem a ilusão trazida pelo fim de tarde da sexta-feira com relação ao final de semana... Acredito que aquele confunde-se com a velhice posto que esta se encaminha para o desconhecido. A propósito, o poema infra, diz do que penso sobre ela, enquanto, em seus estertores, transita em minha vida:


Lentamente, as lembranças
Amarelam pelo chão
Como folhas de outono...
Lá se vão sonhos crianças,
Entre alma e coração
Passageiros no que fomos...


Lentamente, toda saudade
Toma conta do viver
Como seiva que se esgota...
Enquanto toda ansiedade
Nocauteia o bem querer
De se ir ao antes sem volta...


Lentamente, a vela acesa,
Em estertores, a iluminar,
Projeta sombras do passado
Nelas, todas as incertezas
Do adiante, a nos matar
No nada sei, revisitado...

segunda-feira, 14 de agosto de 2017

NUNCA MAIS...


A teu pedido, nada disseram
Desde o início, ao fim,
Todos silenciaram, calaram,
Esconderam de mim...
Moleca, na pura travessura
No rosto o riso por inteiro
Do muro ao abacateiro
Em busca do fruto...
A seguir, a queda
No chão bruto,
A quebra da vértebra
Abaixo da nuca...
E a agonia...
Dos muitos dias
De hospital... até o final...
E eu não sabia...
Vaidosa, não querias
Que eu te visse assim...
Guardando viva em mim
E para sempre! em mim,
A imagem bela, da menina,
Brincando à beira do açude*
Que, não apenas da retina,
Retirar eu jamais pude... (*referência, ao poema "Estática")

sexta-feira, 5 de maio de 2017

TAPETE MÁGICO


E assim todos correm, contra o vento,
contra o tempo e os contratempos...
Até que da espera chegará, rasante,
um tapete mágico ultra fulgurante,
dando início à viagem sagaz, solerte,
por sobre cinzas do cotidiano inerte,
muito além dos flertes e da loucura...
E, na mais plena e pura formosura,
bailarão sonhos, sorrisos, abraços
prenhes do extraordinário viço
da candura terna, almejado regaço
trajado no improviso desse diluir-se
inteiro em meio às flores, lúdica viagem
de inusitadas cores, explodindo nisso
pelos tempos idos, acenando bem-vinda
à vida que o amanhã pinta de miragens,
sem sequer ter existido, ainda...

segunda-feira, 10 de abril de 2017

SOLITÁRIO


Eu sou um quase nada sozinho
Eu sou um quase nada
Eu sou um quase
Eu sou um
Eu sou
Eu só
Eu...
Sozinho,
Nada,
Quase
Um,
Sou
Eu...
Sozinho, nada,
Quase um sou
Sozinho, nada,
quase um
Sozinho, nada quase
Sozinho nada
Sozinho
Eu
só eu...
Não sou um.
Sou nenhum...
Sou nada!

sábado, 18 de março de 2017

DEIXEM-ME O AMANHÃ - antologia poética 2014

DEIXEM-ME O AMANHÃ Antologia Poética Editora Agbook São Paulo/SP 2014 Itagiba José (51 3012-0630)Produção Cultural: Luciana Carrero Coleção Planeta da Poesia – Vol. I Todos os Direitos Reservados É proibida a reprodução no todo ou em parte desta obra sem autorização por escrito do autor. Deixem-me o Amanhã Produtora Cultural: Luciana Carrero – luciana.carrero@hotmail.com Tel. (51) 92218199 - Porto Alegre. RS. Brasil

Sobre o autor: Itagiba José, poeta, contista, advogado, casado, pai de dois filhos. Escreve poemas, desde a mais tenra idade. Esta Obra é uma Antologia dos três livros: Metamorfose, Ponto e Vírgula, Bolinha de Vidro e outros poemas novos.

PREFÁCIO Imagino que, ocasionalmente, o prefácio possa ser visto como uma espécie de passaporte que um escriba institucionalizado e/ou abalizado fornece para o escritor sair do ineditismo e adentrar referenciado ao umbral do livro. Quem prefacia, salvo melhor juízo, deve ser discreto, elegante, e um dedicado padrinho que se orgulha do seu afilhado, o novo autor. O poeta, contista e advogado Itagiba José não é, entretanto, um novel autor, já que escreve desde a mais tenra idade. Nem é aquele menino assustado que chega com os originais ou com o livro embaixo do braço, e que vai tremer e sentir aquele friozinho na barriga, ao chegar. Por isso, ao decidir aqui apresenta-lo, já percebi que não me será um afilhado pesado, que eu tenha de carregar no colo. É, ao contrário, um poeta, na verdadeira acepção e amplitude da palavra, que sabe onde pisa. Já editou três livros: Metamorfose, Ponto e Vírgula e Bolinha de Vidro. Este terceiro tive a honra de editar, quando estive na Presidência do Instituto da Poesia Internacional e na Direção da Editora Carré. Depois disso Itagiba já escreveu centenas de poemas e contos. Mas parecia não ter pressa quanto à decisão de editar novo livro. Foi aí que entrou o cutuco desta madrinha. Ele esteve e está publicando, já de um tempo, partes de sua obra, que vai incluindo, aos poucos, no Blogspot. Atingiu a um público bastante expressivo, que o prestigia no blog. Mas na visão da madrinha, que é franca atiradora com as armas da Internet, é necessário, destarte, dar-se atenção ao leitor do livro físico, que representa uma relação emocional e lúdica com o interlocutor amante da Literatura e da Poesia. Para os apressados, o gélido virtual, que some da tela, como uma aparição fantasma. Para os que curtem, com maior profundidade o aconchego e a vida, e que veem alma na arte, o livro, com o qual podem dormir lendo e acordar nele abraçados. E podem até molhá-lo com suas lágrimas diante da identificação com o universo que mostra, ali, não ao clicar das pontas dos dedos no teclado formal, mas na profundidade de uma relação fraterna. Porque o e-book é um cidadão que passa, dá o seu discurso e volta para o arquivo. O livro é um amigo que está ali na cabeceira, sobre a mesa, na estante ao lado de outros, nos espreitando e pedindo o nosso aconchego, a nossa carícia de amor. Já estou fazendo literatura. Não tenho intenção de roubar a cena. Por isso vou ser mais realista e continuar falando um pouco do meu afilhado. Dos poemas não falarei, porque falam por si próprios. Porém o modo mais prazeroso e fácil de conhecer um autor é lendo a sua obra. E isto será um trabalho do interlocutor, que é o leitor. Para me livrar um pouco da inspiração e cair na real, me socorro no texto que escrevi no “Planeta da Poesia”, portal que coordeno no Facebook. Acho que encerra o assunto: REVISITANDO TALENTOS: Itagiba Perrone é uruguaianense. Poderiam dizer que está perdido em Porto Alegre. Mas não. É um poeta e advogado achado em Porto Alegre. Não necessariamente nesta mesma ordem, poeta e advogado, porque na verdade a ordem é concomitante: menino que se esforçou e lutou para chegar onde está; o poeta que foi crescendo desde sua menina-poesia, até à grande arte que cultiva; o advogado. Juntando todos estes atributos, moldados da mesma cepa, deu no que deu: um ser humano ímpar, verdadeiro amigo e fiel a todos, à família, aos companheiros, e destaca-se no Direito, onde não busca notoriedade ou fama, mas trabalha incansavelmente pela verdadeira justiça, aquela que tem na alma, se reflete na justiça do que faz muito bem feito, e ainda se banha nas águas cristalinas da Poesia. Descobri este poeta há vários anos, por um desses felizes acasos da vida. “Descobri” é um termo bastante pretensioso que prefiro mudar para: tive a honra de encontrar e de editar seu segundo livro: Bolinha de Vidro, anos atrás, já que os primeiros, Metamorfose e Ponto e Vírgula, a mim chegaram editados. De lá para cá a minha vida deu muitas voltas, mas nunca o perdi de vista. Sempre que o procuro, o encontro do mesmo modo, em sua trincheira de trabalho onde reveza, Direito, cultivo às amizades e dedicação às Letras. Mais recentemente conheci seus contos. Faz tudo misturado. Nas esperas, nos corredores dos foruns, em todo o lugar, vai anotando na agenda suas ideias poéticas, líricas e prosaicas à medida que chegam. Verdadeiras pérolas que temos de trazer a lume. Itagiba é um filósofo, não de intrincadas teses, mas do cotidiano, e nos atinge na alma, coração e vida, com suas mensagens lítero-poéticas. Tem uma extensa bagagem que pretendemos editar. O poeta é aquele ser humano dotado de sensibilidade ímpar que visita a essência universal, onde busca a alma de tudo e a retrata a partir da visão privilegiada que encanta aos outros humanos. Estes, em princípio, sofrem o impacto do estranhamento, mas a seguir se apropriam do poema e se deleitam, já familiarizados. Não é raro, ao contrário, é lugar comum o leitor se identificar com o poema, decorá-lo, declama-lo e até toma-lo como seu, dentro da alma. E nisto reside a explicação do porquê da boa poesia encantar. Ela faz chorar, rir, pensar, entristecer, calar ou falar. Ela consola, exalta, exulta, assalta, salva e mata, julga, contemporiza, provoca, completa, avisa, profetiza, satiriza, xinga, preconiza, retrata, sintetiza, pinta e borda, aumenta, diminui, soma, multiplica, e muito mais. Mas, sobretudo, é o caminho mais curto de coração a coração. É humor, amor, princípio e fim, unidade. Não tem dimensão, pois gravita no infinito do poetar, do poeta e de nós mesmos. E nos aproxima. A poesia de Itagiba José faz tudo isso e mais um pouco. Oferece, em sua natural espontaneidade, um carioca entrosamento, e se respalda no conceito subliminar da filosofia intrínseca que jorra do seu poetar. O livro deste vate, aqui prefaciado, em seu universo vive um panorama caleidoscópico que nos apresenta um mundo fantástico de cores, até onde os nossos olhos espirituais possam alcançar, levados pelo nosso olhar de ler. A riqueza de inspirações e de temas, desde os mais banais até os mais sofisticados, é apresentada numa disciplina não ensaiada que inferimos naturalmente do contexto. Eu disse que não iria falar da poesia. Que ela por si só falaria. E agora falei. Está falado. Mas não contei o filme. Nem fiz aqui sinopse. Viajem, então, leitores, nos poemas deste autor. Eles estão aqui no livro para provoca-los. A boa sorte está lançada. Aproveitem e se apropriem da aura. (Luciana Carrero, Produtora Cultural, reg. 3523, LIC/Secretaria de Cultura/RS. Deixem-me o Amanhã:

À ESPERA DO AMANHÃ Na fria e úmida manhã porto-alegrense os edifícios são sombras sob o nevoeiro como meus sonhos no junho outonense onde o inverno se anuncia por inteiro. A vida vai passando assim, úmida e fria, a noite se estende bem além do horizonte no buraco negro onde a luz perde o dia. Em meus ombros a cruz curva-me a fronte... Ah, primavera com seus ventos de esperança o renascer, o rebrotar de forças e da vida, por onde andas, quando virás, minha criança, brincar em mim, ventar em mim sem despedida.

UM SOPRO DE VIDA APENAS Mais que o riso, mais que a prece Queria que tu me desses Um sopro da vida que sobra em ti Não precisa mais que tanto Pra recuperar todo encanto Da vida que falta em mim. Se deres o que te peço Do zero ao tudo, recomeço Na vida que estará em mim. Ao contrário, deves saber Condenas-me a morrer Por falta do que sobra em ti. Acorda que a vida aqui fora te chama! Acorda, de qualquer forma terás o sono eterno e o drama extinguir-se-á como um sopro de acaso. Acorda, não te entregues a esse sono que te fará perder a consciência, entrega-te ao amor que fará perder o ódio e o egoísmo.

PESCARIA Olhava o córrego refletindo nesgas de céu e o comparava a sua própria existência: também transitara por leitos a si destinados refletindo nesgas de céu, sem contê-lo; às vezes, com a impessoalidade do espelho outras, com projetos somados ao que refletia. O anzol sequer dava sinal de esperança ou vida (vida que a minhoca, embora a luta, entregara) diante do descompasso e enfado dos peixes. Ora, como peixe desprezara tantos anzóis por sabê-los engôdos que a dor contém; como minhoca, dera a vida a anzóis errados atraindo olhares e ações gulosas. Só anzol não fora, assim pensava... ou fora?... De repente, agitação na linha e na água, um idiota, como ele, vencera a dúvida e se jogara, corpo inteiro, ao destino. Era a vida presa aos enganos e curvas, de novo atraída pelos encantos do proibido, debatendo-se vã, às forças últimas... Puxou a linha, à ponta, um peixe pequeno, boca dilacerada, sufocando no gasoso, extinguindo a vida, rebelada e vã à morte que vinha, que vinha, que vinha... Berrou, então, ao ouvido do peixe: "Idiota!" e o enviou de volta às águas... Encerrou a pescaria sem haver pescado nada além do que um pouco de si mesmo, refletido que estava na história vivida... Aos amigos diria, mais tarde, sobre pescaria: "Meu maior peixe é o amanhã que sou sendo a vida a maior de todas as pescarias!".

NA TARDE DO SÁBADO De súbito, um raio rasgou a garganta da tarde libertou o vento que, furioso, varreu a calma do sábado e nuvens na orgia, pintaram o quadro de chuva, desabando a magia fez-se a tempestade. Nem era verão, o sol escondeu os seus raios diante do raio que impune brincou de assustar os humanos na tarde do sábado. Enquanto lá fora o inusitado ocorria nos dois, no improviso da fantasia em raios nos dávamos e beijos raiados, há tanto ansiados, fustigaram o não que a realidade gritara ao amor que explodia. Em nós toda a festa do sol esperado gerando em magia incontida o amor, ao viver um início de céu na tarde do sábado.

MULHER Tão delicada! Tão Meiga! Feminina! Sem preconceito invade minha retina, Traz trilhas esquecidas à visão desbotada Reavivando focos de ternura na neblina Do sutil sibilar de rimas amordaçadas No renascer da terra, sem feri-la. Toda mulher nesta estampa de menina Toda a graça nas luzes de teu jeito Cega-me no espanto de tua doçura O tanto quanto que ascende o meu peito Ao infinito de tua natureza pura.

JUNTOS Eis-nos juntos, aqui, sempre e agora tentando viver a aurora no tanto quanto e tão logo se perca o espanto dessa revolta do ir-se sem jamais ter ido e como um relógio no infinito marcar e passar das mesmas horas no deambular impreciso de nossas pernas tortas. E com as vindas e idas desse nosso andar fenecem luzes, pose e preces, assim parece, n'um quase nunca mais que desaparece nessa cerração que de espessa nos embaça escondendo o desmaiado sol que nos abraça. E continuamos além dos prazos e relvas, juntos mais solenes, solitários, na selva dos adultos grávidos de ausências, estampas sem centelhas no percurso entre o meio, o fim e às estrelas.

OFERTA Repouse o teu silêncio em meu silêncio A tua cruz na minha, o teu eu em mim No curso desta prece e andar imenso. Deixa-me carregar-te enquanto posso Neste nosso andar desbotado de carmim Neste caminho íngreme que se fez nosso. Perdi a chave dos sonhos que um dia tive Desaparecida na neblina dos teus olhos E tudo e mais vivi e tudo e mais retive Em meio às reprises desses velhos sonhos. Que reproduzem e se eternizam onde estão Nos carinhos, graça e ternura de tuas mãos. E passo assim como a ventania louca Destruindo passagens de horas, poucas, Em que fui além do que pensei um dia ir Contigo em mim, assim plena e esfuziante Mais do que viva, mais do que luz, amante De um eterno agora, de um eterno fluir... Repouse pois o teu silêncio em minha alma E deixa-me ser teu céu na tarde calma Que cai entorpecida de pecados idos Deixe-me tocar-te, pensar-te presente e nua Habilitando-me em quartos de todas as luas No supremo embalar dos sonhos vividos.

REGAÇO Cada hora, cada segundo Transpasso todos espaços Neste agora o meu mundo Sonha em teu regaço Esta luz que assim deflora Manda a solidão embora À paixão todos os passos...

RANCOR Da caligrafia do tempo Despenca esmaecida Folha amarela, esquecida Ao peso dos contratempos Fotografia do inverno, de tantos outros infernos Das estações ressentidas...

ESCUTA Quero que me escutes com os poros de teu corpo e alma não quero que minha voz penetre em teu ouvidos nem machuque teus tímpanos com ruídos estéreis, quero ela penetrando em teu ser, louca e totalmente, para tocar lá no fundo, que não mostras, e ressoar, ecoar como sino que canta a aleluia em tua emotividade e vibrar em ti, no teu querer. Quero mais, que ela te envolva e me transporte para o infinito que me acena de teus olhos, para a espera e o sonho contido em teu gesto, para a suavidade e a incógnita de teus lábios e paire tranquila por sobre edens e solidão e como nau exploradora do desconhecido de teu ego traga-me, em sua volta, via eternidade tudo que de ti espero e amo, traga-me a vida em forma de beijo, o mel em forma de carinho... Quero que me escutes com os poros de teu corpo e alma.

CONJECTURA Não é fácil explicar o que nos é insensível, mais fácil é sentir o que não se explica. Vejam o amor, por exemplo, grafado pela ação humana serve-a sob todos os pretextos. Esse mesmo amor retirado da essência dos sonhos não explica nosso egoísmo, nem se consagra em nossa insanidade. Ninguém diz: "Amo, porque..." Ama apenas e nisso se basta! E se não fora assim, toda a ilogicidade e imprevisão da vida estariam fundadas apenas na morte material... Por isso que, sentir sem poder explicar ou fazê-lo sem sentir é parte de cada um. E quem sabe o homem elevado a tanto raciocínio que lhe desvenda tudo através da lógica consiga ficar isento de dor ou sofrimento... ... e não seria insípido e sem graça o ato de viver?

PROSTITUTA Prostituta tua luta, tua labuta é imoral usa o corpo que parece a manchete de um jornal. Eu te acuso mas te uso e te uso e te acuso de venal, pecadora, desgraçada, sem-vergonha e marginal. Prostituta te entregas a quem te paga à final, te transformas na amante, na amada, no refúgio, na esposa ocasional e também no quebra-galho mais bestial. Hoje o Pedro, ontem o Paulo... amanhã? quem sabe quem! Pouco importa corpo máquina, não pertences a ninguém. Teu lar é a sarjeta, o teu corpo o ganha-pão, tua alcova, teus abusos em qualquer lugar estão. Prostituta filha pária, catalisas teus vinténs o amor tu desconheces, só o dinheiro te convém vives na promiscuidade e é dela que provéns sem jamais ouvir-viver o caminho que é do bem. Prostituta, Madalena da era espacial não tens pena, te condenas a viver pelo mal. Vês a filha que geraste, que vida ela terá? Seu futuro, oxalá, não seja o "trottoir", não tem pai, não terá mãe, não terá nada... Prostituta mais te acuso, mas te uso embora queira te ajudar. Prostituta tua luta, tua labuta é imoral usa o corpo que parece a manchete de um jornal. Prostituta te ajuda, volta a vida, te ajuda, pede ajuda e perdão para os erros teus prostituta te ajuda e te lembra, te ajuda e te lembra que ainda existe Deus!

SINTO QUE ESTOU SÓ Eu me sinto tão sozinho desconheço os caminhos onde minh'alma andou é que eu estou perdido tenho o coração ferido porque ele muito amou. Se beijar fosse pecado, já estaria condenado pois beijar muito beijei há porém o desencanto muitas vezes, entretanto eu beijei, mas não amei. Encontro-me inconformado de tudo já bem cansado, inclusive de viver. E me curvo a realidade é difícil em verdade ser feliz e não sofrer. Hoje estou envelhecido da vida desiludido sem carinho e sem amor, só me resta a dura sorte de esperar até que a morte venha me livrar da dor. Pois morrer se me afigura como um sonho que me augura felicidade sem par, desconheci na poesia a sublime fantasia que na morte vou buscar.

REGRAS DO AGORA O dia foi destinado para ser vivido. Ativo. A noite, para o descanso. Brando. Do destino virá a morte, sem aviso de quando e onde se fará o encanto e o descanso, dizem, eterno será (?) ... Dia ou noite, pouco importa quando, vives pois as tuas noites e os teus dias sem descanso ou dor, vivo e satisfeito sem amargura ou agonias neste mistério, graça e fulgor que o agora te oferece e insiste desabrochado do amor de que és feito eis que o amanhã é mera fantasia poderá vir, mas ainda não existe...

CHARLA DE BALCÃO Escorado ao balcão bate charla João jogando trela pra fora carneando problemas falquejando dilemas no copo da hora. Vai gastando bombachas botas, cuscos, guaiacas, gineteando ilusões pela pampa da vida na visão destemida é o senhor das ações. E o dia assim passa sem saber como, passa à lo largo de João quase nada é sentido pois o que faz sentido é o copo na mão!

STRESS Correu célere em busca do amanhã na doida certeza que o alcançaria. Sem tempo a perder e tudo a fazer preocupou-se e ganhou uma úlcera. Fechou-se em si mesmo dobrando o ritmo, cultivando a volúpia do poder. Duro foi despertar sem identidade naquele hospital que desconhecia. Um corpo cansado, uma mente abalada. Um nada ao quadrado! Enquanto corria rumo ao amanhã não se deixava viver o presente nem ser ou fazer alguém feliz. Recuperado, não buscou o amanhã antecipado e viveu em cada segundo sua eternidade compreendendo que a vida ou a felicidade é o instante que fica, embora passado é o instante que passa, embora presente é o instante que vem pelo inesperado.

QUEM É CRISTO? Deve ser esta força que impulsiona minha fé, ou então essa tremenda energia de mais de mil cavalos que impulsiona meu motor; um motor cansado, abatido cuja última gota de gasolina se foi há muito tempo; um motor cujos pistões tocam a música inaudível do ronronar da incerteza e cujas bielas foram soltas pela ação corrosiva da desventura; um motor que não merece nem o óleo que consome e queima e não existe. Quem é Cristo? Deve ser esta força que impulsiona minha fé, não pode ser este mundo que laureia minha descrença e nem pede auxílio, nem auxilia! Apenas mata ou entorpece enquanto aos fracos reveste dessa farsa passiva de existência. Quem é Cristo? Não diga que é o Filho de Deus sem sentir o que isso significa tornando-a uma frase vazia que o tempo agilmente colocou entre o fanatismo de alguns e o ateísmo de outros. Cristo é o dia, é a noite (estrelada), é a chaga, é a dor, a alegria, a beleza, é o sorriso, é a paz, o meu corpo, o teu corpo, é o espírito, é a prece, Cristo, enfim, é o Amor em letras versais, em todos os idiomas, sob todos os nomes, sobre todos os mundos.

À MINHA MUSA Lês os tolos versos que te escrevo com o coração a ouvir baixinho a cansar ternura, a canção carinho que neles a te ofertar me atrevo. Sentes na maciez da pétala caída o suave perfume de aroma agreste e a naturalidade que ao poema deste além da grande paz nele contida. Vês nos versos que invadem o espaço o teu perfil formado no regaço da inspiração tênue que ele alinha. Do infinito a luz a terra espreita Tal qual meu sonho que de ti aceita a sua própria vida, musa minha.

VISÃO No trajeto teu trejeito aromado e satisfeito mesmo com este verão, lá de longe eu te sigo tendo como meu abrigo este sol de tua visão. Permito-me a eloquência sem deter a impaciência que meu ser todo comporta e, bem sei, é teu encanto causa viva deste espanto que à loucura me transporta. Lamento que esta alegria de te ver sempre de dia não te faça perceber que a noite, deprimido qual demônio arrependido de ti tento esquecer; não adianta, és minha cruz e em meus sonhos és a luz que não posso segurar entre os dedos reverentes alma e corpo, convergentes, és meu ponto de chegar. Quando passas, não te chamo tu não sabes, eu te amo, amo teu jeito de andar, amo teu rosto, os seios, teus quadris e seus recheios e tudo que não posso olhar.

METAMORFOSE Espera que eu creia nas juras que faz? Que pensa que eu sou? Esgotou o seu crédito, sabia? Lamento dizê-lo, simplesmente acabou! Já não faço do vento uma parcela de minha soma ou de qualquer total nem castelos de areia abrigam minha crença, e o mundo continua a girar, tudo bem, tudo igual! Somente fiquei mais objetivo, temperado, enfim eu mudei, não sou mais o mesmo. Aquele passionalismo que foi minha expressão, o arrebatamento, a ilusão acabou, acabou! Vivi o bastante, errei outro tanto, mas aprendi, as lições foram variadas, custou muito, mas aprendi! Vê, não me venhas com juras, promessas, não creio em você. Ah!, a grande vantagem é que agora creio em mim e piso na terra. De resto, agradeço a você por ter feito de mim exatamente o que sou: um ser racional que colheu do amor um pouco de dor e muito de paz... um ser que sonha dentro dos limites que a realidade impõem. Por isso, não venhas com juras que creio em sua aptidão de jurar... por nada! O meu sonho morreu em suas mentiras e através delas você passou em minha vida, passou, deve conformar-se com sua herança! Adeus, suas juras não têm o meu crédito e o amor feneceu na própria ilusão que ele foi. Adeus a vida é isso aí, exatamente e eu renascido para o mundo real agora que aprendi, vou renovar o fascínio que sinto, em outras paisagens, todavia não usarei mais binóculos ou lentes de óculos, verei por mim mesmo... e com estes olhos, ora!

CAVALOS DE BATALHA As rodas de borracha deslizavam mansamente na cidade grande e nada chamaria mais atenção naquela tarde de chumbo e sol do que tanta miséria retratada no todo daquela carroça. Própria ironia como se buscando um lugarzinho no asfalto, se postara imediatamente atrás da carroça; um carro importado buzinava, queria empurrar o lixo à frente, dobrar a rua, desviar, fugir ao contágio... Percebido um gesto fugidio, nervoso, da mão que varou o espaço indicando entrada à esquerda, o mundo parou como sempre para a miséria atravessar a rua sem saber qual o mais infeliz se o cavalo ou o carroceiro ambos desnutridos, desolados puxando seus infortúnios, um atrelado a uma carroça o outro, sem saber como ou por que, atrelado ao chumbo e sol da vida.

PROJETO Não farei tese, síntese ou quaresma, nem quero lavar as mãos no sangue do mundo, quero apenas mediar todas as questões sem prevenção ou jurisprudência, isento! Baseado nessas premissas construirei meu silogismo e conduzirei meus passos à Lógica que amo tanto; nem por amá-la, entretanto, deixarei de traí-la em nome da loucura primitiva que habita o fundo de mim mesmo, essa loucura que me faz procela, eloquência ou redemoinho e me projeta sobre o norte de tantas paixões com a ferocidade da revolta e me esfacela, me sangra, me ilude e me faz um ser inexplicável cheio de vida e de morte... Reconheço-me, assim, inimigo de meu próprio objetivo mas, talvez por isso mesmo, detendo a força necessária para vencer-me, conhecer-me, conquistar-me.

INCÓGNITA Quem és? vens de uma noite que ninguém entende e dilapidas um dia que ninguém viveu. Quem és? sorris ante a ignorância e te serves dela como um trunfo e te esqueces dela como um sábio. Talvez sejas a solidão, a dor, ou simplesmente a verdade que não quero admitir nem enfrentar. Quem és? Ah, reconheço em teu aroma, em tua obesidade, o volume crescente de tua coragem e, apesar de minhas negaças, como o tempo, estraçalhas as mesmas e surges imponente e grave no manto que cobre tua nudez e reduz o teu impacto. Como uma artista de mil predicados no strip-tease do tempo deslizas o manto e te descobres aos olhos curiosos do historiador. Por que não me deixas tocá-la, agora, tal como és, sem sombras ou dúvidas? E em troca me dás, a minha certeza, a verdade que os séculos cobriram de pó e nem recompensas a minha procura, ao contrário alimentas as minhas perguntas... Quem és?

A INFÂNCIA PERDIDA O Itinha* que eu tinha hoje não tenho mais, perdi-o nos labirintos do mundo civilizado. Presumo que o Itinha afogou-se na vergonha de ter-me alterado tanto e mudado como cera ao toque do cotidiano, desaguando em tantos vícios com status de adulto. Por que é que não retive o Itinha que ainda vive no menino que eu fui? O Itinha que eu tinha hoje eu tenho na lembrança.

* Apelido de infância

LUA NOVA Cansei de borrar meus sonhos com tintas do não fazer e de irrigar os meus olhos com histórias do pode ser. Cansei de viver na lua minguante do não viver, pisar na febre das ruas do bem-querer, mal-querer, da guerra do dia-a-dia pintada de insensatez, de querer ser meio-dia na noite desse talvez. De germinar egoísmo, cansei de morrer semente, quero agora o ativismo de viver todo o presente, tropear saudades, quimeras, abrir cancelas de aurora, deixar de só ser espera, querendo e fazendo agora!

ESTÁTICA Molhava os pés, distraída, nas águas doces do açude enquanto nelas, refletida na mansidão na quietude a inocência saltitava - Que visão! Que encanto dava aos meus sonhos de guri... Agora, de volta, aqui, às águas do mesmo açude não mais são cristalinas... nem a vida, que não pude evitar de poluí-la... resta a imagem da menina que nunca mais esqueci...

INVERNO Tarde úmida, o Pampeiro sopra firme em Uruguaiana E já faz mais de semana sem dar alce pra ninguém Quem me dera o vento frio, com um sol pálido de estio, Que só o Minuano tem! Minha vida tem andado qual o tempo em Uruguaiana E já faz tantas semanas, se arrebenta de ninguém Quem me dera agora fosse tempo de colher pão doce Que o meu cesto já não tem! Como a minha Uruguaiana, pra esta ou n'outra semana Espero venha o Minuano com o sol feito batom Quem me dera neste Junho, com a viola que empunho Festejar um tempo bom!

ATO FALHO Saboreava o chimarrão, sólito, do fim da tarde, folhando à toa o jornal, despassito, sem alarde... De repente o irreal de um nome, qual tentação saltou da secção "Recados", repontando o meu passado... Dizia a simples mensagem: "Volte logo, meu amado!"... Como pode tal bobagem, deixar-me nesta agonia? O amargo da fantasia queimando amargo no amargo - sal e mel, entreverados - no sol posto do passado... E a dor, sei lá, adormecida por vacinas do ausente voltou a dizer presente na quadra da minha vida... Até parece engraçado, o meu amor exilado voltou pleno no contraste do nada desse recado - que não foi tu que mandaste, nem pra mim foi destinado...

MOLEQUE ENGRAXATE Tão cedo para a vida acordaste moleque engraxate, tão cedo choraste o choro que o mundo te provocou moleque engraxate a ilusão terminou. Caminhas inseguro, moleque engraxate carregas na língua a fala que bate, pequeno e sisudo, arguto e vilão, apreendes e professas outro palavrão. Proclamas a glória de saber lustrar, tu que não sabes nem mesmo brincar e o germe que viça no peito inocente é o vírus do ódio que por tudo sentes. O amor, a infância, são coisas banais sofres na carne da realidade punhais e as feridas abertas não cicatrizarão sucumbes ao vício, desconheces perdão. Trabalhas agachado aos pés d'outra gente por míseros centavos te tornas contente e pensas que dinheiro, moleque engraxate, a tudo e a todos convence e abate. Ah! quando te olho assim na sujeira, na altura do nada, criança fagueira deploro esta vida de muitos madrasta que divide homens em classes e castas. Vejo-te moleque sem eira nem beira, moleque engraxate entregue a fogueira do mundo imundo que bate e tonteia e te fez tão jovem conhecer suas teias. É noite e ainda tu andas nas ruas, perambulas sem dono, sem lar, continuas... Apregoas tua fibra moleque falaz, moleque engraxate, que pena me dás!

MENEIOS Andar e dizer com o corpo a prece dos insensatos, assim te veem, embora inocente em tuas perguntas e anseios, de todas as respostas escondidas. Caminhas na leveza do firme pensar enquanto a beleza descansa os homens doidos por não ter senso pensam demônios, luxúria e escapam simplistas por olhares vagos. E quando andas, no andar sinuoso sem perceber ou pressentir, o terremoto que teu corpo causa os torcicolos que teu andar realiza.

A DEMISSÃO* Apenas sei que quando me dei por gente eu estava no mundo e já conhecia um bocado de suas manhas. Enquanto me chamavam de pobre moleque eu, com a cara estampando toda a tristeza tirava vantagem dessa necessidade de apiedarem-se que as pessoas têm. Que sabia de cinismo? só sabia que uns olhos marejados, um rosto contraído, uma máscara de amargura, enfim, era o suficiente para assegurar-me, ao menos por alguns dias, mesa farta. Era um artista! Em dois minutos, no máximo, lá estava resplandecendo em sorrisos para mostrar a alva fileira de dentes que naquela época eu possuía; aliás, só tinha duas cáries, se tanto... não lembro bem... O que lembro é da Maria-Pega, oh, se lembro! e como pegava a Maria. Para mim, novinho e cheirando a fraldas, como ela dizia, ela foi a prima-dona verdadeira. Naquela época só não gostava da chuva, a cidade se escondia e eu ficava sem aquilo que era a minha família: o povo que escorria por entre as ruas e que me sustentava, sim sustentava, uma trombadinha aqui, outra acolá e já estava garantido o "grude". Especializei-me no ramo e tirei patente, fiz o teste vocacional na prática e optei pelo viver o mais possível sem grandes esforços. Foi um erro porque, na verdade, fiz muito esforço para não fazer esforço e acabei cansando. Um dia fui engavetado, como diziam na época quando a pessoa ia para a cadeia... e me tornei doutor! Entrei especialista em trombadas e saí de lá cheio de solfejos e teorias novas. Apliquei-as e foi dando certo até que assaltei, no maior sangue-frio, um velhote e seu dinheiro me fez muito bem mas o que ele me disse me marcou, me incomodou. Ele falou nesse negócio de ser tão jovem e simultaneamente tão vazio, coisas assim; o sermão foi longo e o tabefe que dei no velho expressava, hoje compreendo, um tapa no mundo, no mundo que eu conhecia. Perguntou-me sobre o que imaginava a respeito do bem, essa coisas e aceitou altivamente minha ousadia. No fundo, no fundo fui eu quem levou aquele tapa e até hoje acho que o velho se deixou roubar... por que? sei lá, só sei que daí dois, três ou quatro anos, não estou certo, encontrei-o e lhe devolvi seu dinheiro, com juros e tudo. Mas não foi só esse velho, foi também aquele menino que me olhando com um misto de inveja e orgulho disse-me naquela praça que gostaria de ser como eu... Ser como eu, essa agora!... O que realmente sou? acho que nem sou, pensei... O pequeno marginal que vivia em mim começou a morrer nessas passagens: o velho, o menino, o medo da cana, tudo crescia e tudo me empurrava para outro caminho, um caminho que não trilhara e nem sonhara, Banquei a coragem e meti a cara com vontade, assaltei mais um, com a intenção de começar nova vida, com outra base mais sólida do que a primeira quando surgi para preencher um espaço que, se existia, nem precisava ser preenchido... No assalto me dei mal e novamente fui preso... O Juiz de Menores me repreendeu severamente e acho que me enviaria para o Reformatório não fora o que tentei lhe explicar. Ele deixou-me e, com um pouco de relutância, acreditou no que eu lhe dizia. Daí em diante me orientou, se preocupou, me protegeu me deu a chance e foi um pai para mim. de minha parte fiz o possível para não decepcioná-lo! Vejam como, com tal experiência, estou aqui julgando outros menores, orientando-os, já fui como eles e sei bem de seus azares e por mais que me esforce não consigo empurrá-los para um Reformatório enquanto não o consigamos mudar o fazendo instrumento de recuperação real e adjetiva; real porque objetiva, adjetiva porque com amor. Lutei, lutamos, mas estou desistindo, desistindo de julgar por não concordar com o método de hoje que continua sendo o mesmo de meu tempo. O Reformatório precisa ser reformado e não desisto de lutar por tal desiderato, apenas sinto que materialmente nada posso fazer e dessa forma chamo a atenção para o problema com este gesto medido, calculado e, quem sabe, inútil, um gesto considerado por muitos, possivelmente, tresloucado: Solicito minha demissão do cargo vitalício por ser incompatível meu dever (o de mandá-los para o Reformatório) com a justiça que creio justa e nobre. Talvez não possa reformar o mundo, nem o Reformatório mas tenho convicção, terei colaborado para chegar a tanto. Adeus, a todos!

* (Poema/Mini Conto/Continho)

NINGUÉM Sou um nexo sem causa ou efeito E recebi as surradas teses filosóficas Da humanidade, de uma só vez Como recebera, nem embrião, A herança genética de meus ascendentes. Enquanto massa, não tenho face Nem a perspectiva histórica Que alimenta a ficção e a realidade; Enquanto indivíduo não tenho massa suficiente Para deter o que passa em sentido inverso Ao meu destino. Não detenho nem a mim mesmo, creio. As paisagens são sempre as mesmas Para quem não consegue mudar os olhos Nem a forma de olhar. Devido a isso, Materializado no nada encontrei meu tudo E transpus o impossível. O absurdo é que, Apesar de reconhecer-me no vácuo, Respiro o oxigênio da vida E me alimento dele com a febre dos que creem E vivo dele com o delírio dos viciados. Todas as minhas mentiras se fundiram E criaram essa verdade irreversível para mim: Eu passo! ... Oxalá, não tenha sido tudo inútil!

MORTE NATURAL Morreu como tanta gente sem campos de batalha, sem cama, sem palavras, no anonimato. Em troca das flores, velas ou lágrimas, comuns diante da morte, ganhou o aparato policial, a curiosidade popular e a manchete do jornal. Ele que pouco ousara ter tempo de beijar os seus beijou o asfalto à cem por hora. Morreu como tanta gente, no anonimato, atropelado pelo progresso.

TRANSMUTAÇÃO* Olhei o sol através de uma gota d'água e ele ficou multicolorido; a beleza está em que, a gota d'água, embora pequenina, transmutou o sol, aos meus olhos.

ANDORINHA** Fui súdito de sua beleza; fui certeza do seu amor. Hoje aceito dentro do peito saudade e solidão, qual andorinha ela partiu, pra ser rainha n'outro verão.

*/** - Micro contos/continhos

FOLHAS Mesmo quando te perdi, saí ganhando um sonho de criança e mais... Cantavas no portão uma canção de amor que falava em folhas mortas pelo chão... Quantas despedidas vãs fomos morrendo um dia, sempre e outro e mais... Ficou no portão aquela canção de amor que falava em folhas verdes do verão... Passo na mesma rua e vou lembrando aquele sonho de criança e mais... Ouvindo no coração a canção de amor que falava em estações e em jamais... Vivificadas imagens vão se formando por sobre um portão imaginário e mais... e as folhas caídas no ora solitário verão jazem no fundo da estação nunca mais...

VENTOS GAÚCHOS O vento que paspa as pernas é o mesmo que paspa os braços, o rosto, as partes internas, o resto e mais um pedaço. Às vezes se chama Pampeiro se da Patagônia vem gelando nos aguaceiros os ossos e a alma também. Outras vezes é Minuano, se dos Andes ele sopra, português ou castelhano é a milonga que ele toca. Ai que preguiça, guria, uma preguiça de morte, quero uma sesta vadia eis que sopra o vento Norte que, se tem companheiro, não é o Minuano, nem seria o úmido vento Pampeiro com sua neblina tão fria; 'tá na cara, é o Nordestão que agita o Litoral levantando todo o chão que revoa em areal... São ventos bem conhecidos deste Rio Grande amado abraçando embevecidos as belezas deste Estado sem paspar todas as pernas muito menos todos os braços, os rostos, as partes internas, o resto e mais um pedaço. Ventos que se dão ao luxo de se cobrirem de acento, de gauchos viram gaúchos sem lenço e sem documento.

HOSPITAL Ofegante murmúrio à vida perpassa cerram-se olhos à espera da graça, nasce uma criança, renasce o perdão! Em contrapartida à vida que entra, no quarto ao lado a morte adentra e ceifa outra vida, final de oração. Tristeza e alegria no branco avental vida e morte coexistem no hospital e a ansiedade do peito é opressão. Passos distantes, o silêncio é pesado, na luta incessante o minuto é contado como tempo bastante, embora a duração. As doenças e as dores ali tem lenitivo abertos ou fechados caminhos cativos, ida a eternidade ou volta a ilusão.

JOÃOS Ando cansado de perder, não ser, cair e levantar para cair de novo como aquele João-Bobo, o brinquedo, o João-Teimoso. Sei, não é só meu o privilégio mas a teimosia arrefece nem tudo é o que parece e o mar deixa na praia espumas a espantar tédio. O desânimo toma conta cada vez mais do espaço, das nuvens densas, tontas onde meu dia desmaia nas franjas desse embaraço. O que fazer, penso, agora, quando a luz se vai embora deixando-me só em mim mesmo? Faz-se mais que necessária a coragem de ser praia, mar e festejada dança de um futuro que se alcança e se constrói desde o ontem porque, sei, não há horizontes quando se perde a esperança. Mas, o cansaço que me pesa, traiçoeiro câncer que lesa as profundezas do ser, é o verdadeiro João-Teimoso que, sei, preciso vencer ou pelo menos, enganar, mudando o curso da história porque no pêndulo do tempo embalam-se os meus momentos, latifúndios de derrotas por grânulos de vitórias...

GIRASSÓIS Rasguem as entranhas do nunca com a força da fantasia, estalem os dedos da escuta lambuzem a barra do dia. Voem libélulas, efemérides, borboletas nos arco-íris das vindas ou idas das despedidas e enquanto o sino do tempo badala o som do amanhã, o hoje se faça consenso na flauta doce do ser. Voem libélulas, efemérides, borboletas a vida é frágil cometa no eterno céu do esperar. E enquanto brincam de tédio, enquanto buscam remédio a vida se deixa estar a vida se deixa viver. Explodam o aperto do antes em multicores facetas reafirmando o durante passeando neste cometa. Voem libélulas, efemérides, borboletas, libertem a alma, o sim da fonte, de todo o início e se dando inteiras, assim, despidas de artifícios sejam canções benditas no sempre-viva das horas pois que frágil, ainda e embora, a vida é infinita!

SEIXOS Solitário, passeio em meio a desordem do mundo varando madrugadas, bebendo ilusões e infortúnios no cálice dos aflitos, dos que têm pressa e fome mas não se entregam, nem o medo os consome. O néctar desse amanhã que ainda não existe impregna o ar, umedece minha pele e goteja formando alva e tangível a geada do crer que a febre da decepção se encarrega de dissolver. Doce andar por sobre a prata do luar cheio que brinca de criar sombras fugídias que espantam nada se compara, nem abala, esta silenciosa ida da dor marcada pela resignação do curar ferida. Não há que aquietar-se ante dúvidas ou consolos é preciso encontrar em meio a fadiga e o denodo, o hiato do tempo certo, entre a espera a realização, pois o hoje e o adiante, trarão o ontem, desbotado, na retrospectiva ineficaz do inventariar passado. E o mundo regurgita de mistérios, nuances de paixão enquanto varo a própria madrugada no improviso de me sentir inteiro, quem sabe pouco além de vivo para ofertar ao exterior o sol que penso ter e tenho como todo mundo e minha insensatez esconde. Andar e brincar com a vida, mãos e pés esfolados pelos talvez dos deserdados e mal traçados rumos sobre úmidos e escorregadios seixos transitados em busca daquelas manhãs que sequer consumo pelas franjas do meu agora que não vem nem passa. Sinuosos e repetidos ciclos que a morte espanca com o inevitável epilogo desta vida que a graça de um Ser Divino nos brindou e por fim estanca na desordem do mundo material onde tudo perece na infinita e presente surpresa que nos desvanece.

CONTA-GOTAS Em gotas anuais pelo conta-gotas do tempo conto meus passos. Refaço minha trajetória e respiro meus gestos bebendo a vida como pura água, cotidianamente na fonte do infinito, dela fazendo imagens, minha verdade e extensão. E sigo o caminho dos eleitos para continuar a caminhada sem mesmo saber os porquês que me assaltam e agitam ou quando e onde o fim se fará. Embora isso, sigo tranquilo rumo ao futuro, até a gota final. E pensar que tudo iniciou no acaso de um tempo e a vida se fez em microns e a morte virá por fim ao milagre...

SOBRE MIM Sobre mim os amigos dirão música, serão generosos em demasia. Dirão o que quero ouvir! Eu direi o que minha vaidade deixar, parcos defeitos, outras inverdades que acreditarei verdadeiras. Os inimigos dirão coisas que não sou, exagerarão meus erros e faltas extrapolando negativamente conceitos e danos. Como descobrir meu verdadeiro eu aos olhos isentos da realidade? Neste coquetel de extremos e meios-termos embriago-me com a vida e sigo, passos vacilantes, rumo indefinido, desconhecido e desconhecendo-me, sendo consequência e causa, outro e eu mesmo simultaneamente, real e artificializado carregando em mim Um eu que até de mim escapa!

SINGULAR Sou feita de pó e espinho de ritmo descompassado, de olhar perdido, recheada de riso morto e amargo. Sou o resto, sou passado em presente sem caminhos, sou refúgio e insegurança, venho de meu egoísmo recriando mil abismos nas agruras do futuro. Transparente, misteriosa, herança de amor vivido, por vezes sou cortejada sem ser dor e nem castigo, outras, sou desprezada por trazer a dor comigo. Fogo brando ou labaredas, realidade ou ilusão, carícias ou bofetadas, eu me chamo solidão.

O PASSEIO Ia Maria Uruguaiana a Porto Alegre vendendo vida e ria tanto e como ria a Porto Alegre. Era o passeio, carro do ano, tão almejado, anos inteiros, a Porto Alegre. Mas, de repente bate em Maria nos olhos turvos a curva em frente e o riso cessa cessa o instante e Porto Alegre fica distante. Perdeu o Porto grande alegria com a Maria que chegaria. Cheia de espera toda Maria que era linda, de Porto Alegre ficou na estrada, nem vinte anos, de Porto Alegre cheia de espera. Em geada fria a Uruguaiana retornaria e o passeio tão esperado ficou Maria Não consumado. Curva em Maria tanta existia à curva nada sobrou à estrada...

INDO Nem mesmo é antigo esse repetir-se em franjas de impossível ou inviável. Vai-se indo e pronto... Vai-se! No revestir-se, transvestir-se e mais reviravoltas do tanto realizável cai-se de equilíbrio.. cai-se! Nem só a madrugada é resultante do repartir-se dessa noite crua que se constrói a partir do dia. Lá, todas as trevas, relutantes absorvem luzes, estrelas frias nos infindáveis quartos de outras luas. E se repassam os ecos percorridos até o instante do eterno outrora, no ir e vir do misterioso agora...

MILAGRES* Caminha por sobre os perigos Seguindo as luzes do amor, Em volta estão os amigos Adiante aquilo o que for. Destranca dos lábios o sorriso A vida é milagre, é amor, Apreenda de seus improvisos Ou o sumo daquilo que for. E siga a estrada do sempre, Limites não há para dois, Acenda o infinito no ventre Do antes, durante e depois. É o sonho que acende a manhã Do hoje, do sim, do que for, Creia, há sempre uma canaã Basta viver para o amor. Mantenha os olhos abertos Pois são tantas as armadilhas Que o mal, o fácil, põem perto Nas encruzilhadas da trilha. Levanta após cada queda, A dor também é bendita, É pedra que junto a outras pedras Forma a escultura da vida. E quando não sobrar caminhos E o sol esconder-se por fim Lembra ainda terá passarinhos, Lírios no campo e a mim. Caminha por sobre as guerras, Nas mãos a oliveira da paz Expulsa o terror que se encerra No ódio doentio que ela traz. E quando morrer de cansaço, De dor, de não ser assim, Venha colher dos meus braços Tudo o que reste de mim. Caminha no sonho dos livres A vida é milagre, é amor, Aprenda ela é o que se vive Antes, durante e o que for...

* (Um poema guardado por minha amiga Ione Kusnecoff, escrito em 30/12/1988):

CAMINHADA Venho de longe, de viagens repetidas resultante que sou de vindas e idas. Chego onde o braço me alcança e a criança que fui torna-se adulta. Não trago migalhas ou vetos, nem portas ocultas ou gestos de nada, sou apenas minha própria história de pureza entretida e pecado formal. Sou um pouco distante do tempo de espera e agito o vernáculo na ânsia de ser ouvido, rebatizando o cotidiano na fé e na força, trazendo o inusitado como incerteza. Venho do meio da plebe, assumindo os riscos dos tempos verdades, etapas concretas e rimas. Sem prevenções, não me visto de alegorias que não a do pão, do circo e da vida. Venho e continuo vindo como tudo que passa. Olho a destreza do sonho e da realidade vagando em meio às minhas tormentas. Sou parte, jeito, antídoto e veneno sou todo e todo me entrego, me abro, me fecho, caminhando meu rumo, no rumo de tantos. Sou o que sou, o que fui e serei, venho e continuo vindo como tudo que passa.

PEDIDO Não quero ser resposta de tudo nem metrificar o infinito, antes quero transitar o verde e viver o simples. Só isso. Para que mistérios e sofismas se a vida é gratuita? De que vale o brilho, se cega e afasta os outros de mim? Não quero ser mito, nem mitificar-me, antes quero ser eu, e viver-me. Para que mistérios e sofismas se o amor é gratuito? De que vale o ódio, se corrói e expulsa a luz de mim? Não quero ser o só de agora, sem a fantasia do tudo adiante.

REQUIEM PARA EZOLDA Quisera ser doçura pintar de cor-de-rosa toda esta amargura estampada, dolorosa... Mas, que dizer enfim senão banalidades a dor desta verdade dilacera tudo em mim. Quando um coração para calam-se as palavras e a chuva da saudade irriga a realidade. É um sonho que termina na vida que se vai, silêncio que alucina no frio do nunca mais... Mas que fazer enfim senão juntar momentos guardá-los aqui dentro e continuar tua vida em mim!

ADEUS Vai, caminha na abscissa do tempo e na vertical da vida da resultante faça a tua extensão. Ascende-te ao firmamento, porém não tentes esquecer que na horizontal viveste e viverás teus melhores momentos. Anda ordenada, na desordenada devassidão do deus social, não esqueças o bem, não penses no mal. Prove o tempero da distância ou a ânsia da volta, não lastimes a espera, mantenhas o otimismo, pois o sal usado no batismo dá a pureza, o usado na vida, o mérito. Delicia-te com a doçura do reencontro ou do descobrimento. Vai, o teu passado tornará na curva do caminho e o teu futuro é a incógnita da perfeita equação que é a tua (a minha) vida e que enjeita a solução barata ou incoerente. Anda durante, pelo menos, um segundo na felicidade ilimitada e terás vivido bem mais do que muitos pensam tê-lo feito. Não mudes porque as coisas mudam e sim pela necessidade, pela procura da autenticidade. Não sejas poliédrica, mantenhas uma face! Tente sempre a perfeição embora ela seja também, imperfeita por não dar nenhuma chance a qualquer de nós alcançá-la. Busque o amor sem explicá-lo, o perdão sem defini-lo. Se possível, busque o prazer de viver sem a passividade dos fracos, com a vitalidade dos fortes, todavia evite exageros - os extremos são perigosos. Se acreditares, siga para o norte, apesar de te apontarem o sul. Ajudar a quem sofre é uma forma de evitar a própria dor, mas se ela insistir em conviver em ti, abriga-a como uma dádiva, ela será a chuva que regará o teu jardim, revigorará tua crença e reflorescerá tuas cinzas. Vai, a despedida não existe quando levas de mim uma lembrança deixando de ti, esta saudade.

PONTO E VÍRGULA Estava na rua e a frase surrada dita pelo velho amigo soava aos meus ouvidos antes como advertência do que consolo; não te preocupes, dissera ele, se uma porta se fecha, dez se abrirão. A fixação era que aquela porta fechada ainda há pouco presente, agora era passado e as dez referidas sem a precisão matemática representavam um futuro incerto e não sabido escondido no mutismo próprio do futuro todavia encravado em tantas vicissitudes que rigorosamente escapavam ao meu domínio. Analisei a situação, poder-se-ia dizer que me encaminhava às férias tantas vezes negadas mas não era essa espécie de férias que desejava e nada mais injusto do que tal descanso. Não era ponto final, isto eu sabia, no máximo aquilo representava um ponto inconsequente interrompendo uma frase quase período. Era evidente que gostaria de minimizar o fato dando-lhe a amplidão restrita de um ponto e vírgula. E lá estava eu, na rua, enfrentando a busca de, pelo menos conservar o status adquirido, sabendo de antemão que entre a oferta e a procura eu poderia oscilar na defasagem do tempo e me reter demais na indecisão. As grandes questões econômicas e políticas continuavam a gastar as energias do meu País e a minha questão, de mera sobrevivência gastava a energia do meu e de outros corpos próximos, além de muita sola de sapatos. E o mundo repassa em minha retina e percepção voltadas ao jornal de empregos, estava na rua como tantos outros e o ponto e vírgula quase significava um obstáculo gramático de rara proporção... E a minha questão se confundia com a questão maior do meu país subdesenvolvido, lá estava eu, com mil portas por abrir!...

CATA-VENTO Resumia-se o outono no cair de folhas e em tardes mornas, nada além. Um dia, fez-se um pé de vento e me colocou na estrada e desde aí não parei mais. Como redemoinho, procuro meu epicentro sem me livrar de tantas voltas e percorro a vida como se esperando, a cada instante, a calmaria. Enquanto o sopro da esperança empurra-me para a frente o vento da decepção me estanca, a brisa da moral me reanima. Sigo em frente, ou ré, mas sigo e por vezes tomo o rumo de todos os pontos cardeais rodando pela cruz, sem destino ou abrigo, sem encontro ou recado. Indo. Tento multiplicar o pão sem o trigo e apenas consigo o milagre de estar vivo o que, apesar dos pesares, gosto muito porque o inverno sei ao chegar resumir-se-á em um fechar de olhos e em tardes frias, nada além...

INCONSCIÊNCIA Acorda que a vida aqui fora te chama! Acorda, de qualquer forma terás o sono eterno e o drama extinguir-se-á como um sopro de acaso. Acorda, não te entregues a esse sono que te fará perder a consciência, entrega-te ao amor que fará perder o ódio e o egoísmo. Acorda, quero te ver desperta, acesa, desnuda de incógnitas, descoberta para mim que não tenho o sono que te rouba, descoberta para mim que não tenho o canto que te ganha, descoberta para ti que deténs a alegria que me falta. Acorda, estou esperando e já faz uma vida que espero e, parece, teu sono é tanto que não te dás conta, enquanto dormes o sonho mais lindo sou eu quem tenho. Acorda, eu espero a tanto tempo...

IMAGINAÇÃO* Encontrara sua amada após buscá-la inutilmente na realidade, reduzida a uma fotografia antiga em uma casa de antiguidades. Aquele rosto fotografado no alvorecer da arte fotográfica espelhava a candura, a ingenuidade que ele sonhara haver existido. Apaixonado por àquela imagem sabia que não a veria em carne e osso mas acreditava que a encontraria em um canto qualquer do infinito, lá onde os mortais penetram apenas com as asas da imaginação. Um dia, após violenta tempestade à sua frente fez-se o arco-íris rapidamente alçou-se à estrada colorida percorrendo-a em um sopro de vida. Com a chave que não soube explicar como viera ter às suas mãos, abriu a porta do céu e encontrou sua amada. A fotografia do início de um século transmudara-se para aqueles braços que o envolveram em sua paz e amor. A cidade inteira, enquanto isso, penalizada comentava que perdera seu cidadão mais pitoresco: um bom sujeito, louco e inofensivo que amava, como se o ato de amar por si só não fosse uma loucura, amava uma fotografia!

*Em algum lugar do passado

O DIREITO DE ESTAR SÓ Um dos gêmeos, revoltado resmungava; o outro, mais humilde, permanecia quieto. O primeiro estendeu-se comprimindo o outro e tudo não passava de uma provocação. Não estavam delimitadas suas áreas e nem cabia acordo. Ao mais forte, tudo! Enquanto se dilatava o ventre da mãe um sugava o alimento, o outro a fome; um o poder, o outro a servidão; um a exuberância física, o acinte, o outro a fraqueza, a humilhação; E quando vieram ao mundo ultrapassando o portal do indizível o esfomeado engoliu o seu ódio, o opulento engoliu seu orgulho e mesmo assim conseguiram permanecerem sós. Abortados, jamais viriam a saber que repetiram em um ventre de mulher o drama do ventre do mundo.

SOL POSTO E cai a tarde assim como a zombar de mim mostrando o que perdi, suspenso por um triz o sol morre infeliz como eu também morri. E tanto encantamento da dor, neste momento registro a olho nu e a cor da tarde calma esvai-se como a alma da tarde que foi tu. Mas, amanhã é certo o sol acesso, esperto, inteiro e renascido virá banhar de luz a vida que seduz a todos os sentidos. Cá dentro o meu sol posto expulsa para o rosto a noite em que estou, nenhum sonho me diz à frente o dia feliz da tarde que voltou.

POESIA EM PRETO E BRANCO Olha teu retrato refletido no vermelho desses lábios e a plenitude do mistério na escuridão desses cabelos e a alvura do silêncio transitando nessa pele. Olha o rumo e o tempo do vislumbre desses olhos e o mundo que repassa em rimas nesses sentidos levando em si o encantamento desse corpo. Olha a luz em contraposição nesses labirintos e a lucidez da fronte altaneira nesse etéreo formando a mulher no negro e branco da poesia vida.

À LUZ DOS CAMINHOS NOSSOS Eu quero sufocar tua boca em beijos mastigados, tontos sugar, na carícia louca, o sol deste reencontro. Eu quero refazer o dia, rasgada a loucura tanta, em céus de estrela guia no amor que comigo canta e assim percorrer a vida à luz dos caminhos nossos! Eu quero engolir-te inteira e sendo engolido tudo fazer do infinito a esteira do nós sem apelos surdos. Eu quero explodir sementes de sonhos em realidade amada viver nosso presente, matar esta dor cansada e assim reviver, querida, à luz dos caminhos nossos.

MULHER - II E assim te vejo e sinto, carne e sonho na lascívia do infinito chamado agora e do fundo de teu olhar, toda a vida e o desejo encontram a recíproca, revisitados no canto deste despertar. Tu mulher agora, bem mais que antes, ao acordar explodindo em meus braços não mais ouvirás murmúrios ou queixas de coisas e risos não feitos nem o lancinante grito de haver passado. Ao acordar, o corpo dirá, enfim corpo e o mundo será, enfim vida! E nos teus lábios e nos teus olhos a languidez de se saber enfim mulher e, em mim, o infinito de ser o homem!

LUA CHEIA Nem de perto sonhar mas é noite de lua cheia e a prata teima em ficar no espanto da escuridão. Pende em mim o acalanto que restou preso em meus braços, entre meus passos à lua cheia dos teus abraços. Afago mistérios passeando-os ao léu em céus que a escuridão desmente, plenos de luas e estradas curvas onde, por vezes sóis irrompem diletantes. Atento, não me visto só de devaneios, enquanto brilha fora um luar errante, cá dentro, meu peito esmaga os teus seios.

INVEROSSÍMIL Andar entre andares, mudo sendo a impressão do que se guarda no fundo, ao buscar-se o tudo lambuzado de sentir-se um nada. E se viver nisso, no milagre da alternância do incontrastável explodindo a cheia que consagre o impossível e o improvável. E continuar entre os absurdos (surdo a apelos, entre outros surdos) colado ao pêndulo das horas chegando e tendo de se ir embora. Do paradoxo, na banalidade do ser-não-ser desta eternidade viver o agora é o grande prêmio da loteria do passar efêmero. E a música segue, algo diluída entre harmônica e dissonante nos infinitos presos aos instantes indefinidos que chamamos vida.

TÍTERES Antes, embala os rumos do agora pela destreza dos ventos e não te envergonhes de ser criança eis que é duro deixar de sê-lo e nada se acrescenta quando, exceto que tudo se perde. Não me julgues pior do que sou, nem envenenes meu pecado com o mal que não tenho. As questões se bifurcam desdobrando estradas e vias sequer sonhadas ou queridas, levando-nos aos mistérios de amanhãs insuspeitados e a presença do inusitado determina, no bailado da vida, a extensão do palco medido nos milímetros da corda bamba. Logo ali... O inferno!

EU NÃO SEI Eu não sei se pensa em mim, mas eu em você penso sim. Eu não sei se sonha comigo mas eu muito sonho consigo. A flor nasce à vida? à morte? O homem tem ou faz sua sorte? Eu não sei e nem compreendo a dor que sempre vou tendo. Eu não sei, confesso não sei se foi o bem ou o mal que dei, se tudo o que tinha a dar eu consegui ou não realizar. Quem não sentiu no amor um gosto amargo de dor? Quem nesta vida que passa não conheceu a desgraça? Quem não deixou na esperança um sonho sonhado em criança? Eu não sei se existe a saudade, se a vida em si é bondade. Eu não sei se vivo ou se morro. Eu não sei se paro ou corro. Eu não sei se sou o que sou. Eu não sei se fico ou se vou. Estou perdido na vida, no nada, não encontro saída ou entrada, até o vento me consegue levar e não sei onde e quando parar. Eu não sei se sou Deus ou sou pó Eu só sei que me sinto tão só.

LUME Não tenho medo de morrer! Tenho medo de não viver! Eis o pecado que não quero na ânsia do ser e do que espero deixar escorrer entre os meus dedos o agora desta vida que vai cedo! Viver e estar vivo são diferentes sem ser conflitantes: Estar vivo é significativo! Viver é significante!

PINGOS DE CÉU Chovia. A chuva açoitava, com grossos pingos, a vidraça da janela. Um pingo correu celeremente em toda a extensão do vidro frio ... Perdeu-se no anonimato. Outro pingo recebeu companhia, cintilou, reviveu provou que, ainda, dois é mais que um. Tantos pingos, alguns sós outros acompanhados, descendo açodados a vidraça impessoal para reunirem-se na esquadria, para perderem a forma, a individualidade em holocausto ao todo, ao infinito. A humanidade é pingo na vidraça do mundo. A vida é a janela para a eternidade. Quantos pingos correm celeremente e se perdem no anonimato? Pingos desiguais no formato mas, no fundo igualados pela procedência, todos irmãos da razão. Pingos sós e acompanhados marchando na lividez do tempo. E, após percorrida a vidraça impessoal, chegar à esquadria não importará o porte e sim a substância sem ânsia, na morte da matéria o nascer para a vida que é o destino, uma célula apenas, do Universo divino.

ACIDENTE Um carro em alta na rua baixa canta pneu ... Um baque surdo bradou bem alto o que ocorreu ... Um corpo rola como uma bola cheia de adeus ... E o carro em alta na rua baixa sangra pneu ...

DIÁLOGO "- Cada passo é um passo rumo ao tudo ou ao nada; cada finta é uma deixa de todas as queixas ou de contos de fada; cada gesto um abraço ou um triste rechaço de alguém em alguém; cada seio é um regaço de quem vai ou quem vem." "- O que sabes da origem dos mundos? do como, do porquê do profundo filosofar que te envolve e tantas vezes te cala? Anda, brinda com tua fala, desenvolves o brilho no ouvinte zeloso que embora orgulhoso de ver o filho com tantas opiniões, sem querer uma polêmica lembra-lhe que há situações em que a lógica acadêmica com aparente razão não nos deixa sentir importantes mensagens vindas de nossos corações. Por isso pergunto o que sabes de tua própria origem? Que sabes dessa coisa gozada, engraçada, indolor para alguns e tão complicada chamada Amor?" "- Pai o amor é...” "- Não, não tentes defini-lo porque de um mortal Ele não merece uma definição; tente senti-lo, apenas senti-lo, é nossa mais humana ação; talvez não descubras a origem dos mundos, mas descobrirás tua própria origem e analisando mais fundo verás que o nada só existe onde falta o Amor!" "- Puxa, pai, o filósofo era eu assim eu pensava, mas você ..." "- Sei disso filho, mas vê um filósofo sem amor é uma casa sem vida, é a noite de um dia. Para que não seja vã tua filosofia, não seja pagã, nem noite de um dia, meu filho, jamais esqueça: some o coração à cabeça!" "- Obrigado, meu Velho, cada passo é um passo rumo ao tudo, cada finta é uma deixa de todas as queixas, cada gesto, um abraço de alguém em alguém, cada seio um regaço de quem vem e não vai!".

DIRETRIZ Quebra a estrutura do não e repete o prodígio do som nos lábios de tua aurora. Não te prendas no ontem eis que teu amanhã é e o vento acaricia teus passos. E o rumo é o sempre! Basta de improvisos e improvisar-te sendo antes o que não és, depois o que não foste. Identifica-te no rimar dos sonhos e na busca da realidade sendo hoje o que mereces. Quebra a estrutura do não e repete o prodígio do sempre!

DO PONTO DE VISTA DO CRIMINOSO OCASIONAL Sinto o peso do mundo sobre mim, pesa-me uma vida mais que a morte. Tudo se conjugou para o resultado que extinguiu o sonho, estripou a força e, sem ânimo, prostrou a realidade. Vertiginosamente ruiu a fé, o poder e me vi impotente diante de um corpo. Só e fraco, vazio e torpe, vi meu ego retratado em tantos monstros. Instrumento, causa ou consequência, não importa, fui cada uma das coisas ou adjetivos, todas elas, tudo. Interrompi uma trajetória, uma luz que não era a minha e, mesmo que fosse, não tinha tal direito. A partir daí fez-se tarde, falta, fardo e medo fez-se ausência de quem nunca tive. Fui o epílogo inesperado e algoz inserindo em meu próprio livro o amargo capítulo de minha culpa e a certeza triste de não haver desculpa. Continuarei a caminhada, a dois, levando minha vítima comigo, eu também vítima do meu passado.

ROTA Estrela cadente que engana o viajante que busca no céu os caminhos da terra, os caminhos da vida, os caminhos da luta, os caminhos da sorte, estrela caída de uma quimera. Estrela cadente, ideal de ventura que vi e vivi em dois olhos morenos ...

LENDA DA GEADA Na noite tão linda Vestida de prata Caiu o orvalho em forma de pranto E toda de branco minha pampa adornou E a noite de prata mais prata ficou. Piazito eu era, vovô desvendava Os mistérios do mundo pro neto guri De todos os contos o mais lindo que ouvi Dizia que a geada era um choro gelado De um qüera que há muito tempo atrás Foi tropear o Cruzeiro do Sul. E apesar da beleza do campo celeste Do fulgor, da magia de sua tropilha Por vezes retorna em sua retina A imagem saudosa do pago terrestre E quando ele chora o rebanho acompanha De tanta tristeza que a tudo resfria Parando o minuano na noite que é dia ... E quando geava, vovô repetia O qüera de novo da pampa lembrou e a paz do seu pranto a pampa abraçou... O minuano murmura no ventre da terra Enquanto ele chora a saudade incontida Cantigas de inverno, história que encerra A alma gaúcha no ciclo da vida.

DE ÓCULOS ESCUROS Hoje, estou a olhar o mundo de óculos escuros e vejo tudo cinza... Desanimo ante a perspectiva de enfrentar meu dia e a natureza contribui para esse desânimo, está quente, grave, abafado. Apesar disso tenho de fazer o que faço sempre agir no mesmo diapasão e dedilhar o conhecidíssimo teclado da velha máquina de escrever, cair na mesma rotina cheirando a mofo. Quando menino colori meus óculos de cor-de-rosa, depois várias cores alternaram-se nas lentes exceto a rosa que, agora sei, não mais virá. Ao verde da adolescência sucederam o vermelho, o amarelo, o lilás e este cinza que me cerca e me força a usá-lo cada vez mais mantendo-o, possivelmente como símbolo do azedume recolhido ao interior de meu ego durante minha própria campanha na vida. Espero que minha decadência física, amanhã, seja minha ascendência moral e possa cobrir de branco o conteúdo inócuo trazido nas lentes da reminiscência. Por enquanto e pelo menos, hoje, estou olhando o mundo de óculos escuros e posso afirmar, com toda a certeza, não há beleza no que vejo!

MUTANTE Sou tão velho quanto o tempo e tão novo quanto a eternidade. Não sou a medida cronológica que querem me atribuir; não me divido em partes sou um todo! E com essa responsabilidade a cada instante me renovo, me transformo em mais eu mesmo. A todo instante me submeto ao teste de viver; renasço em cada esperança, após morrer em cada decepção; com isto, sou velho e moço, simultaneamente e misturo minha finitude com o infinito de minha própria extensão. Eu!

ANDORINHA Eu fui um súdito de sua beleza, eu fui certeza de seu amor e caminhei sob a leveza sem ter tristezas por seu amor. Hoje, aceito dentro do peito esta saudade e a solidão, qual andorinha você partiu pra ser rainha n'outro verão.

FORÇAS Arrombaram sua intimidade e retiraram o hímen de sua fé e força. Desnaturada manhã em que o sol não veio e o sonho trombou com a realidade. Estava ali, tresloucada, deteriorada, como gente sem adjetivos, fria e chuvosa ... Conhecera a fome material, imaterial, a fome de tudo. Era carente de si mesma. Aquela água passava sob a ponte, quisera ser ponte mas se confundiu tanto com águas passadas... as esperadas nunca vieram. O rio a chamava, a vida lhe fugia em meio a ficção que revestira sua brisa. Agora tudo era iminente e sujo e fraco ... A cabeça, o pensamento, a empurravam: Passa da ponte à água e tudo será passado, molha o corpo apaga a ideia. Descansa, enfim! O mundo passando pela ponte, apressado, problematizado, se enfrentando, dilapidado, indo. O corpo inerte, fraco, ali permanecia quieto, cabeça e pensamento revoando sobre as águas que, mansas, pareciam dizer "Vem! ... Vem!" ... De repente, dentro de si o chamado à vida, à luz. Passado o êxtase do desencanto, atrelou-se ao sol, lá adiante a vida continuava distante e alegre, triste e presente. Rindo. Chorando. Vida! Ponte e estrada aceitou o convite e se perdeu na multidão. A fé se revigorara na dor solitária e aguda do desespero!

NO ESPELHO Tu que me falas desse modo com a autoridade da aparência e, na essência, te manténs indiferente nesta estampa que deténs: Nada és! E me informas: Nada sou também! Do espelho, essa imagem me provoca e desloca à estampa envelhecida, os pesares que os anos a cercaram. E assim, muda, falas e me espantas dançando impune na frieza do aço escancarando essências transparentes. Tu, oposto e aparente, percorres o fio da existência que passa ao largo em vicissitudes que os fulcros mostram. Tu em mudança, o eu que está agora, o eu chegado do que tu demonstras, aparentemente, em verdade, aparentemente...

DESILUSÃO Eu o forte. Nada vendo em teus olhos, vi além, o reflexo dos meus. E me enganei! O espelho assim me trouxe ilusão e o irreal. E sozinho amei, inventei e arrebentei de nada. Eu o forte. Eu meu nada!

ENQUANTO ME AMAS Enquanto me amas eu sou a essência e a substância do sonho. Enquanto me amas a saudade fica de fora e o vazio se ausenta. Só tu existes. Só tu és mundo. Eu vivo o doce de teu beijo e o linguajar sublime do teu corpo.

BOLINHA DE VIDRO Novinha, a bolinha de vidro era usada alegre, Batida, estalada, entre as bolinhas Companheiras ou inimigas Das mãos do menino às mãos do acaso era jogada De tanto usada, de tanto batida, acabou lascada, Jogada, esquecida, na lata do lixo. Da lata do lixo para o lixo da terra E lá se vai o tempo, não se vai a espera. Enfim, chega um dia, improvisado No menino usado que revolve o lixo Buscando o alimento, o brinquedo, o quem sabe E descobre a bolinha de vidro lascada e sua. Usada de novo, batida estalada, Lá vai a bolinha , nas mãos do menino, Feliz o menino, nas mãos a bolinha Que se refazia no ciclo da história. E o ciclo se fecha. A bolinha de vidro fragmenta-se e pronto, mas não perde o encanto: Reflete colorido o sol Que, atrevido, a possui sobre o lixo.

ELIPSES E assim a força centrífuga me atinge e o mundo roda E a roda sou eu... Em nada sei e penso. Embora o receio e a curva, Sigo empurrado e sacudido por sonhos E o sonho sou... Em tudo sei, o escuro... E o remoinho dos passantes e certezas Aderem-se ao menino E o menino sou, de espirais incertos. E perplexo, consigo o nada e o tudo Inventando a vida E a vida sou, desfolhando cinzas. E rodo à curva, o tempo corre E movo o novo do infinito hoje E o hoje sou, em amanhãs que tenho... E o mundo meu se chama enigma E rasga o antes e o depois E o antes e o depois sou, em mim o espaço Como tempero de todos os meus tempos Que este tempo urde A curva próxima espera-me em seu todo De recriar mistérios ao menino moço...

MONÓLOGO Neste jeito de conversa Bota a tristeza na mesa, Não reduz o teu talento E dispara teus momentos. Solta a língua com vontade Contrariando este recato Que manténs por conveniência Diante da autocensura E te afasta da mesura Que te envolve como ciência Levando o teu evento Ser apenas marco chato De um mesmo cotidiano Que repete este teu dia Transformado em teus anos Tudo igual sem consequência. Neste jeito de conversa Bota a saudade no bolso, A estrada em tua mão, O teu eu em teu retrato E te despe e te refaz Sem ser tema nem parágrafo, Fala o quanto tu quiseres De escutar estás morrendo... Fala que eu estou te escutando E não sou a tua consciência E não sou o teu passado E não sou o teu momento E não sou o teu não sei... Fala que eu sou o vento Sou tão forte e tão vazio, Sou o céu que nada escuta Sou a estrela que iludiu... Quem afirma que caiu... Sou a cama que te abraça Sou o sono que te envolve Sou a lágrima que é graça Que ao riso te descobre. Bota a tristeza na mesa, A esperança em teu rosto E sorri para o teu jeito, Para o jeito do teu mundo E compreenderás que o tudo Não existe sem o nada! Fala tudo que te escuto, Sou a tua alvorada Que escapou de tua noite E vem brincar em teu dia, Na magia do vermelho Desses olhos inchados Pela chuva do passado. Neste jeito de conversa Manda a tristeza à mesa E teu tempo será o outro Fala tudo que quiseres, Solta a mágoa para o mundo E teu tempo será outro...

UNIDADE Vejo você por dentro de mim, vejo você saindo de mim, vejo você pedaço de mim e extensão de mim em você. No desaguar da cachoeira, na ilusão das estrelas, na sutileza do implícito, sinto você em toda parte, aqui, ali, no infinito você e eu estamos juntos. E juntos caminhamos sem pressa o rumo da vida, o rumo do nós, você em mim, eu em você, somos um, sem paradoxo carne e sangue, céu e mar, pleno de sonhos, enamorados.

FERMENTOS As amarguras são fermentos que fortalecem o ser nos ensinam que a dor do pranto é o início do reverter. Mas, para que tanto em um só momento, não posso mais, passei do ponto nos desencontros, não posso mais. Mais que sozinho perdi o caminho na escuridão. De amargo quero apenas o amargo do chimarrão e quando o sorvo em goles pausados líquido verde bem temperado, com gosto d'alma do meu rincão, a esperança aquece a mente e o passado vem para o presente...

DISFARCE Disfarça! Na farsa da fé espalharam o terror, o ódio, a discórdia, a desgraça e a fome que grassa os mantém em pé. Disfarça! Os comparsas do ter se encontraram nas trevas malmequer que os cega e se espalham na terra morte a paz, viva a guerra e morte ao ser. Disfarça! São loucos, fanáticos, lunáticos d'alma devassa que geram desgraça em nome de Deus, da crença suicida em cadeiras no céu e assim imolam ao léu, no altar da cegueira, o milagre da Vida. Disfarça! Dementes, pirados, coitados órfãos de senso, instrumentos da dor, sem luz, sem amor, de teologia pagãos são párias, sem ressalvas, da maior das verdades: só o amor é que salva.

PASSANTE Peguei na tesoura, tosei os embalos D'uns tempos de ida que volta não tem Fui muito mais que ao fundo da grota Buscar encilhado o cavalo do além. Por sobre seu lombo voei nas campinas E das nuvens meninas colhi o orvalho Fazendo cambotas me perdi dos atalhos. Vestido de açoite, guaiaca e pataca Pudera estar sóbrio no baile da vida Pudera ter rido, sem dor, sem ferida. Rodei no galope em meio a manada Daquele guri já não resta mais nada Disparo palavras trançadas à navalha. Dividido em sobras que o vento guardou Sou antes o que fui, nem fui o que sou, N'alma forjada na dor que estraçalha.

MILONGA DE RENDIÇÃO Segui teu conselho, ensarilhei o relho, Amarrei o cavalo e tropéis de estalo Agora, penso muito antes de agir, Sei bem mais para onde e como ir e os pesadelos, encrencas e novelos, Se foram para longe de mim. E a vida voltou a sorrir por ti, minha doçura, meu bem e minha cura. Descubro a Pampa na tua estampa sem sombras do agreste no amor que deste E nele preso só por te ver, libertei o meu ser Agora a quimera pilcha este qüera Não mais me atrapalha o fogo de palha Por tua ternura, tua doçura, não sou mais quem era... Milonga, minha milonga, milonga de rendição... trago teu ser marcado no fundo do coração...

E TUDO MAIS SE VAI Em voo rasante a águia apanhou sua presa e na torturante surpresa a presa desatinada passou sua vida a limpo, mais que isso diante disso, da morte que a sorte lhe reservara (ou azar, qual o norte), viu-se só em seu destino no desfecho de seu nada, a presa coitada... A águia, por sua vez, caçadora sem piedade que à vítima rapinara e nas garras a apertava seguiu rumo ao ninho matar a fome da ninhada. A natureza é assim, boa ou má, vazia ou cheia, dando o mel ou a ferroada, própolis ou a colmeia, e como tudo, depende a ocasião e/ou protagonista vida e morte, no recheio os perigos aos artistas. No percurso, da águia, da presa, da espécie, nasce, cresce, a vida segue seu curso, fenece e o novo empurra o ontem para o infinito jamais que a tudo mais e muito mais, se vai... e esquece.

ORAÇÃO DO AFLITO Valha-me Deus, tenha o nome que tiver, seja Homem, seja Mulher Espírito, Verde, Vermelho a outra face do espelho o Sim, o Não, o quem sabe. Valha-me Deus nesta hora, em todas as demais horas, mas nesta, em especial, traze-me a benção, a alegria, Tu que és Luz e Energia. Tupã, Jeová, Alá, Oxalá, seja lá o nome que for se És, como creio, Amor, Valha-me muito o Senhor pois perdido estou e morro se não me deres socorro...

TEIMOSIA Seguindo a regra geral vou caminhando... mal! mas caminhando meu próprio passo, sem treta, sem muletas, troçando do azar pelas gambetas... E quando pareço mais trôpego do que o normal é porque estou convalescendo de pealo recente sendo certo que à cada queda levanto-me mais gente. Provo, pela realidade, sou um teimoso e ponto final mais que um milagre sou a prova de que Ele existe tanto por estar vivo, tanto pela razão que persiste na esperança e vida que se soma em cada qual. Mais vale um teimoso derrotado, temporariamente, do que um néscio triunfante além do temporariamente, vivo e o que é que tem e se bobear morro também.

COMETA Veio do acaso que a ninguém pertence da luz que cega mais do que ilumina e todos foram pegos na armadilha... Ante a menina, os vassalos, ajoelhados ofertaram flores sem espinhos ou pecados e perfumavam seus sonhos indecentes... De tudo aproveitou, o fogo fátuo, exaurindo as almas das presas encantadas e, buraco negro, não devolvia nada... Como veio, partiu, deixando ocasos não mais menina, luz, paixão, acasos, fugaz passagem que não deixou rastros...

NENHUM POR NÓS Flutuo em tua praia sabendo-me sozinho e só em mim desmaia o escuro do caminho. Na luz desse dia que o sonho anuncia navego, me entrego... Tu, na mesma praia, muito mais sozinha, d'outras madrugadas feres de espinhos às flores anunciadas que não formam ninho. E a noite do enfim sós aborta o dia não nascido e no escuro da indiferença jazem corações e crenças e em nós e em cada um morre o plural jamais vivido do pelo nós, nenhum...

NA TRAVE Passaram-lhe a bola no tempo e espaços certos porém não estava no lugar quedara preso do incerto que o titubeio esfola na sina do não chegar. Enquanto isso, aceso o zagueiro passado tomou-lhe a frente como sempre, sem pejo no tranco pesado e estancou o repente. Mais um gol perdido Mais uma derrota fracasso rotundo. Novamente o quase tido desviou sua rota à linha de fundo. Quem sabe, adiante, n'um futuro jogo como em raras vezes no sim do durante, mesmo no malogro, estufará as redes...

CONTINUÍSMO A humanidade, no alvorecer do terceiro milênio geme à busca, por qualquer meio, dos inteiros sempre perdida em emaranhados de problemas prostra-se à eternidade dos esquemas fracassados. Nada vê além do umbigo, momentos no escuro, o egoísmo corroendo o agora, futuro, pensamentos pensa inocente que nada fica na corrida dos segundos exceto a dor que estraçalha os trajetos deste mundo. E o escárnio estancou o riso, fez do abraço o açoite e do latifúndio da ironia brotou o espaço da noite dilacerando o dia que morreu triste, sem aviso, preso às queixas do cotidiano, sem improviso. Assim se esfola inteiramente a humanidade em tristes e obtusas figuras dos jogos difusos dos seres gregários que arrastam pelas cidades os pesados fardos de seus egos sós, confusos.

INSTABILIDADE Logo à frente o medo de se saber "quem sabe" vulnerável, infinitamente vulnerável e o eufemismo do hoje indo antes que se acabe resfriando sóis e luas do amanhã instável. Tudo isso, sei, virará pó ao longo do caminho dores, alegrias, medos, fobias, azar ou sorte, retornarão às franjas do ido, enfermo descaminho de tanta vida que se desdobrou em morte. O hoje que passa, em si só não se basta ainda que somado ao ontem desperdiçado no amanhã que ainda não veio e arrasta os indecifráveis teoremas do passado. Rebeldes astros de órbitas irregulares não sendo frascos, aprisionam perfumes sulcando traços e, apesar dos pesares, irradiando a efêmera luz dos vagalumes.

RETRATO DO AVESSO De súbito, entendi! É o tempo o senhor Sou apenas o súdito Sem queixa ou pudor. Então, assim, percebi Que o sim e o não Em qualquer versão Ou mesmo endereço Não tem razão de ser Ou ter, tudo é começo. Minhas escolhas São folhas soltas Que reprimem orvalhos Do ontem, de atalhos, Que sem me dar conta Despedacei em tédios. Pretenso remédio Que não faz a cura Das tantas juras Do inalcançável Que indisfarçável Em mim repousa. Presas do tempo Todas as coisas O bem, o mal Ir-se-ão sem ter O som do agora Do meu sofrer E dos gozos meus... Todos sabores, ao final, Dos meus amores, De minhas dores, No agridoce do adeus.

CRISTAL Sabemos que o tempo parou naqueles tempos, enamorado! Ficou em nós, sem ter passado. Ficou além do horizonte, na luz, suspenso no ar e a dor, então, se fez ponte para a saudade passar! Passar, ah, quem pudera voltar ao tempo que era em cores vivas, total, um lindo sonho de cristal!

REFLEXO Dize-me que olhas e me reconheces naquele verso lido ao acaso, miragem em verdade, não vistes pois esqueces que só o olhar dá beleza à paisagem. E assim me amas e por isso vês o teu amor refletir-se em preces que estão n'alma e olhos, no que só o teu amor aumenta, engrandece... Dize-me tanto teu olhar, imagens de inusitado belo, de passagens sublimadas em cores e matizes. E saem à vida, ao amor, mensagens de paz, felicidade, paisagens das maravilhas que assim me dizes.

CINZA-ROSA Ela nem tinha o que dar, esperava bem mais do que eu podia dar enquanto eu, do amor que imaginava bem cedo soube, não lhe ia bastar. E logo adiante, o fim, o ir embora deixando para mim o esquecimento e este passar e não-passar de horas de êxtase e amor, ódio, arrebatamento. Quero chorar o amor mal resolvido embora por amar sozinho tenha sido bem mais feliz que ela, em verdade Posto que a chama deste amor antigo consumiu esperanças e se fez abrigo deste cinza-rosa chamado saudade.

RECOMEÇAR Não há mistério na sutileza que pomos à mesa neste trivial encontro tarde, vindo do antes que neste instante vive outra vez. É na medida, tom verde claro batendo à porta desta manhã. Ah, o nosso amor, o amor de tantas voltas, mesmo lugar, é pão da vida, é pão dos sonhos que nem chegamos a fermentar. Ah, tempo para recomeçar, tempo desse nunca mais, para perder, para ganhar, vamos à mesa desta manhã, ao pão da vida, ao pão dos sonhos, recomeçar, mais uma vez, recomeçar, viver de novo...

ATO DE VIVER Não chores o passado nem premedites o futuro. Por pior que seja a realidade a surpresa, por seu inesperado traz um misto de vida que renova mesmo doloridamente a carne e o espírito. Por isso, aprende a viver teu presente como se ele fosse teu último momento e dessa forma reterás todos instantes e formarás a auréola de felicidade que todos pretendem encontrar: nada escapará à vida, tudo será vida. Não esqueças porém que o ato de viver não impede o ato de amar: Um é essência do outro! Amar a vida deve ser não só um desejo como também um oceano real e atuante onde naveguem corpos, espíritos e sonhos Um dia navios cansados, cascos arrombados naufragaremos no desconhecido, apesar disso o mar continuará nos retendo e vez que outra olhos curiosos, despertos, revirarão o pó e recomporão nossa paisagem. A história não deixa em paz, perenemente, seus integrantes. Vive pois o teu presente que logo será passado, história, viagem e de tua vida outros se ocuparão, por certo!

PERSPECTIVA Não se abraça a essência do vento e ele impune nos bate no rosto levando consigo nosso pensamento que vaga no espaço de nossa ilusão. Não se cobre o curso do firmamento e ele impune cabe em nossos olhos agindo em sorrisos perdidos, amados, retendo consigo nossa imaginação. Nem se vive a verdade da vida que como o vento nos agita o rosto como o firmamento nos cabe nos olhos e como o amor ficou para amanhã.

DEIXEM-ME O AMANHÃ Tirem-me tudo se assim entenderem que mereço exceto o amanhã que não tenho, nem conheço. O homem vive de perspectivas, de fantasia, da utopia e seus adereços e o que paga pelo hoje que já vai ontem é resultado de suas ações e omissões, justo ou injusto, paga-se o preço. O amanhã, que nunca tenho, pode trazer em suas dobras o que me falta para só ser inundando o leito seco do riacho do agora com águas puras originadas d'outras auroras e meus excessos na dor que espanca nelas banhados renascerão em esperanças. Vida na vida, sonho encantado, o avesso destes tempos rudes que vivo e sei, mereço tirem-me tudo, menos o amanhã que não tenho e nem conheço.

ACRÓSTICO (à minha filha) Do alto desses meus anos Escalo o meu futuro Sou zero em desenganos Infelicidades ou escuro Recém liberta das fraldas Estrela, manhã, grinalda Estirpe de "pelo duro". Alegre cresço e apreendo Lições que me são dadas Feitos, ternura que entendo Olhando exemplos em casa Na razão, no sentimento, Sou arco-íris, firmamento, O sonho que me embasa. Por tudo isso, o sorriso Esplêndido que me ilumina Reflete o que idealizo Relva, flor, sol e neblina. Os meus anos, a vida brilha, Na incrível maravilha Em ser mimada e menina.

ÍNDICE A Demissão/33 À Espera do Amanhã/11 A Infância Perdida/28 À Luz dos Caminhos Nossos/61 À Minha Musa/23 Acidente/68 Acróstico/96 Adeus/52 Andorinha/74 Ato de Viver/93 Ato Falho/31 Bolinha de Vidro/78 Caminhada/50 Cata-vento/56 Cavalos de Batalha/26 Charla de Balcão/20 Cinza-Rosa/92 Cometa/87 Conjectura/17 Conta-Gotas/45 Continuísmo/89 Cristal/91 De Óculos Escuros/73 Deixem-me o Amanhã/95 Desilusão/77 Diálogo/68 Diretriz/70 Disfarce/83 Do Ponto de Vista do Criminoso Ocasional/70 E Tudo Mais se Vai/85 Elipses/79 Enquanto me Amas/77 Escuta/16 Estática/30 Eu não sei/64 Fermentos/82 Folhas/39 Forças/75 Girassóis/42 Hospital/40 Imaginação/57 Incógnita/27 Inconsciência/57 Indo/48 Instabilidade/89 Inverno/30 Inverossímil/63 Joãos/41 Juntos/14 Lenda da Geada/72 Lua Cheia/62 Lua Nova/29 Lume/65 Meneios/33 Metamorfose/24 Milagres/49 Milonga da Rendição/84 Moleque Engraxate/32 Monólogo/79 Morte Natural/37 Mulher – I/14 Mulher – II/62 Mutante/74 Na Tarde do Sábado/13 Na Trave/88 Nenhum por Nós/87 Ninguém/37 No Espelho/76 O Direito de Estar Só/58 Oferta/15 O Passeio/47 Oração do Aflito/86 Passante/84 Pedido/51 Perspectiva/94 Pescaria/12 Pingos de Céu/66 Poesia em Preto e Branco/60 Ponto e Vírgula/54 Prefácio/5 Projeto/26 Prostituta/17 Quem é Cristo?/21 Rancor/16 Recomeçar/93 Reflexo/92 Regaço/16 Regras do Agora/20 Réquiem para Ezolda/52 Retrato do Avesso/90 Rota/71 Seixos/43 Singular/46 Sinto que Estou Só/18 Sobre Mim/45 Sol Posto/59 Stress/21 Teimosia/86 Títeres/64 Transmutação/38 Um Sopro de Vida Apenas/11 Unidade/81 Ventos Gaúchos/39 Visão/23 Itagiba José