sábado, 14 de dezembro de 2019

QUEM SABE, AMANHÃ


Haverá de chegar o amanhã voltado
para um quase simples quem sabe,
sem retórica, sem que se acabe
no limbo da trajetória, embolorado
no amargo gosto do amargo
curtido no fel do “a lo largo”...

Como um quem sabe, partiste
turvando de dor, meu adiante,
tatuando no além do triste
um amanhã sem durante.

Quem sabe meu quem sabe de ar
realize-se n'outro, quase desperto
como os sonhos, de olhos abertos,
que em mim teimam brotar!

Quero a fragilidade do agora
expulsa do meu dia a dia
vindo ela a ser fortalecida
pelos legados do outrora.

Porque o quem sabe, bem sei
virá vestido de quero mais
amanhã, logo adiante, é a lei
de quem não se entrega, jamais!

sexta-feira, 8 de novembro de 2019

BUQUÊS


Distraído, olhava o mapa do Brasil e o comparava
A um buquê de flores, de rosas mais precisamente,
Dessa bela visão que, mais que tanto, me encantava
Senti o perfume, sorvi o mel, desenfreadamente.

Da análise da obra de arte, o ramalhete desenhado,
Sem dificuldades encontrei na base, a empunhadura
Desse fiel esteio de força, segurança, meu Estado
Nascente gaúcha, brio, brasilidade e toda bravura.

Integrante da arte posta no mapa e réplica menor,
O belo "buquezinho", certamente de flor de maricá
Que em fevereiro anuncia inverno ao derredor,
De frio fraco, mediano ou outro que enregelará.

Tendo sido auxiliada pelo homem, a natureza,
No desenho dos mapas do Brasil e do gaúcho,
Como se desde sempre escrito e com certeza,
Ofertou-nos dois buquês de flores, um luxo!

É claro, o Brasil, nem mesmo seu povo, é perfeito,
Supera entanto os macetes, diferenças, sem alarde
Passa por cima do idiotismo de fanáticos trejeitos,
Do malcheiroso ódio ao ralo sujo do já se vai tarde.

Pouco ou nada importam esses idiotas, garatujas,
Liberto da corrupção o Brasil, sem macunaímas,
Em paz, haverá de enterrar no lixo a roupa suja
E os sujos todos à cadeia, limpando suas latrinas...

sábado, 26 de outubro de 2019

BOLHAS DE SABÃO


Bolhas de sabão sopradas pelo outrora,
frágeis, versáteis, explodindo no agora,
são como palavras embaladas em ventos,
com nexo, causa e efeito no limo da hora.

Volúveis, insolúveis retém encantamento
da unidade do tempo chamada momento.

Ao reverberar palavras d'alma à boca
no significado pleno da vida, tão pouca,
faz-se a intensidade febril de amantes
que, mesmo ausentes, se tornam presentes.

Ainda que se destrua em fúria deslocada,
sobrando nada além da palavra destravada,
ainda assim sobreviverá o sentimento,
como bolhas de sabão ao sabor do vento,
como a unidade do tempo, o momento...

SEM SAÍDA


Quebrei as amarras da vida craseada
às cancelas de mim,às correias do sido,
amarelecido, partido, perdido,
sem paisagem ou ruído, destruído
no borbulhar de uma taça sem graça.
Nos toscos degraus do agora, a espera
que cansou de ser só espera, após
disfarçar-se de sonhos e mágicas,
virou a página para um novo só!
Enquanto isso se passa, contratempo,
o tempo escorrega no limo da pedra,
indo do vazio à escuridão onde medra
mais do meu, um tanto do teu, nada!
... o meio-fio, parece, intransponível
e todo sorriso se torna impossível ...

sábado, 19 de outubro de 2019

IVO RODRIGUES-O MARQUETEIRO DA VIDA FÁCIL


O pai do moleque era barbeiro e ele desde os sete anos engraxava os calçados (botas, sapatos, etc.) dos clientes e amigos que frequentavam a Barbearia; olha que o moleque não era tão ruim exercitando a honrosa profissão de engraxate, saindo-se mais ou menos, ainda que a detestasse (a ponto de, adulto, nunca mais engraxar nem mesmo seus próprios calçados, dizem que por invencível, ou inconcebível, trauma! - assim, com ponto de exclamação, mesmo.).

Além de barbeiro, o pai do moleque adorava música, praticando-a através do cavaquinho, instrumento que tocava com uma certa dose de virtuosismo, claro que nem perto do mestre Miguel “Dedo de Ouro”, apelido que dizia tudo sobre o virtuosismo e performance no violão de todas as cordas, seis, sete, doze ou quantas mais viessem (exceto piano que se tivesse tentado tocar teria sido um prodígio), viola caipira, chilena, argentina, paraguaia, francesa, portuguesa, etc., etc., etc.

À época, durante a semana, mais precisamente de segundas às sextas-feiras a barbearia tinha um “movimento” pequeno, se considerado o “movimento” de sábado quando, desde a manhã por volta do raiar das dez ou onze horas, se formava um entra e sai contínuo de clientes para se “afeitar” (fazer a barba e untar o rosto com loção “pós barba” sendo a preferida na época a “Acqua Velva”), cortar os cabelos e fixar o penteado com “Gomina” (produto argentino, similar a “Brilhantina” que deixava a “melena” lustrosa e grudada no couro cabeludo, n’um efeito marcante de elegância e brilho), enfim realizar todo o tipo de serviços próprios à barbearia de então, inclusive cortar o cabelo.

Os modelos de corte de cabelo eram (como são) vários, desde “passar a máquina zero” em toda a cabeça ou parte dela (quando se deixava apenas uma pequena franja à frente, a famosa “lambida” ou ainda quando se cortava as partes laterais da cabeça, deixando um “topo” de cabelo, uniforme, da testa à nuca, de um centímetro de altura, o famoso corte “escovinha”) até fazer apenas aparas com ou sem profundidade (para deixar o corte dito “cheio” no primeiro caso, ou para deixá-lo à pequena altura de 0,5 ou 1 cm, dito “baixinho”), pelo corte à tesoura, uniformizando fios renitentes aos demais que compunham cuidadoso e elegante penteado portado pelos moçoilos de então, formando a famosa “melena” supra referenciada que por efeitos do penteado e da “Gomina”, era “abotoada” na nuca (quando os cabelos do centro e dos lados, esquerdo e direito “se “encontravam” à base da nuca, “fechando” com esmero e elegantemente o penteado).

Claro que também por tudo isso as atividades do moleque eram exponencialmente aumentadas aos sábados; a azáfama iniciava-se pela manhã, por volta das 09:00 horas, indo com invulgar intensidade até a noite, por volta das 21:00 horas, quando começava a queda do movimento, chegando a zero. Nessa altura, lá, já estava a “Turma da Seresta”, formada por vários amigos do barbeiro, que “marcavam ponto” a partir dessa hora, munidos de seus instrumentos musicais, porquanto ao encerramento das atividades da barbearia, com muitos acordes e “tiradas musicais” – improvisos que davam arranjos diferentes às canções, todos se dirigiam ao bar/boteco/restaurante “Biscates da Pampa” de propriedade do “Seu” Torquato Pinto, o “Cambota” – porque tinha as pernas tortas, “formando um arco por onde passavam dois cachorros brigando sem tocarem em nenhuma delas” como diziam os “gozadores” de então - e que, quase sempre fechava seu “estabelecimento” para, juntamente com Damázio, este munido de sua gaita-ponto, “La Gaitita” como chamava seu instrumento que, ao tocá-lo principalmente inolvidáveis tangos, também e quase sempre a famosa “Suco-Suco”, extraía um som muito parecido com um bandoneon, juntarem-se à “comparsa” de seresteiros.

No estabelecimento do Cambota que era mais propriamente um boteco dos “bravos” do que outra coisa à Turma de Seresteiros, na preparação física à noite de serestas, se alimentavam “beliscando” a única “iguaria” oferecida pelo boteco, isto é, ovos de galinha cozidos, mantidos sabe-se lá desde quando, acondicionados na “salmora” (água muito salgada), em recipiente alojado sobre o balcão e, enquanto “aqueciam” voz, cérebro, mãos, dedos, garganta, estomago, fígado, pulmão e adjacências, cantarolavam e bebiam (sabe-se lá a ordem que seguiam, se era de primeiro cantarolar e depois beber ou vice-versa, ou, ainda, cantarolar e beber, ao mesmo tempo sendo essa, talvez, a mais comumente usada).

Além dos ovos escurecidos ou de um branco encardido, quase cinza, cor que também predominava na gema, de um amarelo quase desmaiado, os sempre alegres parceiros tomavam goles e goles de “aperitivos”, a “marvada” cachaça Praianinha; bebidas mais sofisticadas como o “Gin Fiz” (Gin com água tônica ou soda e, sempre, com rodelas de limão), o “Ron Montilla” puro, sem mistura e outras mais caras e chiques como whisky (que ninguém sabia a marca ou procedência, nunca da Escócia, quase sempre da “Vila Júlia” – bairro afastado do centro de Uruguaiana) e, exceto o vinho normalmente tinto e também sem marca ou sinal, orellano pois não, servido em copos e a cerveja ou Brahma como a chamavam, as demais bebidas citadas eram ingeridas, além de puras, misturadas com soda, ou água tônica, ou refrigerantes ou limão e gelo, muito gelo, muito falatório, muita cantoria e, claro, muita algazarra.

Todos bebiam de forma mais ou menos moderada, nem muito que os deixassem totalmente bêbados, nem pouco que os deixassem inteiramente sóbrios, todavia, sempre em doses que os deixassem alegres e predispostos a atravessar a noite “soltando a voz” e “esmerilhando” os instrumentos pelas ruas, praças e janelas da cidade.

Em meio a tudo isso sobressaía o som da algaravia decorrente. À serenata todos marchariam logo adiante à galope e as ruas se encheriam de som e música sob a noite, criança recém nascida ao luar ou não, pouco importava e inteiramente à mercê do pandeiro de Geada, do som do ritmista Charanga, da Gaita-piano do Anadir ou a do irmão dele, o Dino Pires, dos cavacos do Barbeiro e do Beijo que também tocava e bem o banjo, o violão do virtuose Miguel “Dedo de Ouro”, da voz de barítono do Evaristo “Lambe-Lambe” e tantos outros que esporadicamente faziam parte daquela banda de Seresteiros fanfarrões...

De muitas dessas incríveis serenatas das noites de sábado, madrugada e amanhecer do domingo, também participou o moleque meramente por acompanhá-las junto com seu pai, o Barbeiro do Cavaco” (mais para vigiá-lo, em nome da mãe, que nunca conseguiu arrancar qualquer inconfidência do moleque – aliás, como aprendeu desde então, os homens são unidos, muito unidos e por isso, mesmo sendo as mulheres muito mais inteligentes que eles, todavia muito desunidas, para tristeza e infeliz perda à civilização, não dominam o mundo que, se tal acontecesse, seria infinitamente melhor, transformadas que seriam todas as casas em lares e o mundo, por isso e perenemente, o maior dos lares – e, como asseverado por poetas e filósofos: “Casas é comum se ter, todavia, Lar, certamente, imprescindível a Mulher (ambos, merecidamente como letras maiúsculas) pois é ela, coluna e viga de sustentação, que o forma, alimenta e o mantém em pé, como também o faz com relação a família, a educação dos filhos... O homem só entra com a estampa nisso tudo, emprestando à parceria uma luz que nem é dele porque, na verdade, tudo vem dela. Sem a mulher não há lar e sem lar, fica quase impossível forjar princípios sadios, respeito, caráter, afeto, amor, amizade e tudo o mais que enobrece o ser humano”.

A seresta terminava, quase sempre e raras vezes não foi assim, às portas do Cabaré do Ivo ou “Penha” (apelido do dono) onde os seresteiros ingressavam dando fecho de ouro à serenata... O Moleque, então, era impedido de entrar pelo próprio Ivo que sentenciava entre sorrisos de todos inclusive dele e a seriedade só do Moleque: “...Tu não Gulizinho!... Tu não!” (expressão que era pela primeira vez ouvida pelo Moleque; tal “Tu, não!”, seria ouvido pelo moleque muito tempo depois e inicialmente teve como resultado um bulling de curta duração que foi revertido em favor dos interesses do moleque, mas isso já é uma outra história e objeto específico de outro continho). Esse “Tu, não Gulizinho!” (Com dificuldades de dicção, Ivo sempre trocava o "r" pelo "l"), vindo do personagem Ivo e no local onde aconteceu muitas e muitas vezes, para os guris amigos do moleque, funcionava em seu favor como especial e inédito atestado de “experiência” precoce e objeto de admiração. Assim aconteceu durante muito tempo para o Moleque, ele ficava lá fora à espera do pai e, por que não dizer, dos amigos do pai...

Agora, o que interessa mesmo é a história de Ivo Rodrigues, homossexual famoso e, mais do que isso na opinião de praticamente todos os que o conheceram ou acompanharam sua atuação, um marqueteiro pioneiro e intuitivo que, sem jamais ter estudado, um quase analfabeto que desconhecia até o valor das notas de dinheiro, foi grande estilista nos designes mobiliários criados e, além disso, realizou geniais lances de marketing e à área dos bordéis, cabarés e motéis (que sequer existiam na época, sendo que o máximo ou mais próximo disso, era o rendezvous (palavra francesa que designava lugar de encontro amorosos para casais de amantes), com simplicidade e objetividade desenhou, imantou e conduziu terceiros a participarem ou se sentirem atraídos não apenas ao glamour do que se apelidou de “vida fácil”, com suas boates, pensões de mulheres (nem sempre tão glamourosas, entretanto “vendidas” e vestidas de misteriosa e diáfana aura), cabarés, plenos de esplendor e luzes da ribalta enfim e principalmente de sua própria base, onde atuava, administrava e resplandecia em sua homossexualidade, nem tudo visando o lucro senão um savoir faire (saber fazer, em tradução literal), um bem viver para si e os demais que dele dependiam, com ele conviviam ou terceiros como os despossuídos de sempre, os descamisados, desse sofrido País, aos quais adiante, alimentaria, normalmente aos sábados, distribuindo o famoso e infindável “sopão”.

Ivo Rodrigues era natural de Maçambará, distrito do interior de Itaqui, cidade gaúcha, fronteiriça e onde, também, o Brasil faz divisa com a Argentina, ali representada pela cidade de Alvear, na Província de Corrientes. Desde a infância demonstrava trejeitos efeminados que passavam despercebidos aos seus pais, trabalhadores rurais que eram e que, fruto de imensurável esforço e agruras enfrentadas, conseguiram montar uma granja, comercializando animais “de corte” como galinhas, porcos e produtos hortigranjeiros, como hortaliças, grãos e frutas. O trabalho árduo que o casal desenvolvia retirou condições de um melhor acompanhamento e cuidado com o filho varão cujos trejeitos femininos foram tomando forma continuadamente, confundindo o portador quanto ao gênero e origem e lhe trazendo inclinações e práticas homossexuais com uma naturalidade sem pejo, estarrecedora ao mundo, viés e formação machista da região.

Em uma data qualquer, quando o infeliz menino Ivo tinha 15 anos de idade, aproximadamente, seu pai o flagrou em conúbio carnal com parceiro empregado de seu pai, ele na condição de homossexual passivo e sem maior delonga, expulsou o filho de casa embora a contrariedade da mãe, o que de nada adiantou, nem conseguiria para impedir a execução daquela sentença; o pai deu para Ivo dinheiro suficiente para que pudesse viajar para o mais longe dali e alimentar-se durante algum tempo...

Ao fim e ao cabo, Ivo Rodrigues, agora e assim, fora despejado do mundo que conhecia e teria que, sabe-se lá como, enfrentar um mundo desconhecido contando apenas consigo e sua própria coragem, nada mais do que isso!
Sem destino o guri expulso de casa, agora um apátrida de lar, solitário e confuso se viu sentado em um banco de madeira, duro, da Gare da estação Ferroviária de Itaqui, como um “Pedro Pedreiro” (letra e música de Chico Buarque de Holanda) esperando, esperando um trem “...que não vem...” e ali chorou o pranto da desditosa sina de perder tudo para o preconceito do pai, sem dolo ou culpa sua, nem deste eis que súdito de uma era extremada de machismo exacerbado.

Lá pelas tantas descobriu que o próximo trem a sair tinha como destino Uruguaiana e o valor da passagem era de apenas uns tostões furados (como era bom e barato o transporte ferroviário, depois abandonado por incautos que fizeram muito mal ao País, inebriados pelo canto de sereias, digo, de estradas asfaltadas, da combustão do petróleo, da triste poluição e fuligem de desavisados e espertalhões); Ivo sabia que tinha de economizar tudo quanto fosse possível porquanto não sabia quando, e se, poderia ganhar “algum”, adiante e, também por isso, afora o fato de Uruguaiana ser a cidade polo daquela região, comprou passagem e aguardou a saída do trem que o levaria para lá (coisa jocosa, para não dizer peculiar, por falta de espaço às manobras, o trem se entrava na estação de Itaqui de frente saía de ré, se de ré, saía de frente; tal fato, pós Ivo, era maldosamente relacionado com sua homossexualidade).

Chegando àquela pacata cidade de Uruguaiana de então, fronteira do Brasil com a Argentina teve o privilégio de ser adotado pela “Tia” Vestina, dona de um modesto bordel na “Zona” do Meretrício, incrustada na beira do Rio Uruguai, quase dentro do riacho (acidente geográfico transitório que, nas enchentes, formava uma ilha que logo adiante desapareceria quando as água do rio voltavam ao normal). Detentor de criatividade incomum, digna e possuída por “marqueteiros” do futuro, se consideradas as décadas “40 e 50” quando tudo iniciou, pela mão e concessão da “Tia”, Ivo iniciou sua trajetória ascendente rumo ao estrelato no mettier abraçado ... Logo em seguida devolveu à bondade da Tia apresentando invulgar ascensão de lucro aos “negócios” da mesma, doutrinando as estrelas “protagonistas” dos sonhos buscados pelos desavisados, na condução destes para além do prazer carnal/sexual, reverenciando antes a imaginação adubada etilicamente pelo consumo de bebidas, geometricamente aumentado pelos strip-tease fugazes e repetidos à exaustão como “entrada” antes da consumação do “prato principal”, a atração final adrede preparada.

Inovando em outros quesitos, como em melhorar ou trocar colchões por novos e aconchegantes, roupas de cama limpas e perfumadas, diminuição da claridade irradiada de lâmpadas ou lampiões cujo foco foi direcionado não mais direto, todavia oblíquo e mormacento como os olhares da “Capitu” (imortal personagem de “Dom Casmurro”, criação do também imortal Machado de Assis); deu pausa à música ao vivo interpretada pelo trio violão, gaita e pandeiro, introduzindo som mecânico trazido por “toca-discos” ou "eletrola" que reproduziam discos de vinil, de 33 até 78 rotações por minuto (rpm), gravações de grandes intérprete da época, como Francisco (Chico) Alves (o Rei da Voz), Orlando Silva (o Cantor das Multidões, maior “voz” brasileira de todos os tempos), Vicente Celestino (do inesquecível “O Ébrio”), Nelson Gonçalves (cantando canções de Adelino Moreira, como “A Volta do Boêmio”, com parceria do próprio Nelson, ou “Negue”, com Enzo de Almeida Passos), Carlos Galhardo, Ângela Maria (A Sapoti), Dalva de Oliveira (a maior cantora brasileira até que, adiante, surge Elis Regina e lhe toma o posto e, para sempre, eleita como tal), Marlene, Emilinha Borba, etc., etc...

O bem elaborado e meticuloso plano deu certo e trouxe a casa da “Tia” Vestina e, por que não, às demais “Casas da Zona”, a modernidade e uma crescente movimentação, nunca vista. O inestimável serviço prestado por Ivo lhe trouxe a gratidão maior e o reconhecimento de todas as “Casas” e, para ele, a ousadia de se iniciar como empresário da noite, montando um estabelecimento próprio, vinculado, claro, à “difícil vida fácil”, que não seria como as demais “Casas” exiladas, separadas, segregadas à periferia da cidade de Uruguaiana, todas instaladas na preconceituosamente denominada “Zona do Meretrício”. Ivo, investido de uma coragem e intrepidez própria do jovem que então era, enfrentou o arraigado preconceito existente, alugando vetusto imóvel localizado na então Avenida Aquidaban, agora Av. Flores da Cunha (em homenagem a um dos maiores, senão maior, mais importante e sério homem e político gaúcho do início do século XX), próximo à Praça Argentina, colado ou integrante da área central da cidade, mandando-o pintar de cor-de-rosa e, no frontispício, pintar o epíteto de “Casa Rosada”.

Una-se a localização da cidade, fronteira com Passo de Los Libres, na Argentina, mais o fluxo constante de argentinos e brasileiros para um lado e outro, com o nome do Palácio de Governo daquele Pais, em Buenos Aires, e chegamos ao ápice da “sacada” de Ivo, lembrando ainda que ambos os imóveis igualmente possuíam sacadas. Ivo, em golpe de mestre de marketing, instalou sua “Casa” ou “Boate”, a primeira fora, totalmente fora, da “Zona do Meretrício”, muita mais Evita do que Peron, uma Casa Rosada plena desses encantos e mistérios que só a noite abriga.

Dentro instalou móveis de fino acabamento e designer, luzes seletamente colocadas à produção de grandiosos, maliciosos, oníricos e voluptuosos efeitos visuais nos desenhos e poster colocados às paredes objetivando suntuosos afrodisíacos psicológicos, impensáveis àqueles a quem eram endereçados, principalmente quem não tivera contato com a literatura árabe sobre o assunto, ou, pelo menos com o “Kama Sutra” e outros monumentos à sedução, aos intangíveis segredos de práticas sexuais ornamentadas pela sutileza, curvas e achados, voluptuosos véus em discretos movimentos.

Tudo isso, entanto, era quase nada se comparado ao quarto principal da casa, ocupado pelo dono da mesma, Ivo Rodrigues, Paredes internas revestidas por espelhos, que também revestia o teto por inteiro, de forma que, de onde se olhasse, sempre estaria angulada a situação em movimento e todos os detalhes expostos. A cama, redonda, entrava em movimento circular ao toque sutil de um botão que acionava motor e equipamento que a fazia girar lentamente ou em compasso pouco mais intenso acompanhando ritmo musical, muitas vezes de canção erudita como valsas vienenses, dos Strauss, vinda de aparelho musical, "eletrola" instalado à cabeceira da cama no único local onde não tinha “bibelôs” que Ivo colecionava compulsivamente e que eram dispostos de forma equânime e organizada, a partir da cabeceira da cama por sobre todos os demais armários que circundavam o quarto; diga-se que tanto o objeto musical quanto os “bibelôs” compunham um quadro, tela, ornamento de inexcedível beleza que davam visível qualificação e harmonia ao quarto elevado assim, com seus demais componentes, à categoria de “monumento”.

Esse quarto, pintado de cor-de-rosa, com cama redonda em maioria de vezes coberta por colcha de cetim de cor vermelha tipo sangue arterial, lençóis e travesseiros de azul celeste, era uma das maiores atrações turísticas do conjunto todo a ponto de atrair visitantes dos mais diversos locais e origens para conhecê-lo.

Tapetes cheios de arabescos e desenhos eróticos, parecidos vindos diretos das “Mil e uma Noite”, com toques sutis da imensurável lábia e imaginação de Scharazade, cobriam com “fofura”, a ponto de encobrir pés e sapatos que o pisavam, no chão quase intacto do quarto de Ivo Rodrigues e, por que não, parecendo ter saído direto de alguma das peças teatrais do genial Nelson Rodrigues (que não era parente ou algum dia viria a conhecer Ivo). Sem sombra de dúvidas, tudo isso compunha um inusitado bailado e requinte da luxúria explícita em seu maior grau, esplendor e delicadeza.

Como já citado acima, para os argentinos, porém, diretos como explicita o “jo te quiero” deles, a maior atração estava no nome ou apelido como dizem os argentinos, dado por Ivo, estampado ao alto do imóvel “Casa Rosada” como é conhecido o imóvel sede do governo nacional argentino (como para nós era o Palácio do Catete na antiga capital federal, Rio de Janeiro, e agora o Palácio da Alvorada, em Brasília) e que Ivo esperta e inteligentemente reproduziu em seu estabelecimento, bem assim e sem grande esforço dá para reconhecer a genialidade e sutileza, dentre tantas outras, criadas pelo mestre Ivo Rodrigues, o “Marqueteiro da Vida Fácil”.

Embora tudo isso, do sucesso, argúcia, perspicácia do itaquiense Ivo Rodrigues em terras uruguaianenses, atração turística pelo quarto montado dentro de indizível futurismo, no mais moderno atrativo mercadológico copiado pelos motéis de nossos dias, pesquisa no Cartório Registro de Pessoas Naturais atesta que inexistem, desde dele, recém-nascidos do sexo masculino com o nome de Ivo; neste caso, pelo menos por este ângulo, tal nome é o mais absoluto e inquebrável tabu daquela região machista.

Aliás, Ivo era exímio e valente lutador, especialmente armado com um facão o que impunha respeito aos frequentadores de sua casa, mesmo perante àqueles que, como os fuzileiros navais, integrantes da Marinha e aquartelados na cidade (por ser fronteira) que se juntavam em no mínimo quatro para promoverem brigas e confusões, aos quais, sozinho, enfrentava e expulsava, melhor dizendo "botava para fora", aos trambolhões e sem cerimônia, incorporando atitudes que deveriam ser e eram comuns e próprias dos "machões" da cidade, ainda que, aparentemente, fosse frágil por ser homossexual.

Como logo adiante se repete, Ivo desfilava pelas ruas de Uruguaiana sempre trafegando aboletado dentro de um carro Rainha (carrruagem puxada por dois cavalos nela atrelados), conduzido por um profissional dito “carreiro”, acessando-se seu interior, pelos clientes (ou passageiros), através de “estribos”, alojados em um banco “estofado”, de três lugares protegido por uma extensão projetada de sua própria carroceria traseira formando um teto e em um outro banco situado à frente daquele, na boleia inferior e às costas do condutor; nestes passeios diários, Ivo vestia “chambres” coloridos (quase sempre rosa ou vermelho – sangue arterial), estampados, floridos, todos de cetim. Enquanto no cotidiano, trajava vestidos dos tipos "prèt à porter", "soirée", "coco chanel" e à noite, em meio às atividades de sua casa, envergava vestidos longos e/ou gala de cor escura, em maioria de vezes a cor preta, usando sapatos de saltos altíssimos, Luiz XV, o que lhe tornava mais alto e um tanto quanto mais composto fisicamente desde que, embora de compleição física “retaco-moderado”, era muito vaidoso. Também portava bolsas femininas, de couro, de variados modelos, e quase se banhava em inefáveis perfumes franceses adquiridos na Argentina ou como diziam, no outro lado, em Passo de Los Libres.

Outra, talvez sua característica mais importante, Ivo era de uma generosidade ímpar, bem como muito desapegado às coisas materiais (exceto, claro, à coleção de bibelôs à qual dedicava uma paixão quase mórbida).

Tampouco tinha inveja. Solícito, dividia tudo o que possuía e auxiliava todos que batiam a sua porta. Apoiava, inclusive à concorrência, não tendo sido poucas as mulheres, que antes pertenceram a sua casa de tolerância, no exercício pleno da prostituição (e quantas a exerceram por necessidade e tantos outros motivos que passam ao largo, muito longe, do moralismo falso que lhes imputam epítetos pecaminosos), tornaram-se, como ele, “empresárias da vida fácil”, montando suas próprias “casas”, como o fizeram as "Tias" Amélia, Florzinha, Gessi, Isolda, Marina, Suzana (ordem alfabética) e outras tantas que fogem à memória, que por ele foram iniciadas, apoiadas e que o mantinham como perene fonte de socorro material e imaterial, enfim, o amigo que se podia contar, sempre, como todos os AMIGOS deveriam ser (pessoas que mereçam ser assim chamadas, AMIGAS – e ainda têm muitos que são assim, acreditem!)...

Há que se escrever muito mais sobre as várias facetas desse personagem incrível, não apenas sua generosidade marcante, seu senso de oportunidade manifestado por vários movimentos como o de, diariamente, passear pela Uruguaiana de então a bordo de uma carro Rainha exibindo duas de sua “Damas da Noite” e, quando alguma estreante iniciaria seu périplo por sua Casa Rosada, a apresentava através do mesmo passeio, durante dias, mostrando-a com seu melhor sorriso, pose, picardia, de vestimenta provocante, colocada à sua frente, no banco anterior à boléia onde o “carreiro” Raul, quase sempre ele, realizava o vespertino passeio das 16:00 às 18:00hs de todos os dias da semana, raramente aos sábados e/ou domingos; também quando de seu aniversário, ocupando a Rádio Charrua, durante toda a tarde, com centenas de “dedicatórias” musicais dirigidas a ele por seus afetos, frequentadores de sua Casa, outras tantas agradecidas pessoas que ajudara e muito mais gente que um biógrafo, com recursos financeiros – no caso do moleque, a pesquisa é de memória, amadora, mesmo - haverá de quantificar, explorar o fascinante brilho de uma pessoa que enfrentou e driblou o preconceito sem jamais deixar de ser ela mesma, poderá àquele, ainda ir muito além, falando muito mais, trazendo novas nuanças e qualificações desse ser que passou deixando marcas e saudades aos tantos que o conheceram, amaram e respeitaram.

Ivo Rodrigues que nasceu com a alma cor-de-rosa viveu sua vida inteirinha revestido dessa mesma cor; hoje seus restos mortais repousam n'um jazigo, dos mais visitados, no Cemitério Municipal de Uruguaiana, pintado também com a cor de sua alma, cor-de-rosa!

quarta-feira, 9 de outubro de 2019

ADÃO "CAMURRA" - O JOÃO SEM MEDO


Nascera ali, na Rua Sete de Setembro, quase esquina com a José Garibaldi, p’ros lados das antenas da Rádio Charrua, na doce e amena cidade de Uruguaiana, a Sentinela avançada do Brasil. Desde guri foi demonstrando intrepidez e desassombro, a coragem dos fortes ainda que nem tanto fosse. Rapazote, pegou em armas participando das revoluções de 1923, 1924, 1925 e 1930 com grande destemor e valia, condecorado pela admiração de seus companheiros de armas. Foi contra o sanguinário e cruel Presidente Arthur Bernardes e dizia ter lutado em São Paulo quando aquele mandou explodir a cidade lá pelo meio da década de 20 (1920). Não era tenente, muito menos capitão, mas apoiou o "tenentismo", muito especialmente pela coragem daqueles jovens, que no episódio histórico conhecido como os "18 (dezoito) do Forte" (de Copacabana,Rio de Janeiro) desafiaram a morte enfrentando forças militares muito superiores, quase todos a encontrando nesse episódio.

Gostava de alardear que participara, junto com o que dizia, Grande e Corajoso Chimango, o Caudilho e General Flores de Cunha (um dos maiores, senão o maior gaúcho, na sua definição e que foi prefeito de Uruguaiana) contra às forças revolucionárias dos Maragatos liderados pelo famoso e corajoso General Honório Lemos, da não menos celebrada Batalha da Ponte do Ibirapuitã, lá pelos idos de junho de 1923. Somente não participou foi da Segunda Guerra Mundial porquanto teria sido recusado por ser, então, considerado velho para tanto. De qualquer forma jamais se recusou a lutar pelo que acreditava, nem teve medo de enfrentar de peito aberto o que lhe era oposto (sempre se ressalvando que era isso que alardeava aos quatros ventos).

O destemido, João Sem Medo se dizia forjado no aço, na beira ou dentro das labaredas incandescentes das batalhas tantas que vivenciara; relatava, com indisfarçável orgulho que, certa feita, gravemente ferido, com sua tropa quase derrotada, levantou-se do chão onde fora derrubado e bradando palavras desconexas, aos gritos, baioneta acoplada ao mosquetão sem munição, investiu contra uma plêiade de inimigos, desbaratando-os, abrindo enorme clareira nas hostes sendo seguido pelos demais companheiros que, quase derrotados, fizeram coro àquele ímpeto de coragem de João, refazendo, neles, o efeito encorajador, o estímulo que reverteria o embate, surpreenderia o inimigo antes certo da vitória e agora batendo em retirada; dessa temerária ação ou dali, daquele momento, vitorioso, foi cunhado o apelido que lhe servia de anúncio e fachada. Desde então, ao João acrescentaram o “Sem Medo” com o qual, dizia, morreria deixando como testamento um único desejo que tal fosse inscrito na “Campa” em que o corpo, finalmente, encontraria o repouso jamais encontrado naquela vida de lutas e batalhas, muitas vezes sem sequer saber o porquê daquilo, das ordens recebidas e, sempre, cumpridas sem pestanejar ou se perguntar sobre as mesmas... ordens de superiores devem ser cumpridas, dizia no seu íntimo, afã e constrição militarista.

Assim contava o João Sem Medo, ratificado pelos parceiros de balcão que, sob os efeitos da “Branquinha” dele sempre queriam ouvir mais e mais das tantas histórias que, jurava João, eram a mais pura das verdade não sabendo explicar como, em inúmeras vezes saíra ileso, ou pelo menos vivo, daqueles combates tão sangrentos quanto desatinados; quem sabe, dizia, ungido pelo deus das batalhas ou pelo maior de todos que certamente o escolhera à sobrevivência e para ser testemunha e arquivo vivo daqueles tempos heroicos de que participara...

E não fora tais tempos, todas as batalhas, perguntava afirmando com convicção e a respeito do estado gaúcho, o que teria sido deste pedaço de terra, dos confins do Brasil, emparedado de um lado pelos irmãos da banda de cima integrantes da república do “café-com-leite” e na banda de baixo, pelos “hermanos” uruguaios, argentinos (mais estes do que os outros) e, até, chilenos que desciam em horda dos Andes e da Patagônia, invadindo a Pampa brasileira até aos contrafortes de Santa Maria, pilhando o que e quem encontravam pela frente.

Contava ainda, com inusitado e persuasivo semblante que, de tudo o que passara, era de pasmar o fato de ter lutado duas vezes, uma contra, enfrentando seus seguidores e outra a favor ou ao lado do caudilho brasileiro-uruguaio (doble- chapa ou de dupla nacionalidade) Gomercindo Saraiva, homem de imensa coragem e destemor, que participou de inúmeras batalhas tanto no Brasil, quanto no Uruguai, tornando-se legendário, interagindo através delas, politicamente nos dois países. Dizem que, se a coisa ficava um tanto quanto pior para si em um dos países, ele se bandeava para o outro sem qualquer preconceito, lá se envolvendo em novas refregas até que... e assim sucessivamente, no dito de João, o que a história respectiva, confirma.

Agora velho, usado, quase acabado, ali, começando o dia pelo “Boteco do Emílio” (esquina da Sete de Setembro com a 14 de Julho) e visando fechar o périplo no “Boteco do Agripino Pé Curto”, ao cair da tarde, lá estava ele escorado ao balcão e cercado por ouvintes curiosos, com um “liso” (*) de cachaça à frente para ser entornado para dentro da goela, de uma só vez como lhe era de costume fazê-lo, foi flagrado pelo poeta que de imediato o consagrou no poema:

“CHARLA DE BALCÃO”

Escorado ao balcão
bate charla João
jogando trela pra fora
Carneando problemas
falquejando dilemas
no copo da hora.
Vai gastando bombachas,
botas, cuscos, guaiacas,
gineteando ilusões
pela pampa da vida.
Na visão destemida
é o senhor das ações!
E o dia assim passa
sem saber como, passa
“à lo largo” de João,
quase nada é sentido
pois o que faz sentido
é o copo na mão!” (**)

(*) Copo de + ou – 250ml -(**) Poema publicado no livro “DEIXEM-ME O AMANHÔ de Itagiba José.

Ao fim da tarde, como sempre no ritual de todas as horas, chegavam seus fiéis e mais inseparáveis parceiros de “trago”, Jorge, o “Aviador do Lixo” (cuja história ou passagem é objeto de outro continho) e Xiru Grilo, o “Bob Nelson da Sete” (***) que funcionavam individualmente como poderosos alter-egos de João, o incentivando a contar e recontar proezas, forçando sua memória, pinçando pontos antes realçados e agora esquecidos no relato da hora (diga-se que, sempre e a cada novo relato, eram acrescentados mais detalhes, devaneios e, quase certo, mais bravatas – que a cachaça ajudava a florescer). Após alguns “lisos”, irmanados, os três seguiam seu périplo até o “Boteco do Agripino Pé Curto” e dali em diante, dizem, ingressavam na noite, ainda pelo Boteco do Agripino agora travestido de casa de tolerância e arremedo de “bailanta” onde choravam gaita e violão, sob ritmos ditados pelo pandeiro, no alvoroço dos “chamamés”, polcas”, “arrasta-pés” e outros ditos galponeiros em meio às damas da noite (que, como e desde sempre, era uma criança, adorável criança!).

(***) Bob Nelson foi um cantor muito conhecido no interior gaúcho, que usava como estribilhos sons produzidos oralmente carregados de falsetes formando um quase assovio (do tipo, oleriutiii, oleriutiii). Xiru Grilo berrava em ruas e madrugadas da Sete de Setembro, onde morava, seu famoso grito a pleno pulmões “bibibibiorrurru, bibibibiorrurru”.

João Sem Medo foi mais uma dessas personagens que o moleque guardou na memória e que vez que outra voltam a circular e viver em sua lembrança com uma certa nostalgia mas, certamente, com a alegria de tê-los conhecidos e, no caso de João, participado, ainda que no ocaso da vida dele, ouvindo aquelas histórias que ele contava e interpretava com inusitado entusiasmo e vivacidade, a ponto de trazer ao moleque a esperança de, quem sabe, um dia e que fosse pelo menos por um dia, estar ou sentir-se vestido daquela coragem, pelo menos, para enfrentar combates que esse campo de batalhas chamado vida impõe a todo o ser humano; e nem precisava ganhar todas, bastaria ganhar algumas, empatar outras e, das derrotas poder retirar o sumo do aprendizado... só isso.

Parecia, ao moleque que João Sem Medo conseguira tudo isso e não ofendam a sua memória se o maldizerem apontando a cachaça como o sumo e canal por onde escorriam tais histórias; melhor pensar que a cachaça foi, tão somente, uma das chave que destravava lembranças do quanto João teria vivenciado, colaborando, ainda, com o romanceio tão necessário ao épico que todos gostariam de ter ou fazer de suas próprias jornadas. Que o grande João Sem Medo, viva eternizado não somente em suas bravatas, muito mais naquilo que todos reconheciam como suas marcas e sinais: a sadia coragem e a retidão de caráter! (Itagiba José)

sábado, 21 de setembro de 2019

PERCURSO


Então se deu
a imagem certa ilustrando
a despedida
para além das reticências
do quando de sua nova vida.

E compreendeu, tendo ciência
que do próprio fim
se faz o recomeço,
da própria perda
a lição do novo ganho
que forja estrelas
desde o seu próprio berço...

E logo adiante, buracos negros
de imensurável tamanho,
sem aviso ou apelo
sugarão estrelas
ao trânsito das derrotas...

Eis o início, eis o meio, eis a rota!

domingo, 8 de setembro de 2019

OUTRA DO MOLEQUE - DONA BONECA


Jamais o moleque soube o nome de batismo daquela vizinha; a conheceu como D. Boneca, mulher do “véio” Waldemar, não o do azar (na época circulava ditado que creditava à ocorrência de qualquer percalço ao Waldemar – “Azar do Waldemar!”, era a expressão corriqueira).

D. Boneca era daquelas pessoas que galvanizava às atenções de todos quer pelos ditos e comentários que amiúde espalhava, quer por sua, digamos, falta de erudição ou conhecimento sobre a maioria das coisas que tratava, o que não a impedia de dar seus “pitacos” sobre todo e qualquer assunto, pleno de convicções o que, se sabe, é apanágio dos ignorantes, com o devido perdão aos convictos.

Inegável, todavia, que não o fazia por mal, sim, pelo insano desejo de se demonstrar detentora de um brilho que certamente existia em sua imaginação e atrair terceiros ao mundo ideal que entendia viver, principalmente quando confrontava, sobre qualquer assunto ou comentário, seu amado esposo o “véio” Waldemar e dele, sempre, recebia total e entusiasmada aquiescência através daquele sonoro “Sim!” acompanhado de sorrisos, parceiros escancarados e leais. Waldemar era o “Senhor Concordino” por excelência, de uma cordialidade ímpar! Sóbrio e discreto, sempre!

Para melhor entender D. Boneca talvez baste saber da especial atenção, destinação, carinho até, que dedicava ao binóculo que possuía, um mágico aparelho que segundo ela trazia o longe para bem pertinho, ao alcance da mão e, com isso podia manipular o “longe”, ao seu bel prazer, colocando-o sob sua ótica, vontade e bem querer; também acreditava que, tal como o “longe”, a mágica contida no aparelho por ela manipulado, podia trazer até mesmo idos amores buscando-os, de novo, através de suas lentes e da fé, claro; seguidamente explicando, perguntava-se: se a fé removia montanhas, porque seu mágico binóculo não poderia remover entraves afetivos? trazê-los para bem pertinho para que fossem removidos pelas mãos, corações e a saudade dita doída, se transformasse, mais do que virtual, em inesgotável realização de eventos felizes e caros às pessoas, em especial aos enamorados? Acreditando piamente na “força benéfica” daquele binóculo, mal sabia que, dentro desse mundo, ilusória e inocentemente, compunha falácias e quimeras, todas harmonizadas com sonhos e metáforas... E quem pode atirar pedras ou não se deixar tocar pelo menos por um átimo de segundo diante dessa sutileza, dessa fuga em direção ao encantamento... Nesse sentido, certamente D. Boneca obtinha sucesso e distribuía luz, mesmo que advinda do fogo fátuo que emanava ...

Certo, também, que outra função, não tão nobre, era à sorrelfa exercida por aquele objeto, o binóculo; servia ele também para penetrar no âmago dos lares e intimidades dos vizinhos, à esquerda, à direita, à frente, à diagonal, aos fundos, sem preferência pela operadora, D. Boneca que, assim, sabia mais de todos do que de si própria e era portadora de novidades que em primeira mão e aos cochichos exarava ao pé de ouvidos sedentos de “fofocas”.

Foi através dele que D. Boneca “descobriu” que uma doença, encoberta pelo obsequioso silêncio da família, desfigurara o rosto do “seu” Danúbio. Ocorre que, então, o câncer era novidade entre as doenças e, na crendice dos incautos, era considerada flagelo enviado por Deus como castigo pelo comportamento do indigitado doente, que não trilhara por caminhos que Ele declarara correto, fazendo súcia com demônios... Assim, era comum esconderem a doença ou chamá-la por qualquer outro nome, menos nominá-la pelo que, de fato, era o seu, isto é, câncer. Afora isso, também por ser, então, sempre fatal era um atestado de óbito ambulante, com data de vencimento marcada para próximo.

Solícita, prestativa, sempre pronta a socorrer terceiros com seus abalizados conhecimentos D. Boneca buscou e dissertou aos familiares do doente sua teoria de possível cura; através de acurados estudos, certamente, notara que o câncer era um micróbio insaciável que, segundo a segundo, consumia a carne e tudo o mais do portador e isto estava bem claro no caso do “seu” Danúbio que já contava com um buraco escancarado na face esquerda e logo adiante o teria na direita, com o nariz e a boca como intermediários e assim por diante. Para sanar o problema, entendia e preconizava fosse o “buraco” preenchido por carne crua e fresca, inicialmente de gado que, acaso não resolvesse, deveria ser trocada por carne crua e fresca de ovelha, de galinha, ou de porco, ou quem sabe de preá, ou pela mistura de todas elas, ou ainda por outros tipos de carnes de animais fornecedores até encontrar àquela, do gosto e predileção do micróbio e que substituiria a do “seu” Danúbio que, assim não muito tempo depois por reação de seu próprio corpo, preencheria o buraco de sua face. E quando não foi assim, a culpa era do gosto seletivo do micróbio pela carne humana, nem quando misturaram todas as carnes em bife prensado e inútil ao desiderato...

Quanto ao micróbio, se não morresse empanturrado de carne animal, seria por indigestão ou cólica, comum a todos os gulosos ou angorrientos (Do ditado espanhol que vivia a repetir – e que aprendera com a tia do moleque, D. Eustáquia: “Todo angorriento, se muere corsiento” – versão literal: Todo guloso, morre de “caganeira” - cólica). Quanto ao mau cheiro exalado pelo repasto do micróbio, nada que um bom perfume, como o Amor Gaúcho (L’Amour Gauchô, para os cultos), não resolvesse. Enfim, o micróbio “comedor” não morreu, ao contrário, matou “seu” Danúbio, para ele, de carne apetitosa embora a idade; ou, quem sabe, o micróbio morreu junto ...

Paralelo a tudo isso, D. Boneca descobrindo mazelas e doenças de terceiros, com a inabalável fé dos predestinados a salvar o mundo, obrava no receituário de ervas, por exemplo indicando chá de malva para dente inchado, inflamado; chá de losna ou de boldo para o fígado (ou figo, como chamava); chá de barba de milho para a bexiga e os rins, também de pata de vaca; suco de limão puro, sem água ou açúcar, para mais de cento e setenta doenças; bife mal passado de fígado de gado e também suco de ameixa seca, para anemia; chá de laranjeira para dor de cabeça; bananas para câimbras ou dores musculares; como poderoso antídoto às infecções lavar a ferida com água de Cinamomo (planta que em Uruguaiana chamam de Paraíso, cujo preparo, ensinava: Macerar folhas da planta em água contida em um recipiente, até deixá-la com a cor verde e lavar a ferida; pegar outras folhas e colocá-las na chapa quente do fogão, até secá-las e, após, transformá-las em pó colocando-o sobre a ferida – funciona como “pó secante”, tendo o conjunto, alto poder de cura e cicatrização do ferimento); para os homens, um “tira perfume” infalível: esfregar a parte perfumada com folhas de cinamomo – era tiro, queda e adeus ao perfume delator ...

Além disso e como não podia deixar de ser D. Boneca ensinava ou discorria sobre “simpatias”, das mais diversas: para casamento, uma das mais difundidas era acender uma vela branca e vermelha (branca da paz, vermelha da paixão) ao pé de Santo Antônio, durante sete sextas-feiras, rezando ajoelhado, vestido de roupa clara e, se conhecida o nome da pessoa amada, declamar com fervor o nome da mesma uma dúzia de vezes; também àquela para mandar embora visita inoportuna, colocando atrás da porta uma vassoura virada; para se proteger de “agouros” ou “maus olhados”, saquinho amarrado de sal, carvão, alho, arruda e guiné, colocados também atrás da porta ou carregados em bolsos ou bolsas; evitar de andar de costas, mesmo por brincadeira, principalmente à noite pondo em risco a saúde e a vida da mãe; não dormir de braços cruzados para evitar que o anjo da guarda abandone o incauto e sobrevenha pesadelos durante o sono e infaustos acontecimentos nos dias seguintes; ao cruzar com gato preto, fazer o sinal da cruz normal três vezes e na mesma quantidade fazê-lo de forma diferente, de baixo para cima e da direita para a esquerda... e muito mais que o moleque não tinha memória tão aguçada, atenta ou esperta para guardar tudo!

Aliás, não foram poucas vezes em que o moleque, desaforado, metido, contradisse ou gargalhou acintosamente de afirmações que D. Boneca do alto de sua inesgotável sabedoria despejava sobre todo mundo, também por sobre sua paciente e mansa mãe que não reagia ao ouvir àquelas, em maioria de vezes, sandices ditas com a convicção de sempre. Incontáveis vezes foi o moleque motivo de queixa apresentada por D. Boneca à mãe dele, por fatos decorrentes de desrespeitosos comentários brincadeiras indevidas perante terceiros, enfim, um desaforado e malcriado que tinha que ser contido pelos pais porque assim, dali não podia se esperar grande coisa, “devendo se endireitar o pepino desde pequeno pena do bicho continuar torto pela vida inteira”... Não poucas vezes a mãe, repreendeu severamente o moleque, insistindo para que ele demonstrasse o respeito devido aos mais velhos, principalmente a uma pessoa tão boa e solícita quanto aquela vizinha, mesmo quando ela se atrapalhava ou exagerava em fantasiosas teorias e contos e, afinal de contas, ele não tinha nada que se meter em assuntos dos mais velhos mesmo se dele concordasse ou discordasse. O moleque aprenderia, mais tarde, o quanto o mundo necessita desses atrapalhados, ou melhor, cândidos e inocentes inofensivos, para não sucumbir às maldades dos poderosos, para esquecê-las, reprimi-las e continuar exercitando o sublime, o bem e a placidez do sonho, sem o pesadelo e grilhões do materialismo pagão, da falta de comiseração, misericórdia, humildade e perdão; não basta apenas ser ou muito menos, ter, eis que é preciso sonhar para ser feliz, apreendeu.

Certa feita, D. Boneca discorreu sobre o destino e escolha dos alimentos após ingressarem à boca do alimentando: disse que, os alimentos sólidos entravam à direita da “goela” (literalmente), enquanto os líquidos, à esquerda desta; quando um ou outro errava o caminho acontecia o inevitável congestionamento goelístico resultando no afogamento do indigitado alimentando. Por isso, necessário muito cuidado no “ingerimento” de alimentos, tentando dar aos líquidos o início e o final da alimentação enquanto no meio os alimentos sólidos que, acaso fossem mal endereçados, seriam auxiliados pelos alimentos líquidos ao menos no sentido de que seriam um tanto quanto mais escorreito, sem travar ou impedir a sequência alimentar. Alertava, porém, porque pequeno, escorregadio (muito mais quando untado de banha de porco) e travesso, para aquele que considerava o mais perigoso dos alimentos sólidos, o arroz, que “vivia” desviando seu endereçamento para o caminho dos alimentos líquidos, criando uma confusão que acabava com ele indo e parando no inóspito “goto”, refinado produtor de “afogação” banhada em lágrimas que iam direto para os olhos do infeliz afogado e que se localizava à esquerda (ou à direita, ou quem sabe ao centro, não sabia ao certo) da garganta de quem de frente a olha, uma espécie de “buraco sem fundo” das mazelas, curvas e incorreções dos labirintos da “goela” de todo e qualquer ser humano. Claro que o moleque ao ouvir tal pregação plena de uma insuspeitável convicção, irrompeu em gargalhadas consideradas ofensivas por D. Boneca que só não bateu nele porque era educada e não conseguiu pegá-lo ...

Bem assim era a incrível D. Boneca que ainda vive pelo menos na lembrança do moleque e muito mais teve de protagonismo na vida deste que, como uma das personagens de sua infância, ainda é conservada em sua memória afetiva que, pensa, ainda bem que não tem o inóspito e profundo “goto”, tampouco o voraz, angorriento, antropofágico e seletivo micróbio que devorou a face do “seu” Danúbio que, parece, foi o único ser humano que morreu de “bife na cara”!

sexta-feira, 3 de maio de 2019

QUEM SABE


Às vezes, nem sempre,
após retorno virtual ao passado,
passo direto, sem presente,
ao futuro que penso recheado
de amanhãs melhores dos que foram ontem
e bem além do que ainda é hoje;
neles sobrevivem, inocentes,
trapalhadas, os sonhos não realizados
como se possível fosse, perenemente
envoltos no desdobrar de acasos.
Acordo, porém, do impossível tido
dentro deste hoje envelhecido,só,
estando vendado, na escura mó
amolando cruciantes dores e saudades
esturricado do quase nada deste tudo ido.

E o amanhã será, ou não, nele se acabe
o curso do hoje que passar se atreve,
mais ainda, também o ontem, seus entraves,
rios, mares navegados, o curso breve
da vida e morte de nem se saber quem sabe!

segunda-feira, 15 de abril de 2019

UM ADEUSINHO, APENAS


Tchau!
Nem parece, mas faz muito, muito tempo
considerando-se apenas os anos,
desconsideradas traumas e urtigas,
contratempos e tuas birras,
dos desacertos aos desenganos.
Tchau!
Caso não entendas, é um tchauzinho ,
sem retorno ou possibilidade disso,
mais que o mito, mais que ouriço,
cansei de tudo, embora paciente,
meio a esmo entendi n'um repente
que serei mais feliz sozinho...

OUTRA DO MOLEQUE - QUERMESSE


Naquele fim de semana a Igreja São Miguel, da paróquia e bairro do mesmo nome (São Miguel) estava comemorando mais um aniversário e o Pároco, Padre Wiro Rauber, festeiro como ele só, promoveu grande festividade iniciando com missa às 18:00H de sexta-feira; no sábado, mais três missas, uma às 08:30H dedicada aos que levantavam cedo, outra às 11:00H aos nem tanto, reconhecidos “como preguiçosos” e a última às 18:00H; no domingo, mais uma vez, missas para os que levantavam cedo, para os “preguiçosos” e às 20:00H, uma missa especial, encerrando os festejos (pelo menos os canônicos, religiosos), oficiada pelo grande, generoso, paciente e sábio bispo de Uruguaiana, cria de Passo Fundo, Dom Luiz Felipe de Nadal (que todos os dias encerrava a programação da Rádio Charrua, com uma plácida predica, de Quietude, Perdão e Paz, finalizada por oração a Deus Pai, Filho e Espírito Santo, sem esquecer da nossa amada Mãe de Deus, a Virgem Maria, Mãe de Jesus).
Após a Santa Missa daquela sexta-feira, no grande pátio da igreja, junto a Casa Canônica, se iniciou a festa laica, que continuaria durante todo o fim de semana, chamada “Quermesse”, com várias “barracas” de jogos, brincadeiras e folguedos que, a seguir, relembramos alguns: Jogos, como os da “Pescaria”, em que o “pescador”, em posse de pseudo “caniço” tentava “pescar” um “peixe” enterrado na areia e que continha, ou não, um “prêmio”; o das “argolas ao gargalho” que consistia em jogar argolas de madeira em garrafas enterradas na areia, cujo rótulo indicava, ou não, o “prêmio”; o das “bolas de meia ao alvo” em que o “arremessador” tentava alvejar “patinhos” de metal que, intercalados por outros “animais” de metal, arrastados por uma engrenagem passavam à frente do “atirador” que a uma distância de cinco ou dez metros arremessava as bolsas de meia tentando atingi-los e quanto maior fosse o percentual de acertos, maior o “prêmio” a ser recebido; etc., etc. Saliente-se que para participar de qualquer um dos jogos, era necessário adquirir fichas, todas de preços módicos, custando poucos Cruzeiros (moeda de então) ou nem isso, centavos ou réis conforme o moleque (exemplo disso, um picolé custava quinhentos réis, ou cinquenta centavos; um copinho de "quentão", um Pila ou um Cruzeiro e assim por diante). Lógico, o moleque não tinha um centavo que fosse, por isso não participava ou exercia qualquer dos jogos à disposição de quem podia pagar por eles; certas coisas não mudam, nunca... O certo é que, mesmo assim, o moleque junto com outros guris iguais a ele, se divertia por estar ali “cuspindo” como se dizia de quem nada fazia.
Tinha mais diversão, porém, uma delas por exemplo era a “Barraca do Beijo Doce” em que se postavam meninas diante do balcão da barraca, carregando cestos cheios de pequenos papéis dobrados e o candidato ao “Beijinho Doce” sequiosos e cheios de esperanças tentavam a sorte, “no escuro”, para que fosse tal beijinho oferecido pela portadora do “cestinho”, sendo exposto ao fracasso total se no pequeno papel aberto estivesse escrito tão somente “tente de novo” ou “quem sabe na próxima”, ou ainda “obrigado por participar” e, um pouco menos frustrado, não muito, “pão de mel, beijinho mais doce não há”; deve haver sim, pensava o moleque sem ou com muito pouca sorte, porque o beijinho que ele queria era o da menina do cesto, sentir em sua face o róseo da suave maciez de pétalas de rosa que os lábios daquela deuzinha de porcelana prometia ou parecia ter...
Mal sabia o moleque que aquela quermesse seria a última que participaria, prestes a sair da cena de sua cidade o que mais queria era ter adquirido o direito de tentar a sorte, pelo menos na Barraca do Beijo Doce e disputar a primazia de, quem sabe, ganhar um beijinho doce da “Gatinha” menina que morava perto de sua casa e que, embevecido, via passar todos os dias para o colégio; naquela quermesse sentiu configurar-se a possibilidade disso mas, sem moedas para contar, bolso e riso vazio, não atingia nem o direito de, sequer arremessar uma “bola de meia” contra os “patinhos” de metal, ou uma tentativa que fosse, na “Pescaria”. Fugiu daquela barraca, foi p’rá baixo do alto falante da “rádio-poste” que atacava tocando músicas do Demetrius, do Sérgio Murilo e outros (como os grandes, Nelson Gonçalves, Cauby Peixoto e o maior deles, Orlando Silva “o cantor das multidões”) como “Corina, Corina” do primeiro e “Marcianita” do segundo, canções da época, com os intervalos entre uma e outra música, sendo preenchido pela voz grave do locutor (chamado speaker, então – oh, tupiniquins!) que lia as “Dedicatórias”: “Atenção ‘prenda’ de vestido vermelho com uma flor no cabelo, um admirador quer conhecê-la para compromisso sério e lhe dedica a música que segue”; “Atenção, guria de saia plissê ‘gris’* e blusa rosa, um admirador que sonha em namorá-la...” e assim, sucessiva e inocentemente transcorriam a quermesse, os jogos, as dedicatórias, as músicas...
(*cinza, em espanhol).
Adiante, o moleque, voltou à Barraca de Beijo só p’rá ver e sonhar com a “Gata”, mas ela não estava lá, pelo menos naquele momento, fora substituída pela “Toninha” uma belíssima e amada guria, estudante do Colégio Estadual Dom Hermeto, cujos encantos, em especial a meiguice e a candura inebriavam o moleque, detentor então da volubilidade de pássaros inocentes, românticos e sonhadores, nos adoráveis recreios, das inesquecíveis algaravias e luminosas tardes daquele eterno educandário (e ela jamais soube disso, que pena – p’rá ela, claro).
Pois bem e de novo, ele sentiu a dor da impotência financeira vivenciada naquela infância ou puberdade de poucas oportunidades, o que o arrastaria tentar mudar de sorte em lugar bem longe de sua amada cidade natal, dos seus amigos, dos seus pais e irmãos... Nunca mais viu, qualquer uma delas, fosse a “Gata”, fosse a “Toninha” que continuariam bem vivas, serelepes, saltitantes, lindas e puras na memória, imaginação, saudade e sonho do moleque e para muito além dele...
Fosse como fosse, aquela quermesse, como tantas outras lembranças, jamais passaria, e ficou na lembrança do moleque, estática e perene como as gurias, como a querida Igreja São Miguel, como o bom pároco e amigo Wiro Rauber, o “Padre Wiro” treinador dos times de futebol da Juventude Estudantil Católica, a JEC e da Juventude Operária Católica, a JOC, que tinha lá seus pendores e idiossincrasias com relação às beatas, todavia, era um “baita parceiro” de toda a gurizada.
Citando um exemplo disso, era o Padre Wiro que, ocupante do “carro rainha” do seu Raul, puxado pelo Solito e o Luar, passava na casa do moleque e de seu amigo/irmão Guirland, nas terças-feira em que tinha Sessão Legislativa para assistirem in locum e se divertirem, o mais correto, com o que chamava de “melhor programa humorístico da cidade”, que era protagonizado pela Câmara Municipal de Vereadores de Uruguaiana, especialmente no tal de “Pinga Fogo” quando os ilustríssimos senhores vereadores se digladiavam algumas poucas vezes com linguajar e polêmica empolada e muitas vezes desbotada de senso, risíveis e, em outras, cultuando o fraseado chulo das ruas e as agressões verbais inerentes, quase físicas, não fosse a turma do “deixa disso”, “p’rá que isso” e tal. Apesar de tudo, também ali pontificavam lideranças e expoentes da cultura uruguaianense, como o Vereador José Gomes de Souza (que seria nomeado prefeito biônico na época do regime militar porquanto a cidade fazia fronteira com a Argentina e, à época, através do distrito da Barra do Quaraí, hoje cidade emancipada, com o Uruguai, e por isso era considerada "área de segurança nacional") erudito, pernambucano da gema, político filiado à União Democrática Nacional – UDN (de Direita), dono da Farmácia Minerva, Professor de Ciências do Colégio Estadual Dom Hermeto; também, Mário Dino Papaléo, Vereador Presidente da Câmara, radialista da Rádio Charrua, e outros nem tão luminosos filiados a diversos partidos, como o Partido Trabalhista Brasileiro – PTB (de Esquerda), o Partido Libertador – PL (de Centro) e outros...
As quermesses, como a política, parecem, ficaram aprisionadas no tempo, aqueles quase inocentes tempos em que a maioria vivia sob outros parâmetros, com a ambição maior de, apenas, cultuar o melhor de si, sendo em outros, o que deles esperava... Infelizmente, exceto o tempo, tudo passa, também o moleque, às quermesses, àqueles políticos que poderiam até nem ser brilhantes, ou “salvadores da Pátria” mas por esta viviam, lutavam e não eram corruptos, exceto pelos sonhos que vendiam ou trocavam entre si!
Na quermesse da vida, muitas vezes faltou ao moleque a mesma mola propulsora que emperrou e não lhe deixou colher, na face, o beijinho doce daquelas gurias que nunca souberam o quanto ele queria ter sentido o gosto, parecendo, até, que foi Capiba, o grande mestre e compositor pernambucano, de memoráveis frevos, que vivenciou ou recebeu, via astral, o gosto amargo do inacabado sonho do beijinho doce jamais alcançado ao escrever e musicar o belíssimo poema “Maria Betânia” cuja letra, com tácita licença daquele, se oferece a seguir: “Maria Betânia/ tu és para mim a senhora do Engenho/ Em sonhos te vejo, Maria Betânia/ És tudo que eu tenho/ Quanta tristeza, sinto no peito/ Só em pensar que o meu amor está desfeito/ Maria Betânia te lembras ainda daquele São João/ As minhas palavras caíram bem dentro do teu coração/ Tu me olhavas, com emoção/ E sem querer, pus minha mão em tua mão/ Maria Betânia, tu sentes saudades de tudo, bem sei/ Porém, também sinto saudades do beijo que nunca te dei/ Beijo que vive, com esplendor/ Nos lábios meus, para aumentar a minha dor/ Maria Betânia, eu nunca pensei acabar tudo assim/ Por Deus eu te peço, Maria Betânia, tens pena de mim/ hoje confesso, com dissabor/ Que não sabia, nem conhecia o amor.” (esta canção foi gravada por vários intérpretes da MPB, inclusive pelo afinadíssimo Jessé em dueto com Nelson Gonçalves se somando ao belo arranjo, deu-lhe mais suavidade, encanto e refinamento).

terça-feira, 22 de janeiro de 2019

RESPOSTAS E DEFINIÇÕES DE MIM


Quando me perguntam como estou, respondo,
de pronto: "Melhor eu não aguento!..."
e arremato, "... Vejam a idade que tenho,
estou vivo, "são de lombo" e no mercado,
no sentido amplo, geral e irrestrito!
E, se melhorar, não estraga isso,
apenas me dá, disso, robusta prova e loa
de não ter limites ou ritos
para aguentar as coisas boas!”.

E, se perguntado for como me entendo,
ou o que penso que sou, respondo, com certeza:
“Sou fatalista* por definição,
otimista** por opção e realista*** por natureza!”.

(*) Muito pouca coisa ou nada posso alterar, tudo ou quase tudo está escrito, até mesmo como e quando morrerei.
(**) Estar e continuar vivendo é o quanto me basta. Até quando não sei, nem me interessa ou quero saber;
(***) Nos altos e baixo da vida tudo pode acontecer e só morto não tem problemas; estou vivo! Como é bom!)

AMPUTAÇÃO


Do avesso
Ao quase recomeço,
Daí em diante
Ao infinito
Quero extrair de mim os pedaços dela
Nem que seja à fórceps ou pior, assim,
Na violência, na amputação, no grito!
Chega de carregá-la
Na estampa e mentira de tê-la
Em mim, p’rá mim, por mim,
Chega! É o fim!
Do avesso ao avesso, começo, recomeço
Sem não, sem talvez, sem quem sabe, sem sim...
Vou tirá-la em definitivo do infinito de mim!

NA CORDA BAMBA


O imponderável habita franjas do acaso
Não tenhas pressa, nada temas!
Sem medo segui a vida e persiste
Entre e por sobre o alegre, o triste,
Na luz e sombra dos ocasos!
E chegarás sem pena e em breve
Ao seu final, ou recomeço,
Cobrando às frágeis falenas o preço
Desse indomado chamado inevitável
Que sem qualquer rubor se atreve
Bailar na corda bamba do inviável!

CICLONE



Ainda que agora te entendas um nada
- Não é o que parece-
Levanta-te da calçada, cresce,
Ergue-te, levanta a cabeça
Por menos que mereças
És o hoje para muita gente,
És por isso muito mais, presente
Que o futuro espera logo em frente.
Faça de ti o melhor que possas
Não se deixes cair nas coisas tortas
Em algum lugar alguém de ti precisa
Não te amofines e nem desanimes
A luta é de todos, de alguns a covardia
A vitória será tua, chegado o dia.