sábado, 5 de dezembro de 2020

NO ESCURO

Fraco, me submeto aos desvãos da vida / como um caracol, em eterna defensiva; / calado, assisto o desmantelar de sonhos / e a perversidade da dor da despedida. / A vida passa sem que o real dela se viva / e às tantas mudanças a que me proponho / não passam de viradas dos calendários / e assim sigo não caudal, mas caudatário. / Não me surpreendem mais tantas picuinhas / nem mais me irritam, somente me magoam,/ o que fiz, o que não fiz, às coisas minhas / machucam a mim, antes que em outros doam. / Fazer significante o que nem é significativo / verbalizar loucuras, tentar animar o inanimado / não torna nobre ou melhor qualquer objetivo / antes e novamente crucifica o crucificado. / Por que fazer do nada imensa tempestade? / use, para enaltecer o bem, tanta energia / e se cada um assim fizer, a humanidade, / haverá de realmente viver à luz do dia! ...

UTOPIA

Envergonhado com o que ocorria / escondeu-se o sol por entre sogas de desvalia / ali permanecendo até a vinda de outra estrela / envelhecida e tão amarelecida quanto ele / talvez com menos morte, quem sabe menos vida, / menos forte para que se pudesse de frente vê-la. / Envergonhado o sol, fazer ou mudar, nada podia / diante da ganância, cobiça, roubos, má liturgia / que nos homens explodia. Quem sabe o novo astro / clareasse idéias, purificasse ações e intenções / do que antigos homens e deuses deixaram rastros. / Enquanto isso, anoitecia, enquanto isso, morria / o último ser humano pleno de chagas e heresias, / no ritual, busca selvagem, da inatingível utopia... / / E, pasmem, Ulisses à Penélope jamais voltaria!

NÁUFRAGO

Venho e me coloco vestido de argumentos / Tu, despida, faz-me o contraponto no espanto / dos acalantos que de há muito se afastaram / até dos pensamentos; se de nada sei, desconto / no pranto que te banha, as pequenas gotículas / que se multiplicam em cachoeiras de lágrimas / distribuindo forças ao gaguejar das vírgulas. / Diante disso a lógica se desfaz em reticências / nas essências de corpóreas e imateriais curvas / e o sol brilha diante do insuspeitável etéreo / trazendo mais que luz aos meus olhos com raios / rasgando o entardecer dos meus mistérios / como se fossem refúgio ao meu final naufrágio.

AOS MEUS AMORES

Não quero, nem me deixem deixá-los mal, / Ninguém! / Ainda que eu fique, ou vá e como tal, / Aquém! / Importam-me meus amores, que eles sigam / Além! / Pois neles sou, por menos que o digam, / Alguém! /

FIM DE CAMINHO

Há uma insuperável distância entre o que deveria ter feito / e o que fiz; nem adiantam lamentos, tristezas, desculpas vãs / para preencher o vazio no peito, sem jeito de me dar por feliz, / de ser feliz, nos estrebuchados amanhãs de repetidos hoje, / ontem e, antes disso, para além do outrora, sem outro espaço / que não chorar o eterno agora que escapou dos meus braços. / É como, acaso o tempo dividido em sua unidade, momentos, / um a um escoando entre meus dedos lisos, escorregadios, / viessem a parar e eu andasse na corda bamba dos desvarios / e ainda assim não trouxesse de volta os que deixei ao relento / e nem soube o quanto eram importantes para mim, então / e para sempre! Para além das horas e muito além do céu / alguém depositou flores germinadas nestes sim e não / que usei bastante enquanto murchavam todas as quimeras, / essências belas desse quase tido que sequer vivenciei / trocadas por um punhado de encantos de perecível léu. / / E o que passou, se foi! ... E o que ficou, ... eu sei!

quarta-feira, 30 de setembro de 2020

DEBALDE

Ouço barulho de passos femininos na despetalada calçada do meu nada / e de novo, os sinto passando sem pausa, ou sutileza, ou pressentimento. / Apenas o toc-toc da batida dos saltos finos transmitem aos meus ouvidos / um nunca mais que teima em brincar de um esconde-esconde, sem sentido. / Do quase tido que nunca me abandonou, único flerte que não me abandona, / tatuando a pele com a desesperança e morte de sonhos que foram só meus / … e, quem sabe, e como acreditei e mais desejei, possam terem sido teus...! / Após o insensível ruído, de novo o silêncio retoma a cena e vem à tona, / não sei como ele explode tanto quanto o conhecido som do desalento / vestindo-se de solidão, íngreme estrada que se alimenta de tormentos. / Pequeno que sou, menor me sinto e, bem assim, muito menor eu fico / nesta modorrenta fase do nem sempre visto ou vivido, nem jamais dito, / calando a frase presa à garganta dessa infindável bruma em que me vejo, / ao relento das promessas vãs, agouro de pássaros, sem trinado ou solfejo / no horizonte impregnado dos fracassos produzidos por um idiota antigo / que teima em me mostrar como eu fui, como eu sou e o que eu fiz comigo!

sábado, 19 de setembro de 2020

ESTÁ ESCRITO

Dia virá que a bonanza se fará / E tudo igual / E por igual, se tornará/ Dia virá que o castigo passará / E radiante de luz / O sol à terra voltará/ A solidão do isolamento findará / E o sol da vida, / O amor, rebrilhará/ E como se fosse uma fênix* / A humanidade, desse inferno ressuscitará/ Livre da dor, do desamor, da desigualdade, de todo mal, do egoísmo,/ E toda será, plena de sonhos, de infinito, impregnada de iluminismo. **/ - - - - - - - - Dia virá que um de nós não virá / E acontecendo, nada de novo ocorrerá/ E tudo igual assim continuará, / Tudo haverá de ser no ser e assim será/ Livre da escravidão do ter que não estará / Nas lições que o bem ensinará/ E a humanidade na ciência e fé, assim somadas, ao seu destino retornará/ Como se fosse um bouquet de flores perfumadas em alegrias e sorrisos,/ Realizará, ratificará, se beneficiará da obra de Deus partejando paraísos. ------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------- (*) Fênix (s) s.f. (mit.) Ave fabulosa que durava muitos séculos e, queimada, renascia das próprias cinzas; (fig.) o que é único em seu gênero; pessoa de singular merecimento; (astron.) uma das constelações austrais. (Do lat. Phoenix). (Dicionário Brasileiro Zero Hora, Ed. RBS/ZH, 1984, Porto Alegre, Rs). (**) Iluminismo s.m. (fr. Illuminisme) 1. Movimento intelectual europeu do séc. XVIII, caracterizado pela defesa da ciência e a racionalidade crítica no questionamento filosófico (inicial maiúsc.). 2. Doutrina mística fundada na crença em uma iluminação interior, inspirada por Deus. (Dicionário Enciclopédico Ilustrado Veja Larousse, Ed.abril, São Paulo, 2006, 1ª Ed. brasileira, Volume 12, pág. 1348).

sábado, 5 de setembro de 2020

PLENITUDE

Cansei de viver no ontem, no futuro, no indizível / passando pelo hoje, quase imperceptível! / Quero viver o agora, o agora eu quero viver / intensa e unicamente mesmo que tenha de morrer / ou matar o antes, o depois e quem sabe o durante, / não importa, ressuscitar o eterno dos instantes, / viver plenamente o sublime sem medo, sombras / ocultas nas trevas e riscos do que me assombra, / sem me deixar cegar pela falsidade e o brilho / desse efêmero ter e da dor do passar e ir embora / acorrentado à contagem do escoar das horas!

COMENDO MELANCIA

Então parei, em meio à balburdia do meu dia a dia / Ouvi a melodia de um tango antigo, segurei na régua / O furacão impreciso, furioso, que sopra sem trégua / Do fundo da vida, pás do moinho chamado outrora / Que segue girando ironias nas franjas da desilusão, / Da ausência, da desesperança, dessa antiga solidão / Que traz tua imagem esculpida na canção sonora / Destravada, desenvolvida em repetição, labirintite / Do raspar de uma agulha sobre um LP quebrado / Golpeando minha existência que sem filtro ou tema / Se deixa bailar no girar de calcanhares, de teoremas, / No trôpego andar do trem das minhas esquisitices / Rumo à poeira dos tempos e deste silêncio pesado / Que ressoa pelo vento de uma manhã que não veio / Adormecida no ontem transformado em sementes / De esperas jamais germinadas e, ao fim e ao meio, / Naquela melancia, verde como se fosse um espelho / Do que viria logo adiante, findo o sumo vermelho / Sugado até a última gota, em um último repente / Do bandoneon com o fole em derradeiro lamento / Da inumerável canção que desabrocha momentos.

sábado, 8 de agosto de 2020

LIÇÕES DE PAI

Habita, existe em mim, / na alma, na imaginação, / frondosa figueira sem fim / ciente de quando é sim, / ciente de quando é não / e pra onde sempre corro / buscando-a em meu socorro, / não me escondo, me abrigo, / nela repondo, e eu consigo, / novas forças, fé, fortalezas, / na luta contra as fraquezas. / Como ensinou o meu pai / raízes fundas, caule ereto / a plenitude do que és / te manterão firme, reto, / por pior que seja o revés. / Como ensinou o meu pai / não basta ter fé sem coragem / nem ter coragem sem fé, / rio contar só com as margens / pra se purificar nos aguapés.* / E tanto mais ensinou meu pai, / valorar perdas ou ganhos / ambas, nos tornam humanos / ambas, nos medem o tamanho / e nossa inalterável** essência. / Um verdadeiro pai será lenho*** / da figueira erigida à palma**** / n'alma de cada um dos filhos, / fonte de luz, sem o brilho, / que lhes consagra a existência. /////////////////////////////////////////////////////////////////////////////////////////////////////////////////////////////////////////////////////////////////////////////////////////////////////////////////////////////////////////////////////// *Aguapé s.m. (tupi aqwa'pe) 1. Denom. Comum a vária plantas aquáticas...; muito cultivada como forragem e esp. para purificação de água. 2. Tapete formado pelo emaranhamento de plantas aquáticas na superfície das águas dos rios , lagos e pantanais. (Dicionário Enciclopédico Ilustrado Veja Larousse, Volume 1, pág. 67, Editora Abril, São Paulo, Brasil, 1ª edição brasileira, 2006). ** Inalterável adj.2g. 1. ... 2. Fig. Que nada pode perturbar, alterar; impassível. (Idem, Volume 12, pág.1361, idem, idem). *** Lenho s.m. (lat.lignum,i) 1. Bot Tecido vascular que sustenta as plantas...2.Tronco, madeiro.3.Infrm. ...navio... o sagrado ou santo lenho Loc.REL. à cruz de Cristo. (Idem,Volume 14, pág.1535, idem, idem). **** Palma s.m.(lat.palma,ae) 1. … 3. Fig. Grande êxito; triunfo. … 6... dar a palma loc.considerar alguém vencedor … (Idem, Volume 17, pág.1945, idem, idem).

quinta-feira, 16 de julho de 2020

PAUTA


E se tudo que acredito é verdade plena
E venha
O que não sei e acho seja apenas
Uma senha
Terá valido a pena e não será vã
A espera
Desse amanhã que, sei, virá amanhã
Senão, seguirei pautado por sonho
E quimera
Àquele preso na ilusão que o ponho,
Esta, exalando perfume que a consagre,
Como a magia plena de um milagre.

terça-feira, 14 de julho de 2020

LUZES E SOMBRAS


Na alvura da sombra sob a prata,
A lua se derrama por sobre a noite.
O encanto tingindo, dando cor à mata,
Espasmos cinzas morrem sob açoites.

De repente o silêncio tisnado de bronze
Irrompe em cores na fachada da elegia,
A luz se faz resplandecente e ao longe
A prata se despede, no clarear do dia.

Agora é, agora enxergo mais do que vejo,
Bem além de mares, rios e cordilheiras,
Meus olhos faróis de tudo, de mim mesmo,
Refletem imagens de minha vida inteira.

Não muito adiante, repetir-se-á, de novo
Uma outra sombra e, quem sabe, agora só
Vestida de escuridão, da serpente o ovo,
No emaranhado das amarras dos meus nós.

Tampouco sei se dessa vez virá o socorro
Que a luz do dia sem cegar me deixa ver
Mais do que vivo, muito mais que morro,
Nos mistérios e sombras do meu anoitecer.

terça-feira, 16 de junho de 2020

OUTRA DO MOLEQUE - ACIDENTE DE FOGO E QUEIMADURA


O Moleque nem terminara de almoçar e estava sendo chamado na frente de sua casa pelos amigos Guirland e Luiz Chaves (Linguiça para os íntimos), este um bom centro-médio, àquele desnecessário dizer de suas decantadas qualidades futebolísticas difundidas, analisadas e discutidas em outros contos; ambos amigos e vizinhos do Moleque, além de companheiros de vários times das redondezas. Aquele dia teria um confronto com o time da “Baixadinha”, la no campo da “Fazendinha” de propriedade do goleiro aposentado, Garcia, que defendera o arco do Esporte Clube Ferro Carril e, agora, montava um time de guris para participar de diversos torneios futuros.

O Moleque quase engoliu o talher de tão apressado para finalizar a refeição e correu desasado ao quarto para pegar sua chuteira, meia, calção, e lá se foi chispando, porta afora, estancando diante da mãe que o fitava com um certo ar de repreensão ou preocupação por tudo aquilo, pela pressa... nada que não pudesse ser desfeito pelo beijo na face, dado, um tapinha no ombro, dado, um não demoro mãe, falado e para finalizar, vou jogar bola e já volto... E lá se foi o serelepe, mais serelepe ainda, correndo para encontrar os amigos que já estavam a uns cem metros de distância!

Foi um jogão e muito especial porque ao fim e ao cabo golearam o time da “Baixadinha” por quatro a um, tomando esse um porque o grande goleiro Deca, o Parrudo (que depois jogaria no Grêmio FBP.Alegrense), resolveu “aceitar” uma bola defensável justificando depois dizendo que o jogo estava tão enfadonho, a bola não chegava nele, seu fardamento nem precisava ser lavado e os companheiros nem se lembravam que ele estava lá, por isso, para aparecer, resolveu deixar aquela entrar. Parrudo além de grandão, era um “baita do gozador”, e tornou o “frango” em proposital, mera vingança contra os que não deixaram nunca o outro time sequer levar perigo a sua goleira e, ele, não aparecera positivamente, por isso...

No jogo propriamente dito, quem “comeu” a bola foi Luiz Chaves, jogando à lá Didi (Valdir Pereira), o Princípe Etíope, das Copas do Mundo de 1958 e 1962, quando nosso futebol brasileiro foi Bi-Campeão Mundial; Luiz naquele dia exagerou no direito de bater na bola “de trivela”, fazer lançamentos milimétricos de 50 jardas, desarmar sem falta todo e quem quisesse chegar perto do gol do Parrudo e, com tão esplendorosa atuação ofuscou até o grande nome do time, Guirland, referência técnica a que todos “batiam continência”. Foi pela exuberante atuação de Linguiça, reconhecida por todos que o Moleque o indicou, ao Parrudo. como culpado pelo seu “sofrimento” entendendo muito convincente e aceitável a estória que contara para se safar de ser chamado, pelo menos por aquele dia, de “frangueiro”, acrescido agora de “faroleiro”; foi uma gargalhada geral, com Parrudo gritando para o Moleque “só não te bato porque sou teu amigo!”o que não impediu continuasse a gozação.

Por volta das dezessetes horas o Moleque chega em casa encontrando sua mãe na tina, lavando roupas já tendo algumas estendidas no “quarador”; como lhe era comum fazê-lo, o Moleque chegou nela dando-lhe curto abraço seguido de um beijo, tendo ela perguntado se estava bem, como se divertira com os amigos, essas coisas e, ao final, se ele queria tomar café pois o Gelcy, compadre e cunhado dele esposo da Mana Oca, deixara bolachas quentinhas (espécie de biscoito que em Porto Alegre, chamam de “vovó sentada” de aproximadamente 40 ou 50 gramas) da cor de café com leite como ele gostava. Mas era claro que sim, ainda mais considerando o “bucho sem fundo” daquele glutão que recém se esfalfara correndo mais que a bola e tinha fome, uma enorme fome, sempre. Então vou preparar teu café, disse-lhe a mãe, deixando os afazeres para depois; o Moleque a impediu com outro abraço, não precisa, eu mesmo faço … pelo menos deixe-me aquecer a água e qualquer coisa que eu não saiba, pedirei ajuda. A mãe então aquiesceu, entretanto disse-lhe para ter cuidado ao acender a “espiriteira” (espécie de fogareiro rústico, de metal, com trempe de três ferros que formam a base de sustentação e equilíbrio do receptáculo - chaleira, panela, etc, do que será aquecido - cujo combustível é o álcool que fica em reservatório próprio, disposto logo abaixo da trempe).

Entre a tina e a cozinha, estava a irmã caçula do Moleque, Edna Roselaine, que o Moleque apelidara e chamava (como até hoje) de “Branca”, então com não mais do que três meses de vida, deitada em uma “cadeira preguiçosa” (ou espreguiçadeira, como queiram) com a frente voltada para a mãe e a traseira voltada à porta da cozinha; ao passar por ela o Moleque lhe deu um beijo na testa, sacudiu o chocalho fazendo barulho, tendo com isso chamado a atenção da Fátima Eliane, sua outra Mana e de um dos seus inúmeros irmãos de criação, o “Panchito” (o terceiro Francisco que sua mãe adotara de fato, o primeiro foi naturalmente apelidado Chico, o segundo ficara Francisco mesmo, para este aplicou-se a corruptela espanhola para distingui-lo dos demais) que estavam jogando “Cinco Marias” (*) no pátio, à sombra, sob a janela da cozinha. Fátima Eliane por volta dos seis anos de idade, ainda gostava de ouvir o Moleque cantar para ela, só para ela, “A volta do Boêmio”, de Adelino Moreira e Nelson Gonçalvez que, sabe-se lá o porque disso, a acalmava desde quando do tamanho da Branca, choramingava, chorona que era, só se calando quando o Moleque “assassinava” a citada música). Abra-se pequeno parênteses para dizer que os nomes de Fátima Eliane e Edna Roselaine (assim como o de Paulo Rubimar, um dos amados filhos da Mana Oca e do Gelcy) foram escolhidos pela Mana Ezolda.

Após dar um beijo na Mana Fátima Eliane, prometendo após o café cantar a música preferida e dizer, para ambos que um dia ia ensiná-los a jogar “Cinco Marias” pois para isso era portador de técnica muito apurada (mentiroso) o Moleque entrou na cozinha cantarolando em alto e bom som, claro, “A volta do Boêmio”; muniu-se de fósforo, garrafa, quase cheia, de um litro de álcool e lá foi “acender” a “espiriteira”; antes de fazê-lo, porém, com cuidado observou se tinha combustível no reservatório e acreditou ter visto que realmente no dito existia álcool por isso acendeu o fósforo e o aproximou da “boca” daquele. Surpreendentemente para si, não ocorreu qualquer combustão, visível pelo menos, e a “espiriteira” permaneceu quase um minuto sem dar sinal de vida, ou fogo, “apagada” e o fósforo antes aceso quase queimava os dedos do Moleque. Por conclusão óbvia, faltou álcool, por isso teria que “botar” o combustível no reservatório; o Moleque pegou a garrafa de álcool e pela mesma “boca” por onde colocara o fósforo aceso e que esperava tivesse saído a chama azulada do álcool em combustão, derramou o líquido empinando a garrafa.

Após esse ato, o que sucedeu é indizível. Ao primeiro fósforo aceso certamente e embora muito pouco, o álcool contido no reservatório inflamara e ficara escondido no fundo dele, imperceptível, à socapa, à espera do ato seguinte do incauto Moleque; não deu outra, este agindo em claro e insuportável, para si, erro de percepção, não atuou como lhe haviam ensinado, negligenciou ao não tomar mais precauções do que já tomara, afinal com fogo não se brinca; pelo menos deveria ter chamado a mãe muito mais apta a tratar do assunto do que ele... enfim tudo isso aportou em sua mente depois, bem depois do ocorrido...

Infelizmente não foi assim que agiu o imprudente Moleque, agora apavorado enquanto o fogo adentrara pela garrafa quase cheia de álcool agora em labaredas ardendo em suas mãos. O que fazer? o que fazer? Jogar fora antes que exploda em mim, pensou e agiu com rapidez indo à janela esquecido que sob ela brincavam Fátima Eliane e Panchito; dá meia volta, ainda com a garrafa soltando chamas coloridas cada vez maiores e flamejantes, alucinado e cada vez mais apavorado corre à porta e se pensando um grande arremessador de garrafas em chamas, calcula, mede a distância da cadeira preguiçosa onde dorme a Mana Edna Roselaine, a caçula Branca, olha para a tina à esquerda dela onde, de costas, sua mãe ainda lavava e, joga à direita e para o mais longe que pode aquela apavorante garrafa quase cheia de álcool que mesmo sem um pavio qualquer agora estava cheia de um fogo azulado que não era fátuo!

O arremesso da garrafa, bem distante de todos foi um sucesso, com a garrafa aterrissando bem distante da mãe e da Branca, feito um foguete mal sucedido da Nasa sem quebrar derramando-se em fogo azulado na área de aterrissagem, todavia, parte do seu conteúdo líquido na trajetória, em chamas, fizera um semi-círculo de fogo lindo de ver até que, como se fosse uma estrela cadente, sob os efeitos da lei da gravidade deixou-se cair feito um rastro ardente queimando tudo por onde passou, inclusive e principalmente vencendo a barreira do espaldar da “preguiçosa” se despencou por sobre a cacula, Branca, queimando-lhe cabelos, testa, sobrancelha e pestanas, ou supercílios e cílios, mais o dorso da mão esquerda com queimadura um tanto quanto mais profunda e somente não foi mais abrangente porque fraldas e cobertores que a cobriam defenderam-na queimando em seu lugar.

Não dá para descrever exatamente como se gostaria a sequência de ocorrências daí em diante, o alvoroço, a gritaria, tudo em alta voltagem, nervosismo a flor da pele e uma letargia ou inanição própria desses momentos... tudo isso provocando a reação dos vizinhos que de imediato acorreram ao local, inclusive D. Boneca uma das primeiras a chegar, seguida da D. Ramona, D. Eva, grande Evinha mulher do “seu” Ramão Bombeiro, todos parentes do Luiz Chaves (mãe, cunhada e irmão dele); providência imediata era levar a criança ao hospital, logo veio um “chauffeur de praça” (**) conhecido do pai do moleque e depois eleito vereador, Caetano Brum, levando mãe, filha queimada e mais D. Boneca, claro. Não deixaram o Moleque ir, tendo ele ficado sob os cuidados da Mana Ezolda que, junto com Eva, o consolava com palavras de esperança dando-lhe forças, entendendo não haver qualquer culpa de sua parte, etc, mas nada disso adiantava para o Moleque que, dentro de si já se havia julgado mais pesadamente ao ouvir D. Boneca, do alto de seu pseudo conhecimento, mas com razão naquela hora, dizer da preocupação de que o fogo tornasse a pequena Branca cega; todo o resto doía. mas isso, a possibilidade de ter sido o agente da cegueira daquele pequeno ser que era sua mimada maninha caçula, doía muito mais, muito mais mesmo...

Dentre as pessoas que acorreram naquele momento crítico de sua vida, talvez quem foi mais eloquente, contundente foi a “Mãe Mocita”, aquela grande mulher, Negra Velha de Cabelos Brancos, que não lhe disse uma palavra, não evocou nenhuma divindade, nenhum santo e, com seu silêncio, foi mais eloquente que um raio de sol, aconchegando o Moleque em seu colo chorou mansamente e, vendo-a, sentindo-a assim, o Moleque por sua vez verteu com idêntica placidez lágrimas retidas em sua alma pelo infortúnio que causara, pelo que se culpava, ferindo não apenas sua indefesa Branca, também e por extensão a sua família e a todos.

Entretanto, para não fugir de sua natureza nem mesmo neste momento de intensa emoção ele não deixou de pensar nos ditos da Laide, sua querida tia, irmã de sua vó que, ao vê-lo querendo chorar por qualquer coisa que fosse de pronto lembrava-lhe que “Homem não chora! Homem só chora quando a mulher vai embora e, assim mesmo, de faceiro por isso” ... parecendo-lhe que “Mãe Mocita” lhe demonstrara que não era bem assim, contentando-se com o fato de ser um guri ainda e de, ali, quem sabe, dar início ao adulto que seria e, em lá chegando descobriria que o homem chora sim e não apenas quando a mulher vai embora e não apenas por faceirice, mas porque é um ser humano, uma pessoa com suas fraquezas, sonhos desfeitos, virtudes, defeitos, fracassos e feitos e, para se tornar melhor, um verdadeiro homem deve lutar sem abandonar a dignidade e o respeito à vida, pois sua grandeza reside no que disse o poeta, reportando-se a pessoa humana, nos versos que se ousa destacar e repetir agora:

“... Ascende-te ao firmamento, / porém não tentes esquecer / que na horizontal viveste e viverás / teus melhores momentos. / Anda ordenada / na desordenada devassidão / do deus social / não esqueças o bem / não penses no mal. / prove o tempero da distância / ou a ânsia da volta, / não lastimes a espera, / mantenhas o otimismo / pois o sal usado no batismo / dá a pureza / o usado na vida, o mérito. / Delicia-te com a doçura / do reencontro / ou do descobrimento … … não mudes porque as coisas mudam / e sim pela necessidade / pela procura da autenticidade. / Não sejas poliédrica, mantenhas uma face! / Tente sempre a perfeição / embora ela seja também, imperfeita / por não dar nenhuma chance / a qualquer de nós alcançá-la / Busque o amor sem explicá-lo / o perdão sem defini-lo. Se possível / busque o prazer de viver / Sem a passividade dos fracos, / com a vitalidade dos fortes, / todavia evite exageros / - os extremos são perigosos. / Se acreditares siga para o norte / apesar de te apontarem sul. / Ajudar a quem sofre é uma forma / de evitar a própria dor / mas se ela teimar em conviver em ti / abriga-a como uma dádiva / ela será a chuva que regará / o teu jardim, revigorará tua crença / e reflorescerá tuas cinzas ...” (excertos do Poema “Adeus” - poema poster -, do autor).

A primeira notícia vinda do Hospital de Caridade que se localizava então perto do Colégio Sant'ana, do Estádio Felisberto Fagundes Filho do E. C. Uruguaiana, para onde tinham levado a Branca, foi trazida pelo Padre Wiro Rauber amigo da família e especialmente do moleque a quem, junto com Guirland, todas às terças-feira os levava para juntos assistirem o que chamava de “melhor programa humorístico”, que era a sessão da Câmara Municipal de Vereadores, então presidida pelo abalizado radialista Mario Dino Papaléo; disse o Padre Wiro que Edna estava se recuperando bem embora o fogo tivesse atingido cílios e supercílios, testa, os parcos cabelinhos que tinha e, com mais profundidade a mão esquerda, em ferimento ou “queimado” que atingiu o dorso em sentido longitudinal, como se fosse um extenso corte de mais ou menos três milímetros de largura por mais ou menos trinta de extensão. Medicada, não devia demorar muito para voltar para casa. E foi o que aconteceu, sem demora.

Edna e os pais foram trazidos por veículo do hospital, vindo com eles a Freira Diretora que era ou assim se entendeu fosse, versada em Psicologia eis que de imediato se dirigiu diretamente ao Moleque, realizando pequena entrevista da qual, disse-o, resultou mais tranquila com o que, temia, pudesse ter-lhe atingido com maior gravidade do que aquilo que sucedera com Edna, isto é a reação do moleque e a possibilidade de que tudo isso resultasse em traumas. De novo e mais agora passado um distanciamento oportuno e esclarecedor, acredita-se que às sentidas e silenciosas lágrimas de “Mãe Mocita” que deflagraram às do Moleque, tenha trazido luz à escuridão que o estava envolvendo devolvendo-lhe à condição de criança, liberto da cruz da culpa e do arrependimento. À salutar preocupação da Irmã de Caridade com o Moleque, que foi dispensado de comparecimento de outra ou qualquer entrevista com ela que se convencera de que ele não sofrera um abalo superior àquele entendido como normal ao caso, resultou um emocionado agradecimento dos pais dele àquela digna e atenciosa representante dos profissionais da saúde.

Registre-se, por oportuno, que Edna ainda tem cicatriz da queimadura somente que agora adulta, maior do que a bonequinha que era, a natureza se ocupou em quase extingui-la e mudá-la estando hoje localizada no antebraço, bem próxima do cotovelo; os cílios e supercílios, mais os cabelos, todos voltaram ao normal bem como, na testa não há marcas que lembrem que um dia foi queimada por seu irmão, o Moleque...

Para finalizar, também registre-se que “Seu” Ramão, bombeiro, marido da estimada Eva, irmão do Luiz Chaves se naquele dia estivesse em casa e não de plantão no quartel dos heróis do fogo, como estava, possivelmente não teria acontecido tal fato porque ensinaria ao Moleque que bastaria ter tampado a garrafa e o fogo se extinguiria eis que, no caso específico, o que causou a combustão foi o oxigênio que, se consumiria rapidamente se tampada a garrafa. Sem oxigênio, não há fogo... Ah soubesse disso o Moleque, embora, fatalista, possa dizer o que muitos repetem, o que tem de ser, será!

GLOSSÁRIO
(*) Jogo “Cinco Marias”: Composto por cinco pequenas pedras que são jogadas para cima a uma distância relativamente pequena pela mão preferencial do jogador(destro ou canhoto) enquanto os dedos polegar e indicador da outra mão formam um arco - “ponte” - por onde as pedras serão empurradas à passagem; das pedras jogadas escolhe-se uma que será a “joga”, sempre aquela que se entende a mais dificil de fazer passar pela ou sob a “ponte”; feito isso, enquanto a “joga” é atirada ao alto, o jogador tenta passar uma das demais pedras sob a “ponte” sem poder tocar nas outras e pegando a “joga” antes dela cair ao chão, pena de, se errar, em qualquer dos casos, ceder a vez ao adversário, sem marcar pontos. (NA). (**) Denominação dada, em Uruguaiana, ao motorista de táxi: "Chauffeur", motorista em francês; "... de praça" porque o local onde estacionavam à espera de clientes-passareiros era nas praças (Barão do Rio Branco, Argentina, etc).

domingo, 14 de junho de 2020

REABASTECIMENTO


Às vezes necessito esconder-me nos bastidores
Para, escondido e de uma só vez, chorar as dores
Que como em todo o ser humano em mim desabam
Esmagando vaidades que em meu eu germinam
Como inço (*), aos outros aparecendo lúcido, tão forte,
Dono de impossível vivência de sempre saber meu norte...
Ali, caem máscara, pano e sou eu de novo pleno e fraco,
Estranhamente um nada em meio ao imensurável charco.
Daí, desse meio, mais frágil, só e em completo abandono
Defrontado comigo, com minha própria finitude, retomo
A certeza que está nos outros aquela fonte encantada,
Fértil moinho de forças e fé que acreditara esgotada.
Desse esconderijo descubro mais e muito mais descubro,
Não fui nem jamais serei só, embora tantos dias turvos
É nos outros que vivo cozendo trajetórias e contratos
Que marcam vidas para além da eternidade do abstrato...


(*)Inço s.m. RS Conjunto de ervas daninhas que infestam áreas cultivadas. (Dic. Enciclopédico Ilustr. Veja Larousse, Vol 12, 1ª Ed. Brasileira, Editora Abril, 2006, São Paulo).

sábado, 13 de junho de 2020

O QUE É DA ÁGUA...


Olhava uma gravura que despencou
De um calendário sem data ou rito,
Cena rural e a natureza a sangue frio
Falou-me do que fui e não mais sou,
Mais que em voz alta, além, aos gritos
Vociferou, desconectou meu desvario.

Choupana rústica, telhado de capim,
Córrego, ouço a acústica das águas
Passando sob o pontilhão de madeira,
Tudo simples como tudo fora em mim
E já não era, afogado pelas mágoas
Dos fracassos de uma vida inteira.

Perdi o que só eu tive e nem merecia
O ar que respirava, meu paraíso, ali,
A estultice cegou-me, o sonho feneceu
Sem ele, sem vida, sem o que seria,
Assassinei o que tive e o que não vivi
Em meio a estupidez desse tudo eu.

Quis mais quando tive tudo e não sabia,
Quis mais e tudo perdi e mais não tive
Entorpecido pelo fanatismo maleva
Quis o poder, do mundo toda riqueza.
Derrotado, que disso ninguém duvide:
Sempre, o que é da água, a água leva!

sexta-feira, 5 de junho de 2020

OUTRA DO MOLEQUE-Nascente, Sanga, Açude, D. Negra e Vizinhos


Bem maior do que um “olho d’água” como a chamavam, era uma nascente borbulhosa, possivelmente advinda de lençol ou lençóis freáticos (*), de muita água a ponto de, por caminhos subterrâneos, explodir em fonte de insecável poço que abastecia de límpida água potável, não apenas a família do Moleque como também a todos os vizinhos nos tempos de seca; dali, cerca de dez metros utilizando os mesmos caminhos subterrâneos, reaparecia ao início em forma de sanga (**) pelo menos para o Moleque, de mais ou menos três metros entre uma margem e outra até, quintuplicar-se, alargando-se e, ao mesmo tempo, como se fosse água represada, à formação de uma espécie de açude, cuja margem direita ornada de inúmeras plantas em especial, um taquaral, fazia fronteira ao pátio da casa da avó dele que se servia do açude como se sua piscina e pesqueiro particular fosse, para refrescar-se no verão e, em todas as estações, pescar os famosos muçuns para Tivico devolvê-los gostosos, fritos em banha de porco e crocantes, que saboreava com prazer e requinte (até aquele malfadado dia em que, por demorar conversando com Tivico enquanto ele limpava e fritava a iguaria observou que, quanto mais quente ficava a frigideira mais o muçum, agora partido em rodelas, se mexia como se vivo estivesse e, como tal impactante e horripilante impressão, colocou fim à atividade de pesca e comilança do Moleque a respeito (cujo “causo” foi abordado em outro conto).

Com quinze ou vinte metros de extensão o açude, logo adiante, retomava o formato de sanga e seguia, em seu rumo e sentido longitudinal até para bem além do alcance dos olhos do Moleque, de novo sumindo de vista (a nascente localizava-se mais ou menos a trinta metros da Rua Sete de Setembro, com a água seguindo em direção oblíqua à Rua Aquidaban - hoje Flores da Cunha – atravessando-a e desaparecendo logo adiante). Ambas as margens eram povoadas por casebres, a maioria assentados em lotes cujos terrenos eram alugados (no dito “aluguel de piso” existente em Uruguaiana, então).

Na margem direita da sanga que dava sequência ao açude, portanto aos fundos da casa da avó do Moleque localizavam-se os casebres de “Véio Popeye” e família, pais de Guiomar, Camilo e Carlos (o Popeye Filho), do casal Severo e Negra, pais de Jurandir, da família do “Seu” Danúbio (o homem que morreu de “bife”, no conto “Dona Boneca”) tendo ainda, ao lado, o de Dona Vita e família (Waldemar, o marido e as filhas Maria e Pata) e, aos fundos, já na Aquidaban, “Seu” Xingolo sua mulher (analfabeta que, diziam, como medium espírita em transe, prescrevia e escrevia receitas de chás e remédios campeiros, curando os pacientes) e a filha Dolores, também D. Julieta e filhas Almerinda e Santa (mãe de Leda – objeto de conto) em casebre com frente à Rua Quatorze de Julho e, um pouco além D. Isaura, o marido “Véio Fifi” (objeto de outro conto) e o filho Beia, quase à esquina da Aquidaban.

Na margem esquerda do açude/sanga/ nascente moravam D. Clementina (que teve e morreu da doença dos românticos, a tuberculose, incurável à época) e suas três filhas menores; seguindo o rumo da sanga, o “curioso” Jorge, Aviador do Lixo, com sua casa encravada no buraco escavado no terreno, com entrada de ar protegida da chuva (tipo “chapéu” de fogão à lenha, inclusive com “galos” de metais acoplados e móveis para indicar a direção do vento e uma curiosa antena do “rádio galena” (***) a quinze centímetros do chão (tinha que tomar cuidado para não tropeçar nela): os vizinhos eram os integrantes da família Fonseca formada, dentre outros, das Ds. Elvira e Dorila, do gaiteiro Loretto, dos também residente, as gurias, Araci e Mana, e os guris Pedro Sabugo e Eracildo, amigos do Moleque, todos vizinhos da família Espíndola que morava na esquina com a rua 27 de Outubro (atual Beheregaray).

Dessa esquina, rumando à Rua Sete de Setembro, tinha a família Guimarães das “mães de leite” do Moleque, Malvina e Isolete casada com Alcino, pais de Sonia, Pedrinho e Jardel (“irmão de leite” e um mês mais velho que o Moleque) mais o irmão daquelas, Homero Guimarães e a mãe deles, sogra de Alcino, D. Isolina. Ao lado da casa destes, a família do sargento Verdum, caçador de lebres e outros animais; seguido da residência das famílias do “Nego” Pinto, ao lado da de João Carlos “Maneta”, chegando à esquina da Sete de Setembro nos casebres da família Grillo.

Para completar, pela Sete de Setembro até a casa dos pais do Moleque, vizinhos dos “grilos” era o casal Djalma e Lourdes, por sua vez vizinhos de Domício e Mosa pais de Wilson e Núbia; ao lado, “Seu” Herculano comunista, divulgador na região (realizando sessões de leitura para os analfabetos) do jornal “A Voz Operária”, casado com D. Emiliana, pais da Joana (que casou com Napoleão), Neusa (que casou com Bola), Beto, Tito, e João Carlos “Imbido”, da mesma idade e amigo do Moleque; moravam ao lado deles D. Amélia, viúva, mãe da Dulce (que casaria com Adão Camurra) e Virgílio (menor do que o Moleque); ao lado, “Seu” Amâncio casado com D. Nair, pais de Nika e Edson, que tinham como vizinho e compadre, “Seu” Ari que morava sozinho e, finalmente.Entre os casebres de Ari e da família do Moleque, “porteira” de dez metros de largura para acesso dos moradores de fundos (em linguagem jurídica, comum ou leiga, “beco de servidão” ou “direito de passagem” - NA).

Passando, no outro lado, morava o casal Tivico e Alzira e, aos fundos, “Mãe” Mocita” (personagem do conto de igual nome) e Bila, que casaria com Dula. Após o casal Tolentino, o Tarugo, e Dona China, “muié macho sim sinhô” como dizia a letra de uma música da época falando sobre as paraibanas. O Tarugo era açougueiro e um tanto quanto viciado em jogos de azar e volta e meia se metia em confusão e, fugindo da briga, entrava esbaforido dentro de casa de onde saía D.China, com um facão na mão e, riscando o dito do chão, desafiava o agressor de seu marido (às más línguas diziam que era só dela a primazia de dar algum corretivo no Tarugo – na época não existia a lei Maria da Penha, senão Tarugo tentaria vê-la aplicada em seu favor, ora!); o casal tinha uma filha chamada Maria, muito recatada e discreta.

O vizinho do lado era o casal Emílio e Mariquinha, pais de vários filhos: Cema, Anadir, João, Zeca, Cleusa, Mariza, Quico (Saul Adair Inzabralde), Zote (Luiz Alberto Inzabralde) estes últimos amigos do Moleque. Emílio dividiu a casa e terreno em compartimentos de modo que de um lado residia a família e n'outro construiu uma Cancha de Bochas, fundou o Clube Sete de Setembro, fachada da conhecida “Carpeta do Emílio”, onde o Moleque passou grande parte de sua infância e teve aprendizado diverso por aqueles autênticos professores, ao reverso, jamais adquirindo os vícios da jogatina ou bebida, até pelos ensinamentos e exemplos de vida que eles davam ao Moleque sempre dizendo-lhe que aquilo não era certo, que devia seguir os conselhos do pai, um trabalhador honesto que zelava por sua família e não devia ter um filho que o envergonhasse nunca e outros conselhos de natureza positiva que, vindos de quem não tivesse a experiência insalubre que eles tinham, sabe-se lá se surtiriam no Moleque o mesmo efeito e importância como, acredita, tenha ocorrido.

Nesse universo que compôs parte da vida do Moleque, além das histórias do açude e outros tem uma que realmente o marcou muito pois levou o maior “Culepe” (termo, aparentemente, francês que significa grande susto) quando ao procurar o Jurandir, filho de D. Negra, apelidado e conhecido por Jura e mais particularmente pela turma da molecagem como “Gato” pela incrível ligeireza e capacidade de escape, foi atendido pela mãe dele que suave e calmamente disse que iria chamá-lo e em meio ao simples girar dos calcanhares retorceu-se toda, babando desenfreadamente e caindo ao chão onde continuou desenvolvendo procedimento dito normal aos infelizes pacientes que “sofrem” da doença chamada epilepsia (**) totalmente desconhecida pelo Moleque e, mais atreve-se a dizer que exceto pelo pai, pela avó e quem sabe um ou dois vizinhos, ninguém conhecia ou sabia existir. Uma doença, que pensavam ou temiam por absoluta ignorância, contagiosa pela baba cheia de borbulhas que saía da boca do infeliz portador, epiléptico.

Profundamente atingido e em meio ao distúrbio que também o contaminara pelo que presenciara, o Moleque saiu correndo dali e como agulha de bússola buscou seu norte, ou seja, ninguém menos que sua avó pois a sabia capaz de acudir D. Negra, o mundo, o que viesse, como de fato foi o que aconteceu. D. Nãna, correu o mais rápido do que pode, encontrando D. Negra, caída e com grossa e caudalosa baba lhe fugindo, ainda, pela boca, todavia, agora não mais agitada, um tanto quanto mais serena. O Moleque, agora refeito do “culepe”, munido de mais coragem porque ali estava com sua avó, a seu mando foi ao campo procurar o que lhe foi pedido por ela, diversos “jujos” (termo espanhol, de linguajar gauchesco, da fronteira, que significa ervas para chá e tem uma bela letra e música da Califórnia da Canção, do poeta e compositor uruguaianense Knelmo Amado Alves - o grande sapateiro Cotoxo, do “Recuerdos da 28”, que começando pelo título, “Jujo Idéia” debulhou-se do neologismo às metáforas) e quantos e quaisquer que encontrasse, afinal, acreditava, nem mesmo sua avó sabia qual ou quais e quantos “jujos” seriam necessários a dar solução ao problema ali enfrentado. Missão dada, missão cumprida pelo Moleque que colheu e levou inúmeros “jujos”, desde salsa parrilha e pata de vaca, mentruz e losna, folhas de paraíso (em Porto Alegre conhecido como cinamomo), passando por folhas de outras árvores como laranjeira, figueira, pitangueira, amoreira e alecrim (o da beira d’água) e muito mais, entregando aqueles “jujos” para sua avó que, paralelo a limpeza que realizou em D. Negra e a manutenção de sua cabeça e pescoço, eretos, friccionava com álcool às articulações e braços dela que já recobrara os sentidos, ainda que um tanto quanto “grogue”. (*****)

Dona Negra não sabia explicar, nem ninguém até ali saberia, o que ocorria consigo; não era a primeira vez que desmaiara sem mais aquela e ao acordar verificar-se toda molhada de baba, muita baba disse um tanto quanto envergonhada. Dona Nãna a aconselhou procurar socorro médico pois “boa coisa aquilo não era, embora a história contasse que grandes personagens dela haviam sofrido desse mal, como Júlio Cesar o Imperador do Grande Império Romano e, mais próximo de nós, o grande e talentoso escritor Machado de Assis; ao que sabia ninguém tinha morrido, mas o desmaios em aviso poderia fazer com que ela sofresse um contusão mais séria, batesse a cabeça, quebrasse uma perna e coisas desse gênero; certamente aquilo não era boa coisa e ela devia ir ao médico para se tratar”.

A assim chamada medicina campeira praticada pela avó do Moleque pode ser que, em toda sua extensão e prática, não tenha a eficácia e elevada contagem de resultados exuberantes quanto a sua aplicabilidade, todavia e é certo, complementa, auxilia e às vezes é a única fonte e caminho de muitos para minorar o sofrimento e dores dos desassistidos pela sorte que grassam e perambulam por vielas, campos e favelas plenas de ignorâncias, miséria e falta de condições sanitárias de tal e elevada ordem que nem mesmo o SUS, nosso tão maltratado e injustiçado sistema de saúde, quiçá único no mundo totalmente gratuito, por mais que se esforce e vá, como vai, muito além do que lhe seria pertinente exigir pelas ingratas, parcas e insuficientes condições que lhe são fornecidas para cumprir seu mister, não consegue contemplar a plenitude das necessidades e atendimento da saúde do e para o povo.

Naqueles tempos, na área campesina por onde transita o presente conto, a medicina campeira era e continua tendo elevada importância como bem o cantou nosso grande poeta, Jaime Caetano Braum no poema “Medicina Campeira”, excelente como tantos outros desse mestre que deveria ser cultuado e admirado pelos gaúchos como um dos maiores nomes da literatura universal.

GLOSSÁRIO

(*) FREÁTICO adj. (fr. Phréatique) Que diz respeito a lençol de água subterrâneo em nível pouco profundo. (Dicionário Enciclopédico Ilustrado Veja Larousse, vol. 10, Ed. Abril, São paulo, 2006).
(**) SANGA s.f (bras.) Escavação funda produzida num terreno pela chuva ou por correntes subterrâneas; (bras. Do sul) pequeno arroio. (Do cast. Zanja.) (Dicionário Brasileiro Zero Hora, Porto Alegre, 1984).
(***) GALENA s.f. (miner.) Sulfeto de chumbo, que às vezes contém prata, também chamado galenita; (bras.) aparelho rudimentar de rádio em que emprega o cristal de galena como detector ((Do lat. Galena.) (Dicionário Brasileiro Zero Hora, Porto Alegre, 1984).
(****) EPILEPSIA s.f.(gr. Epilepsia)MED Afecção caracterizada pelo aparecimento de crises que incluem manifestações clínicas paroxísticas, ger. convulsivas que se podem acompanhar de perda de consciência; ...(Dicionário Enciclopédico Ilustrado Veja Larousse, vol. 9, Ed. Abril, São paulo, 2006).
(*****) GROGUE (ó), s.m.... adj. 2 gen. Que está titubeante como quem tomou muito grogue. (Do ingl. grog.) (Dicionário Brasileiro Zero Hora, Porto Alegre, 1984).

segunda-feira, 1 de junho de 2020

OUTRA DO MOLEQUE- VIAGENS COM O PAI


Então se deu que o pai do Moleque foi encarregado de complementar negociação referente a aquisição de uma cadeira de barbearia para o salão e com tal objetivo viajaria para Porto Alegre e, aproveitando a oportunidade, resolveu levá-lo consigo, como prêmio pelo fato do mesmo ter passado no exame de Admissão ao Ginásio no glorioso e respeitável educandário, Colégio Estadual Dom Hermeto, escola pública dos níveis ginasial (1ª à 4ª Série), e Médio (1ª ao 3º Ano, do Científico ou Clássico e que era uma das únicas escolas públicas desse nível de ensino em Uruguaiana; a outra, sua vizinha de pátio e quarteirão era a Escola Normal Iris Ferrari Valls, cujas alunas eram chamadas de Normalistas, formava professoras destinadas a lecionar no Curso Primário (1º ao 5º Ano) que antecedia ao Ginásio.

O Moleque ficou radiante pela decisão do pai que, até para tornar a viagem mais extensa e agradável, aumentou o tempo de permanência na Capital eis que nela deveria chegar na sexta-feira pela manhã e resolveria sua missão ainda naquele dia, porém voltaria apenas na segunda-feira, à noite. Para o Moleque aquela deveria ser a viagem que o marcaria para sempre, como três outras, anteriores, feitas com o pai e que ora se permite abrir parênteses para, rapidamente contá-las:

A primeira viagem do Moleque com o pai foi visitar seus avós e familiares paternos na vizinha cidade de Itaqui, terra natal dele (fronteira com Alvear, Argentina), em cujo porto o pai dele, nono Emílio, leu na proa de um navio o nome tupi-guarani, Itagiba, cuja sonoridade, inédita para ele, o seduziu a ponto de batizar seu primeiro filho com ele. Orgulhoso disso e para não ficar sozinho na parada o pai do Moleque, depois de homenagear os avôs paterno e materno pondo seus nomes no filho primogênito (Emílio Elder), se auto homenageou transferindo dito nome ao Moleque; ocorre que a mãe propôs fosse colocado também o nome de São José, antes do nome indígena. Vejam como são as coisas, chegada a hora, por vaidade, o pai colocou seu nome em destaque, à frente de José e, sem querer acredita-se, formou, com o nome e o sobrenome, um verso alexandrino perfeito (*) , como aquele formado pelos nome e sobrenome de um dos maiores, senão o maior poeta brasileiro, Olavo Brás Martins dos Guimarães Bilac, o que não ocorreria tivesse obedecido a ordem proposta pela mãe do Moleque, porquanto nos versos, sucintamente, ao encontro das vogais conta-se apenas uma sílaba (no caso, e+i formaria uma silaba e os nome, sobrenome do Moleque, na contagem, resultaria em onze e não doze silabas como se caracterizam e por isso são assim chamados os versos alexandrinos).

Em Itaqui, além da beleza e placidez da cidade, chama a atenção o portentoso Teatro Prezewodowski (nome difícil de guardar ou pronunciar) joia arquitetônica de beleza e magnitude incomum localizado bem no centro da cidade, atração turística atestando o poder econômico e cultural da região. Na casa dos nonos Anita e Emílio, como fazia a irmã de seu pai e residente em Uruguaiana, Tia Ulda, o Moleque foi abraçado, beijado, mimado,inclusive pelos tios José, Antenor e Mosa que, posteriormente se casaria com um argentino e iria morar em Monte Caseros, Argentina, na segunda viagem feita pela dupla pai e filho. Nessa ocasião, informada do poder destrutivo e desaforado da boca do Moleque a tia, de brincadeira e piscando os olhos para o irmão, disse que gostaria de preparar um “chouriço” (comida típica da região) e para tanto queria que o Moleque fosse na “bodega” da esquina, que era uma piçaria, trazer-lhe a p... mais grossa que encontrasse, para o preparo... Espantado, o Moleque se recusou a buscar a encomenda, decepcionado com a tia por ela ter se envolvido com aquele argentino “bagaceira” que não devia ser grande coisa pois ensinara a tia dizer aquele palavrão e, até, comê-lo, cruzes! Todos, inclusive o tio argentino explodiram em gargalhadas, deixando o Moleque pasmo, sem entender nada até que seu pai desenredou a questão dizendo que a p... nada mais era do que a linguiça brasileira, em espanhol...

A terceira viagem ocorreu em comemoração ao Dia do Barbeiro em conclave e banquete oferecido pela Associação de Alegrete, na cidade de igual nome, costela da qual saíra Uruguaiana, em decorrência do Posto Fiscal Santana Velha ponto avançado ao oeste, origem da aldeia posteriormente deslocada mais ainda, ao oeste, depois distrito, elevada a Vila e, finalmente, a cidade, banhada pelo rio-mar Uruguai, tendo como padroeira Santa Ana, avó de Jesus Cristo, Mãe da Virgem Maria e que, por obra, graça e maravilhosa inspiração de seu fundador, o mineiro Domingos José de Almeida, foi batizada Uruguaiana (**) pela junção dos reverenciados e supra citados nomes.

Em Alegrete, que é o que interessa ao assunto em pauta, conheceu a guaraná, das marcas Brahma e Antártica, ambas à época donas do mercado atinente; ele já a vira na Confeitaria Campana, no centro de Uruguaiana que frequentou algumas vezes após a missa “dos preguiçosos” na Catedral de Santa Ana, das 11:00H porque não era lá essas coisas como madrugador, só não provara a tal de Guaraná e, por isso, mal sabia quanto ela era gostosa e, quase integrante da categoria desde que era engraxate de barbearia, tendo-a à mão cheia, grátis tomou tudo que deu e o que não deu, enfim, um porre amazônico daquele líquido da cor do ouro, do que momentaneamente ficara intermediário indo e vindo ao banheiro tantas vezes quantos copos tomara. Foi uma festança sem fim, com churrasco gordo como gostava, bem gordo, regado a toneladas de guaraná... Melhor que isso ... só isso!

Voltemos à origem deste continho dando andamento a viagem à Capital não sem antes dizer que a demora de nosso retorno a ela, também se deve ao tempo que a Maria Fumaça levava para se preparar e partir em trânsito tipo pinga-pinga, com paradas, desembarques, “baldeação”, em Santa Maria, até chegar em Porto Alegre, vinte e quatro horas distante (este continho com ou sem “baldeação” não vai durar tanto tempo para ser lido).

O Moleque se perguntava como seria o céu em Porto Alegre, as ruas, diziam-na muito grande, seria que seria, bonita mais que Uruguaiana, duvidava fosse: até havia seresteiros ditos “viajados” como o ritmista Charanga que ao se referir ao tamanho dos edifícios levantava o olhar e as sobrancelhas, abrindo a boca, ou bocão enorme que era, em mistura de espanto e convencimento... nada podia ser maior que o esperado, mas para ele foi maior, muito maior ...
Começando pela viagem em si, passando pelas estações de Pindaí Mirim e Plano Alto, dentre outros, distritos de Uruguaiana, por Alegrete, depois por Cacequi (frenético mercado de produtos artesanais como o “Pinguelim” espécie de mini relho de couro cru com cabo ornado de arabescos ou fitas de plástico, crochê ou tecido e a misteriosa passagem – ou túnel – subterrâneo, única forma de se alcançar à rua); logo adiante Dilermando de Aguiar, então distrito de São Gabriel ou Santa Maria, onde à chegada do trem, a gare ficava repleta de vendedores ambulantes, em sua maioria, vendendo peixe frito quentinho ao preço de um cruzeiro (Cr$ 1,00) ou um pila, a fatia. Dali, a chegada em Santa Maria “da boca do monte”, “cidade universitária” ou “coração do Rio Grande”, para que se efetuasse a “baldeação” – troca de locomotiva, vagões e bagagens – procedimento que demandava duas ou três horas, o que dava tempo para esticar as pernas, subir pela Rio Branco e dar uma voltinha pela Dr. Bozzano, ruas centrais de Santa Maria e voltar à gare para seguir viagem, passando por Restinga Seca, Canoas e, finalmente, chegar a Porto Alegre, com a última parada na Estação Diretor Pestana bem à frente do Aeroporto Salgado Filho ou no monumento do Laçador, ao final da Av. Farrapos, início da BR 116, dali indo então ao ponto final do percurso, a gare da Estação Central, no encontro das Ruas Voluntários da Pátria e da Conceição. Mais de vinte e quatro horas de viagem de trem, ufa!

Daí em diante, da movimentação intensa deu-se a perplexidade ao atravessar a cidade e aportar na Venâncio Aires, cerca de cem metros da João Pessoa e igual distância, aos fundos, da Praça da Redenção, na Pensão do casal Heimboldt, onde ambos se instalaram. Logo em frente passou um Bonde cambaleando por sobre trilhos fixados à Venâncio rumo ao Menino Deus; o encanto dessa visão não foi quebrado nem mesmo quando o Moleque nele ingressou pela primeira vez, no mesmo dia e, em grande aventura, partiu rumo ao infinito do logo adiante chamado Praça José Garibaldi; ida e volta sacolejando no Bonde Gaiola (não era não “Num Bonde Chamado Desejo” – peça teatral do dramaturgo Tenessee William, mas como quase toda primeira vez, foi muito bom). Depois disso, fez um solitário passeio, a pé agora e não podia ser diferente, até o Zoológico da Praça da Redenção, distante quase dois quilômetros da Pensão, do Arco do Triunfo e Colégio Militar, ambos na José Bonifácio; no zoo viu macacos, cobras e outros animais, inclusive araras bem parecidas àquelas do zoo da Praça Barão do Rio Branco em Uruguaiana; foi ao lago onde andou num barquinho em formato de cisne, divertindo-se sozinho, todavia atendendo criteriosas ordens do pai para tomar cuidado e não se perder enquanto ele tratava, com terceiros, dos assuntos relacionados ao objeto da viagem.

Na manhã de sábado, agora com o pai, foi ao centro, aumentando seu quase torcicolo de tanto olhar edifícios de baixo para cima, guardando o nome de um, quem sabe o maior da época, o Sulacap na Borges de Medeiros; nunca vira tantos edifícios juntos, em Uruguaiana conhecia apenas um que assim chamavam só que era uma casa em cima de outra e deu. Também ficou impressionado com o Viaduto Otávio Rocha que como uma ponte, seca, passava por cima da Borges de Medeiros e mesmo com intenso tráfego, até caminhão passava ali, não caía. Encantou-se com a Rua da Praia (cadê a dita) que só muito tempo depois veio a saber seu nome real, Dos Andradas, e que com a Borges formava um cruzamento famoso chamado Esquina de Porto Alegre, com intenso movimento de pessoa e de carros, sacrificado pelo infeliz banimento do automóvel, como o próprio Centro Histórico à noite entregue às moscas ou, pior, aos marginais.

No domingo pai e filho foram levados pelo irmão da mãe do Moleque, Jureldi ou melhor Táboa como sempre foi chamado pelos amigos e parentes, que morava na Av. Teresópolis, no bairro de mesmo nome, para lá almoçarem com sua esposa Iolanda, a amada filha Teresinha Jacqueline e com uma visita muito querida por todos e pelo Moleque também de nome Iolanda que estava separada do tio Jurelni, o Ni para os familiares e era vizinha do Jureldi, o nosso Táboa. Por incrível que possa parecer, Ni e principalmente sua ex-mulher Landa (amada mãe de Jorge, Julcema, Naira e Lenine), foram, junto com a Tia Eustáquia, às únicas pessoas que o Moleque chamou de “tios” embora amasse por igual a todos os tios.

Outra novidade esperava o Moleque, a salada que lhe foi apresentada se chamava maionese e ele nunca tinha comido nada igual, pelo menos em termos de saladas. Guloso como era e com o aval e concessão de todos comeu até não aguentar mais. Táboa era um grande e requisitado jogador de futebol, considerado como o melhor ponta-esquerda que pisara o Passo d’Areia eis que atuava pelo Zivi-Hércules, fabrica de talhares, no renhido e disputadíssimo campeonato do SESI, recebendo “grana” para jogar por outros clubes em campeonatos e torneios diversos, às vezes jogando aos sábados e também domingos. Depois do Zivi, Táboa foi contratado para trabalhar e jogar nas Forjas Taurus onde permaneceu por dez ou mais anos tendo sido campeão de Porto Alegre e vice do Estado, empresa para qual, anos depois levaria o Moleque, no auge de seus quinze ou dezesseis anos.

Após o almoço Táboa tinha assumido compromisso de jogar pelo Veronezzi, em Canoas, e convidou o Moleque para ir junto; lá chegando, o campo era no Bairro Harmonia, Táboa deu cinco cruzeiros ou pilas (Cr$ 5,00) para o Moleque gastar no que lhe aprouvesse, enquanto ele jogava bola. Lá pelos quinze ou vinte minutos do primeiro tempo passou um guri vendendo bananas, fruta que o Moleque gostava muito de comer, especialmente àquela destinadas à Argentina e que ficavam expostas quase ao descuido por entre frestas abertas à ventilação nos vagões, à espera da troca dos rodados, já que a bitola dos trilhos da Argentina era bem mais larga do que a brasileira (***).

Dá-me meia dúzia de bananas ao que o guri vendedor respondeu que não era por unidade e sim por quilo que vendia; então me dá quantos quilos posso comprar com cinco pilas. Deu treze bananas que o moleque, enquanto transcorria o jogo, sem nenhuma pressa foi comendo... boas bananas, docinhas... À noite voltando à casa de Táboa, perguntou se ainda tinha aquela salada. Sim tinha, mas ambas as queridas Landas se opuseram a servi-lo informando do perigo porque feita pela manhã, para o almoço, poderia gerar problemas digestivos, além disso, por falta de refrigerador tinha sido guardada no armário (ninguém, nem mesmo o Táboa, sabia das treze bananas). A gula ah, a gula como todos pecados em especial os capitais tira o senso e faz o pecador perder a cabeça; e não deu outra, cheira daqui, cheira dali, deu-se a maionese como em condições de ser comida e o Moleque a comeu.

Pai e filho foram levados à Pensão, despedindo-se o Moleque desses queridos tios, mesmo àqueles que já realizaram a viagem marcada para todos nós desde o nascimento, como a querida Tia Landa, do Morro da Pedreira, como era identificada para diferenciá-la da outra Tia Landa, tão querida quanto, pelo Moleque. Pela altura da uma ou duas horas, em meio a desconhecidos, exceto seu pai, o Moleque se acordou com uma incontinência jamais sentida, em turbilhão desconexo e desgovernado parece que tudo que havia comido naquele dia queria e veio num supetão, tudo saindo de suas entranhas, num mesmo momento, tudo cólica, tudo vômito, ou vice-versa, a ordem não importava pois era tudo concomitante e desarranjado. Em poucos segundos ficou tão fraco que até a vergonha se escafedeu. Acudido não só pelos anjos donos da Pensão, pelos outros que sempre estão de plantão como o Da Guarda, por Nossa Senhora, pela Divina Providência, por Jesus Cristo e todos Santos, escapou dessa, vivo. Sem confirmação médica, que não foi levado para atendimento, disseram “entendidos” que ele teve forte ameaço de congestão ou uma congestão.

De tudo isso, da fraqueza abissal que tomou conta de seu corpo franzino, lembra-se apenas que como remédio lhe foi dado dois ou três comprimidos de Veramon, dito próprio para combater febre ou resfriado ... Aquela interminável noite de segunda para terça-feira continuou como se perene fosse durante todo tempo, infinito, passando pela ida a pé da Pensão à Estação Ferroviária, pelo centro feéricamente iluminado, das alucinações, animações em 3D, vertigens saídas de surtos de precoce labirintite geometricamente multiplicada, na viagem de volta cujas lembranças, se existiram nem foram marcas ou o tempo apagou!

Creiam, entretanto, tudo isso valeu a pena, como mais ou menos versejou o grande poeta português Fernando Pessoa “tudo vale a pena, se a vida não é pequena” ou, em complementação do continho, do poeta mais próximo e nem tão distante na maravilha de seu poetar, o nosso também grande Jaime Caetano Braum no “Bocincho”: “E a China? Nunca mais vi ... tudo isso faz parte do meus passado...”!

GLOSSÁRIO

(*) Verso, s.m. Reunião de palavras sujeitas em número e cadência à certas regras fixas; cada uma das linhas que formam uma composição poética; ... verso alexandrino o que tem doze sílabas ... (Dicionário Brasileiro Zero Hora, 1984). DIZ-SE VERSO ALEXANDRINO PERFEITO àquele cujas primeiras seis sílabas podem se separar das outras seis com ambas mantendo significado individual e independentes entre si, todavia quando complementares adquirem significado único relacionado ao individual de cada conjunto. Exemplificando, é o caso do citado Olavo Brás Martins (composição = 6 sílabas) dos Guimarães Bilac (composição = 6 sílabas)\| total = 12 sílabas. (NA)

(**) “... Decreto do então Presidente da República Riograndense, Bento Gonçalves da Silva, 24 de fevereiro de 1843, referendado pelo Ministro Domingos José de Almeida ... A capelinha construída na margem do Uruguai foi a origem da cidade erigida em homenagem a Nossa Senhora de Santana e cujo nome foi lembrado por Domingos José de Almeida, fundador e benfeitor da povoação ... 18 de novembro de 1841 transporte dos moradores que se haviam instalado no posto fiscal de Santa Velha, para o local escolhido para a nova povoação ... 18 de março de 1846 foi Uruguaiana elevada a categoria de sede de um novo município e desmembrado seu território do de Alegrete ... Lei Provincial de 29 de maio de 1846 ... elevada a categoria de Vila ... Em 1865, antes mesmo que adquirisse as prerrogativas de cidade foi invadida pelo exército paraguaio, que a reduziu a ruínas ... 05 de agosto de 1865, rendição paraguaia, voltando a Vila de Uruguaiana a ser ocupada por seus habitantes ... e a garantia que lhes deu o Imperador Dom Pedro II, colocando-a sob a guarda de três corpos do exército ... lei provincial de 06 de abril de 1874 foi Uruguaiana elevada a categoria de cidade ... (“URUGUAIANA – Seu Passado, Seu Futuro”, de Octávio Lago, Ed. La Salle, Canoas, RS, 1969”).

(***) O grande Irineu Evangelista de Souza, um dos maiores gaúchos, conhecido como Barão e depois Visconde de Mauá foi de vital importância no trato e negociações com os ingleses ao tempo da Rainha vitória, a ponto de a Inglaterra ter débitos para com o Brasil, inclusive tendo criados Bancos em Londres e em Montevideo. Afastado por intrigas palacianas (nenhuma novidade!!!) foi substituído por outros que em pouco tempo dilapidaram as reservas brasileiras, transformando o crédito junto aos ingleses em dívida externa brasileira (de novo, nenhuma novidade!!!). Na troca de trilhos da malha ferroviária inglesa foi alargada a bitola e o lixo dos ferros substituídos negociados adivinhem, com o Brasil que os adquiriu a preço superfaturado... Na Argentina, entanto, nada disso ocorreu e a bitola de sua malha ferroviária ficou idêntica à inglesa e, claro mais larga que a do Brasil, por isso a troca de “rodado” na fronteira. A grande maioria de nossos políticos e dirigentes, desde Pero Vaz de Caminha sabem muito bem negociar em seu favor pessoal mesmo que isso seja vergonhoso, imoral e a história esteja aí para demonstrar e lastimar as falcatruas. Quem porém com isso se preocupa se nosso povo, dócil povo, é tão pobre, tão cego e, parece, dorme o sono dos anjos ou no berço da ignorância. (NA)

quinta-feira, 28 de maio de 2020

CHEIRINHO


Consoante o escopo destes versos
sob o domínio do medo e calafrios,
sigo-me sangas, lagos, um quase rio
no desafio de me saber disperso,

aquém.
Vida, amor, melhor perder brincando
do que vencer chorando
ninguém!

Porém,
há um cheirinho de queres me dar
num beijo,
em teu derredor, todo lugar, no ar!
Desejo

em mim.
Teus escritos soam palavras ternas
nas muitas horas de espera
sem fim!

Lascivo,
sinto, pressinto, quero
para mim teu cheirinho inteiro,
vivo,
aroma e perfume que espero!

terça-feira, 26 de maio de 2020

DA COR DO MEL


Olhos da cor do mel de camoatim, (*)
Claros de luz dourada, abrasivos
Como tua pele que ficou em mim
Perenemente tatuada em meus braços
Como a saudade, que me faz cativo
Da falta que me faz o teu regaço.

Sei que foi o destino, sem culpados,
Que nos colocou entre o certo e o errado
Brincando em jogos e amanhãs incertos
Para, logo adiante, nos fazer promessa
Do que seria e não foi, tudo às avessas,
Oásis, no que não era e se tornou deserto.

Tudo foi passando ao rimar dos ventos,
Em quase tudo tempestade ao quase sol
Do nunca, luz furtada dos renascimentos
E despedidas de cada um etéreo arrebol.
Assim vivemos joguetes do azar, da sorte,
Vives em mim até que me beije a morte.

(*) Camoatim, s.m. (entomologia)(bras.), Espécie de abelha melífera...
(Dic. Ilustrado da Língua Portuguesa, Ed. Globo, 1953).

segunda-feira, 25 de maio de 2020

VIRA-LATA


Vira-lata da vida, ao desamparo
Criado solto, sem dono ou preparo
Um real e desvalido Huckleberry Finn (*)
De todos tormentos da aflição sem fim.
Nasceu pobre, cresceu pobre, de tudo
Exceto da Graça de Deus que, Mudo,
O manteve milagre de vida sem trave
Com fome, sim, mas sem doença grave.

Na torturante trajetória solo
Pouco ou nada sabe de mãe ou colo
E menos ainda sobre lar ou teto.
Sofrendo intempéries no deserto
E amarga incógnita em seu dia a dia
De aventuras que a desventura esfria.
No oscilante rumo da trajetória
É o caos a bússola dessa história.

O tesouro pode estar naquela esquina
Que se faz encontro, que se faz rima,
Que se debruça por sobre a calçada
Na lata de lixo não visitada,
No fundo de um baú que ninguém tem,
Aqui, acolá, pouco mais do que além,
Fazendo casa nos sonhos, por onde
Se colore a vida de esconde-escondes.

Enquanto passa da cancela ao pátio
Sem pedir licença, um tanto errático
Na dança das sombras ao clarão da lua
Revisa o alforje preenchido nas ruas
Nele encontrando a sua própria janta
Que neste agora é o regozijo à "pança".
Após, se recolhe no esconderijo de palha
Aquecido pelo calor que o galpão espalha.

Não pediu ou queria isso, era o que tinha
Amanhã quem sabe, ao dia, sua fada madrinha
A varinha mágica, algo assim de abracadabra,
Fará com que o céu seja a porta que se abra
E finalmente lhe entregue o abraço esperado
Que lhe conforte, lhe faça se sentir amado
Como nunca o foi por ninguém, senão por pena
Boa chama que, perto do amor, é tão pequena...


(*) Personagem de livros de Mark Twain (pseudônimo de Samel Langhorne Clermens, escritor norte-americano): principal no livro “Huckleberry Finn” e coadjuvante no livro “As aventuras de Tom Sawyer”.

OBRAS


A obra-irmã, prima da obra-prima
extasiou-se perante sua obra-mãe
irmã da obra-mãe da obra-prima
e esta, mais famosa pelo sinônimo,
beleza e qualidade infinita, sorriu
condescendente, sublimando afeto.
Embora todo seu glamour e grandeza
a Obra-prima sabia, não fossem as outras
nem prima seria, talvez nem obra
e, como todo o ser superior que era
jamais desprezaria ou estrangularia
àquelas que, de uma forma ou de outra,
compõem o espectro de sua grandiosidade.
Irmãs, mães, tias e primas saíram abraçadas,
entrelaçadas, juntas nos painéis dos cantos
e acalantos, sem pretenderem nada além
do que manterem coesão no suportar da canga
e o respeito à individualidade do agora
submetidas à sorte do realejo das horas
e da eternidade, com suas cartas na manga.

terça-feira, 28 de abril de 2020

DÉCIMA DE GRATIDÃO


Das pessoas que conheço, algumas eu não esqueço
Seguem sempre comigo, seja ao lado ou como amparo
Da trajetória, da história, vez em quando meu abrigo.
São idôneas, são cabeças e ainda que eu não mereça
Dizem-se, todas e sem exceção, meus amigos
(Assim é agora e o será, com outras que virão).
Não digo por presunção mas por medo de esquecer
De uma ou outra, nomes, endereços, sobrenomes,
Identidade, CPF, mil e uma coisas da qualificação...
E ratifico às carrego e identifico dentro do coração!

quinta-feira, 23 de abril de 2020

À DERIVA


Isto é a realidade pós galáctica
despida da exatidão matemática
daquele beijo que não dei,
do que perdi, do que não achei
num muito além dessa saudade.

À pura flor de tua maldade,
que se enrodilha em torpe dança
e asfixia também minha esperança,
fez-se motor, partida, entrave,
do percurso errático da minha nave.

sábado, 4 de abril de 2020

QUARENTENA


Ontem, enquanto sentia o cair da neve
Eu escrevia o que nem sempre se escreve.
Que neve? Perguntou-me alguém, que neve?
A que se despenca na alma, não percebes?
Respondi sem me deter mais que o suficiente
Para não perder o fio do transe, do apelo
Do continuar escrevendo, freneticamente,
Tentando ganhar calor, derreter o gelo
Acumulado que me enregela o sonho
De acordar verão na paixão que ponho
Para além do café frio da indiferença,

No esbulho vindo da minha descrença.
Enquanto isso a neve faz de mim inverno
Detendo-me além do não me saber quem
Como tua ausência, causa deste inferno,
Colocou-me no polo frio do teu desdém.
Agora encaro em quarentena a solidão
Tento passar ao largo do sentir-me só
Pelo escape tresloucado da ilusão
De não ter havido temporal por sobre nós.

sexta-feira, 3 de abril de 2020

OUTRA DO MOLEQUE - PROFESSORES


Desnecessário repetir, que D. Buby (Maria José Pysaco) é a professora mais amada pelo Moleque, ocupando lugar de destaque em suas lembranças e afeto; porém para ele, outros professores também obtiveram elevado grau de reverência e sintonia.

Após o Grupo Escolar Municipal Maria Moritz onde cursou o Primário, ainda em Uruguaiana o Moleque ingressou no Colégio Estadual D. Hermeto para cursar o Ginásio; o tempo de duração de cada um, somados, totalizava nove anos por isso, hoje ambos foram substituídos pelo assim denominado Primeiro Grau. Tanto ao Primário somado ao Ginásio ou o Primeiro Grau, são seguidos do Segundo Grau ou Grau Médio que antecede ao Curso Superior ou Nível Universitário.

Desde que nas vezes anteriores sempre se reportou ao Primário, o assunto tratado nesta historinha do Moleque refere-se a amadores que de uma forma ou outra contribuíram para a formação do Moleque, bem como e principalmente, ao curso ginasial e seus professores, mais propriamente àqueles que marcaram sua trajetória, começando por D. Marília, Professora de Desenho, respeitada Secretária do Colégio, da Ordem e Disciplina, determinando normas procedimentais a serem seguidas e cumpridas, zelando pela disciplina com poder de punir os infratores, além de exercer o trabalho burocrático no controle da documentação referente aos alunos, à matrícula e curriculum/histórico escolar incluindo, ainda, sua decisiva participação à formação regular e ordenada de filas no ingresso de todos os dias e turnos às aulas das diversas turmas e níveis, tudo sob seu competente comando presencial. Por isso, parecia, estar em todo lugar, sempre, com destaque a sua gentileza encoberta pela seriedade e severidade exercida, embora jamais alterasse o tom de voz e a firmeza que de si expandia mormente quando no exercício do aconselhamento ou da decretação e exercício de punição a ser executada e observada com cumprimento eficaz e sério.

Pois bem, talvez porque tenha sido D. Marília a professora que anunciara aos postulantes aqueles que tinham obtido aprovação no exame de admissão e o impacto causado ao Moleque pela situação por ele vivenciada, então, objeto de conto anterior, somando-se ao fato de que acompanhou e orientou sua busca, obtenção e fornecimento da documentação concernente ao ingresso no educandário para cursar o Ginásio, feito tão somente por ele, sem acompanhamento dos pais ou qualquer outro adulto e, quem sabe, por isso achando-o assistencial ou emocionalmente carente, desde aí deu-lhe um diferenciado tratamento, afetivo e de elevada paciência, agindo com relação a ele, de forma branda, carinhosa, perdoando-o de várias encrencas em que se envolveu e até dando-lhe crédito e crença nas histórias que ele contava revertendo o peso ou gravidade de situações que, afinal, para ela eram praticadas devido a inocência derivada daquela criança que nada mais era do que um traquina, um peralta consumado e, em outras tantas oportunidades, realmente não fora o agente daquela falta que lhe imputavam, embora tivesse um histórico... Em verdade, o passado sempre pesava contra o Moleque, daí que era difícil defendê-lo...
Os alunos, para entrarem no Colégio, tinham de estar de uniformes que, para os guris, era calça e gravatinha azul marinho, camisa branca de mangas curtas ou compridas, blusão de lã, gola “V”, azul marinho para os dias frios, sapato preto e meias brancas; para as gurias, saia plissada (do francês, plissé) à altura dos joelhos e gravatinha, ambas na cor azul marinho, blusa branca de mangas compridas, sapatos femininos pretos, meias (que diziam, soquetes) brancas que iam até à base dos joelhos e nos dias frios também blusão de lã azul marinho e gola “V”; ainda, tanto para as gurias quanto para os guris era admitido o uso de tênis branco em substituição aos sapatos, especialmente à época de festas cívicas, como nos aniversários da Independência do Brasil, para o tradicional desfile do Dia da Pátria, realizado, sempre, na Av. Presidente Vargas, ou da Guerra dos Farrapos, à guarda da “Chama Crioula”, na Pira instalada na citada avenida (honra que os estudantes dividiam com os escoteiros, todos supervisionados e organizados pelos valorosos integrantes da Brigada Militar - A Briosa).

Registre-se que o Moleque tinha somente uma “muda” de uniforme sendo um sufoco para sua mãe mantê-lo sempre pronto para uso, ainda mais se considerada a falta de noção dele a respeito causando, com isso, pelas traquinagens e molecagens que eram seu cotidiano praticamente em todos os dias, preocupação e trabalhos manuais a sua mãe, avó, tias ou irmãs, que se revezavam, na lavagem e secagem do uniforme, seja da calça, da camisa ou de ambas ou tudo mais e ao mesmo tempo.

Em um período de muita chuva em todos os dias daquela quinzena, nos primeiros dias ainda deu para a família recuperar o uniforme mediante a lavagem e imediatamente secá-lo com o “ferro de passar” que naquela época era de ferro mesmo, espécie de vasilhame preenchido por brasas de carvão, com duas aberturas uma à frente e a outra na parte detrás (por onde se sopravam as brasas, para avivá-las) tendo ao alto uma espécie de empunhadura de madeira para a pessoa conduzi-lo no ato de passar a roupa. Em um desses dias sobre o qual continuava caindo a persistente chuva não deu para a mãe do Moleque secar sua única calça azul e ele sabia que não entraria no Colégio e nem se importaria pela folga, não fosse o problema de que naquele dia tinha “sabatina” de História e ele era muito bom nisso e não queria perder o prestígio alcançado perante a simpática professora D. Norma que o chamava de “Homem da História” e ele ficava muito, mas muito mesmo, envaidecido por isso.

Naquela época, as primeiras calças jeans eram chamadas “Coringa” e não eram das mais “baratas” no Brasil porém, na Argentina, era bem mais em conta, uma bagatela e tendo Laide, sua tia e grande costureira, ido à Passo de Los Libres de lá trouxe para ele a primeira calça de brim que usou na vida; a marca não era Coringa, cuja fabricação era da paulista “Alpargatas Rodas” e utilizava o slogan “Brim Coringa não encolhe”, mas era uma cópia perfeita (bem depois viria o Moleque saber que também a “Coringa” era uma cópia perfeita da original “inventada” por um americano lá pelas bandas do oeste americano – por isso também elas eram conhecidas em Uruguaiana como “Faroeste” - aportuguesado que foi o inglês “Far West” como fora o “Water Closed” em Uruguaiana, pelo menos entre os conhecidos do Moleque, traduzido ou melhor, sonorizado a grosso modo como “Bateclô” e no resto do Brasil simplificado para o conhecido “WC”).

Como ainda é, o jeans era azul, não marinho, mas quase; o Moleque então decidiu substituir a calça do uniforme, azul marinho, e seguiu para o Colégio e assim chegou lá e ingressou na fila, esta com todo aparato de sempre: filas ordenadas, com D. Marília passando em revista a tropa e mesmo tendo tentado se esconder o Moleque viu-se flagrado por ela que de imediato determinou que ele desse um passo à esquerda e saísse da fila e, ao início do que seria uma descompostura, perguntou-lhe porque não estava convenientemente uniformizado como todos os demais, atrevendo-se a vir ao Colégio com aquela calça “Coringa” que, embora fosse de um azul desmaiado, não era o azul marinho da calça que deveria estar vestindo. O Moleque, respondeu-lhe direta e sucintamente, dizendo que devido ao tempo chuvoso sua mãe não pode “secar” a única calça do uniforme que tinha e que a substituíra pela calça “Coringa” para não faltar às aulas, mesmo porque e naquele dia estava marcada sabatina de História e ele não queria deixar de fazê-la... blá, blá, blá... entendia tivesse tomado a melhor decisão diante do inevitável, desde que, fosse como fosse, a “Coringa” que vestia era azul e, mal ou bem, com ela tentava respeitar o mais possível o uniforme exigido, blá, blá, blá... Por incrível que pareceu a todos, D. Marília primeiro ouviu atentamente a peroração daquele pedaço de gente até ao final, depois, permaneceu durante alguns minutos como se estivesse conversando com seus botões, considerando o que ouviu, quem sabe deixando-se vencer pelos fatos (parecia que naqueles dias realmente o céu desabara-se em baldes de chuva sobre Uruguaiana e, certamente à origem do Moleque pois acreditava que de fato sua família não era de “posses” e, sopesando tudo isso, a chefe da disciplina, rendeu-se às evidências permitindo o ingresso dele, perdendo sob o quesito uniforme, desde ali e pelo menos no aplicável às calças dos guris, o enérgico comando que mantinha, eis que partir de então, fizesse chuva ou não, tanto o Moleque quanto inúmeros outros passaram a usar calças de brim “Coringa”, não encolhe, original ou falsificado, em substituição às calças azul-marinho originalmente exigidas para irem ao Colégio.

Além de D. Marília, professora de Desenho e que em inúmeras oportunidades quando repreendia o Moleque endereçado à Secretaria pelo professor da hora, porque aprontara na aula, ou no recreio, ou nos corredores, sabe-se lá onde ou mais onde, para a devida correção ministrada por ela que, simultaneamente promotora (aceitando a denúncia) e juiz (julgando e aplicando a pena) terminava sempre com um comentário dolente, quase triste, que o deixava deveras arrependido de ter feito aquilo que agora ia pagar: “Quando é que tu vais te tornar homenzinho? Eu rezo muito para que Deus e nossa Mãe te ilumine e faça que aconteça isso o mais breve possível”. Depois dessa reza ou desabafo aplicava a pena que entendia cabível, a maioria das vezes foi de ficar detido na sala de aula durante o recreio o que o incorrigível Moleque transformava em festa e bagunça ao trocar livros e cadernos de todo mundo, exceto do seu amigo Guirland que substituía pelos seus, por sua vez substituído pelos dele... dá para imaginar a confusão que era a primeira aula depois do recreio, com a metade do tempo de duração consumido pela busca e rearranjos de todos com relação aos seus materiais escolares e identificação daqueles que encontrara em sua carteira... Em duas ou três oportunidades ele foi apenado com suspensão de comparecimento no dia aprazado e desde que não tivesse sabatina e, em outras suspensão de uma ou algumas, poucas, aulas da matéria do professor que o encaminhara à Secretaria.

A única vez que o Moleque não foi apenado foi quando realizou a mais grave de suas peraltice. Ocorre que tinha uma guria, a Mara, que ele e seu fiel amigo Guirland, achavam ser ela uma das mais chatas da aula, cheia de dengos, "mimimis" e afetações ao se dirigir aos colegas ou mais ainda aos professores. Em um daqueles dias chuvosos, quando o Pampeiro vindo da Patagônia, bateu firme em Uruguaiana, com sua garoa fria, dilacerante, os dois amigos se dirigiam ao colégio quando um desses sapinhos de chuva, perereca ou semelhante, pulou da poça d'água à frente do moleque que voltando-se ao amigo lhe pediu uma folha de arquivo, ele não tinha arquivo e seus cadernos não eram espirais, o que rapidamente lhe foi cedido; antes até de que Guirland lhe perguntasse para que queria a folha, o moleque com ela capturou aquele sapo, guardando o “embrulho” no bolso.

Embora, então, não estivesse de castigo, o Moleque se atrasou para ir ao recreio, ficando na aula junto com o amigo e, desta vez não fez o troca-troca dos materiais escolares, pelo contrário e o mais rápido possível para sair dali, pegou o “embrulho” e o colocou dentro do arquivo da Mara, na primeira folha de modo que o peso da capa segurasse o sapinho que, liberto da folha de papel, continuaria preso agora naquele arquivo. Feito isso com Guirland assistindo sem participar ativamente da “operação sapo”, saíram o mais rápido possível dali, indo para o recreio.

Na volta, aula de francês com a professora Maria de Lourdes que detestava o Moleque que aprontara para ela e não tinha sido expulso como ela exigia (ocorre que ele entendia que ela o perseguia gratuita e implacavelmente – a velha história dos anjos de cada um, não se darem bem – por isso, antes de uma aula dela, pegou a cesta de lixo, vazia diga-se, e deixando semiaberta a porta de entrada da sala de aula formou um ângulo suficiente para alojá-la e quando aberta a porta por inteiro, despencasse em cima de quem entrasse, lembrando que a próxima aula era de Francês e deveria ser, como foi, D. Maria de Lourdes. Não deu outra, tudo funcionou como imaginado, todos da aula se divertiram com isso e lá foi o Moleque sentar a frente e ouvir um justo “pito” de D. Marília, receber sua penalidade ou castigo e ao final ouvir a célebre oração, desolação, pergunta “Quando é que tu...”.

Voltemos entanto, ao sapinho preso no arquivo da pobre Mara que ao abrir o mesmo teve o maior susto de sua vida, com ele saltando em seu colo, ou lá não se sabe onde, tendo ela sucumbido àquele, desmaiado não sem antes ou durante o desmaio, urinar-se toda, com o xixi escorrendo pela sala desde sua cadeira... Foi um rebuliço infernal, quem foi? como foi? o que foi?, as perguntas se acumulavam tropeçando uma nas outras, D. Dirce (esposa do Diretor do Colégio) nem iniciara a aula de Geografia, atônita, mandou alguém à Secretaria de lá vindo D. Marília, mais o Diretor Francisco e tentam “ressuscitar”, despertar, a desmaiada e conseguem, alguém diz que é preciso avisar os pais da “vítima” que chegam algum tempo depois e assim prossegue aquela algaravia na confusão que aos poucos foi serenando em vista da explicação dos pais da Mara de que ela tinha problemas de saúde, beirando a epilepsia, mas não era epilética e que a levariam ao médico embora achassem que nada de grave tinha ocorrido e que gostariam de saber quem tinha feito e o porquê daquilo. Eis o problema, quem?, nesta altura do campeonato o Moleque disse ao amigo que falaria a verdade, que tinha sido ele; Guirland, preocupado com a possível expulsão do moleque, o aconselhou a calar a boca, não dizer nada... D. Marília disse que enquanto não descobrissem quem tinha sido o autor daquela “façanha medonha” como chamou a patacoada toda, não liberaria ninguém daquela sala de aula para ir embora para casa. O Diretor falou quase a mesma coisa, considerando a gravidade da ocorrência; o pacato pai da Mara, muito calmo e em revisão ao que dissera antes afirmou, agora que já não importava muito saber quem ou o porquê de tudo eis que ela estava bem plenamente recuperada, que não passara de um susto e que tudo já estava sanado. Todavia, a decisão e firmeza de não liberar a turma aé que fosse descoberto o autor daquela horrível façanha, trouxe ao Moleque, mesmo relutante pelo apelo de Guirland que temia por ele, a decisão e dever de contar a verdade sobre a traquinagem e, se levantando sob a desaprovação de todos, exceto de D. Marília que o olhou com um misto de decepção e compaixão (Não, de novo, não), declarou que era o autor do que chamou de “brincadeira” sem saber da fragilidade da saúde de Mara pois se o soubesse jamais teria feito; por isso pedia perdão a todos, principalmente a própria Mara e aos seus pais pelos transtornos e mal que inadvertidamente causara, aos seus próprios colegas aos quais submetera a possibilidade de um imerecido castigo de não serem liberados, aos professores e, principalmente, a D. Marília, que sempre lhe demonstrara afeto e perdão pelas inúmeras vezes que dera trabalho.

Mara nada falou, seu pai, porém, agora com sinal de aprovação da mãe, serenamente repetiu o que havia falado antes a respeito, minimizando ou amainando a vida do Moleque; D. Dirce, Professora de Geografia e esposa do Diretor, Professor Francisco e como D. Norma, também demonstrava afeto pelo Moleque, disse que ele certamente merecia ser castigado pelo que fez entretanto, tinha de ser considerada sua coragem ao assumir e principalmente de pedir as devidas desculpas, vindas do remorso confessado; o Diretor, por sua vez, declarou que o caso, análise e decisão final, era da alçada da Secretária da Disciplina a quem competia fazê-lo da melhor forma e solução. D. Marília, então, disse ao Moleque para acompanhá-la e lá se foram ambos, ela à frente, ele a um passo atrás, para a sala da secretaria onde ela imperava e o termo é condizente com sua postura séria, compenetrada e decidida.

Iniciou D. Marília com as argumentações pertinentes, relatando o que poderia ter resultado daquilo que o Moleque chamara de “brincadeira”, agradecendo a todos os santos o fato de que apenas o susto tenha sido recebido por todos e tenha, desde aquele sofrido por Mara, como o sofrido pelos pais dela, pelos professores, pelo Diretor, até pelo zelador do Colégio, entendido e tratado de pequeno efeito ou monta. “Já imaginou se tua colega tivesse saído daqui direto para o Hospital ou coisa pior?... O que tens a dizer sobre isso, senão agradecer que de tua inconsequência e irresponsabilidade nada pior resultou? ...”.

Após quase duas horas de “pito”, ele balbuciou algumas palavras repetindo às antes ditas perante todos; D. Marília voltou a carga dizendo que ele tinha de apreender a medir as possíveis consequências de seus atos antes de praticá-los, que a chave é, não apenas se concentrar no foco, todavia, antes, olhar o todo e disso extrair o melhor; que o fato dele ter assumido a culpa, pedido desculpas a todos e declarado que sua intenção não fora outra que não a de fazer uma brincadeira, respeitando-se ainda sua idade, o menino que era, não eliminava a possibilidade dele ser expulso do Colégio... Uma angustiante pausa seguiu-se após tais palavras... dando sequência, disse ela que a mesma argumentação antes utilizada também lhe davam a certeza de que suas orações estavam sendo atendidas e o “homenzinho” que ela imaginava começava, parece, a partir daquele episódio, a nascer, pois é preciso ser sério e leal consigo mesmo e com os outros, ter caráter probo e personalidade forte para enfrentar a vida e o que nos impõe a condição humana de erros e acertos, sem fugir da responsabilidade quando se erra senão pelo reconhecimento do erro, única fórmula e início do caminho que conduz ao reerguimento do decaído. Por isso tudo e atendendo, até, o manifestado pelos pais de Mara, pela Professora Dirce, o susto que ele pregara em todos e que, tinha certeza, foi muito maior para ele, entendendo que tudo isso somado já fora pena suficiente para puní-lo, o deixava ir, todavia advertindo-o que acabara sua cota de erros e daí em diante nada desculparia qualquer outra transgressão à disciplina... E, pela primeira vez, não encerrou com às rotineiras oração e perguntas: “Quando é que tu vais te tornar homenzinho?...”!

Dentre aqueles professores se destacava pela sua compleição física e mental Mister Oliver, o texano professor de inglês que sabe-se lá como “aparecera” lá pela fronteira e ingressara no corpo docente do Colégio. Era uma figuraça, ressaltando o que lhe parecia comum ao Texas e ao Estado gaúcho, vendo semelhanças entre a Pampa e as pradarias texanas, incorporando-se aos costumes como o chimarrão e o jeito de agir e falar do gaúcho daquela região, mesmo que lhe fosse impossível se livrar do sotaque que o denunciava. Além disso, era pessoa que gostava muito de poemas e “tiradas” gauchescas, sendo que, todas as aulas eram iniciadas, invariavelmente com jocosas e pitorescas trovas como: “Buenas e aqui me acho / Às vezes meio com sede / E outras vezes borracho* / Beijando beiço de china / E quebrando guampa de macho”; ou, “Buenas e aqui me espaio**/ No magro dou de soco / No gordo dou de talho***”
(*) Bêbado, (**) espalho, (***), talho.

E por gostar de poesia declamava muitas do repertório gaúcho, em especial às do grande poeta gauchesco, Jaime Caetano Braun, com preferência aos poemas “Galo de Rinha”, “China” e “Bochincho”. De sua terra repetia uma que, ao final e talvez pela repetição à exaustão, ficou gravada na memória do moleque que a repete pela vida inteira no original, com direito a tradução literal e simultânea, oriunda da própria fonte, o inesquecível gozador e simpático Professor Mister Oliver:

Fly Man Aviador

Fly man, fly man Aviador, aviador
Up in the sky Lá em cima, no céu
Where are you going to Para onde você está indo
Flying so reigth Voando tão alto
Over the mountain Sobre montanhas
And over the see e sobre o mar
Fly man, fly man Aviador, aviador
Please, take me Por favor, leva-me

Filho de barbeiro, o moleque tinha seu cabelo aparado pelo pai, pior, cortado à escovinha, com máquina zero, ficando apenas um “tufo” de cabelo ao alto da cabeça; fisicamente ele era o menor dos alunos. Enquanto Mister Oliver ministrava sua aula, nela percorria todo o espaço físico, com aqueles vozeirão e sotaque meio que “arrevesado” praticamente repetindo a mesma tecla ou escala de som, vocalizando as palavras “potatos-tomatoes”, “tomatoes-potatos”, “potatos-tomatoes”, “tomatoes-potatos” (batatas-tomates, tomates-batatas...); sempre, ao circular pela sala de aula, passando às costas do moleque que ele apelidara “Campeon” (um champion inglês misturado com um campeone, espanhol, guardando alguma semelhança com o campeão português cuja silaba “ão”, nem inglês ou americano do norte, muito menos espanhol conseguem pronunciar senão com a sonoridade da silaba “on”), nesse momento é que o moleque se cuidava, embora não adiantasse de nada, pois sofria um tapa de refilão no alto da nuca que fazia aquele barulho que se pretende reproduzir, em onomatopeia, “splééshe”, que ressoava na sala trazendo risos para todos, menos para o Moleque. Apesar disso e de ser a vítima do “tapa na careca” em quase todas as aulas, pode-se dizer que Mr. Oliver foi um dos bons professores que o Moleque teve.

Durante tão somente um ano letivo, lecionou francês a professora Maria de Lourdes que não “fechava” muito com ele; começava a aula e ela determinava que Argemiro, um “caxias” que sentava bem à frente, trocasse com ele que sentava lá no fundo e assim mantinha vigilância total em cima do Moleque durante todo o tempo da aula. Para sorte dele, no ano seguinte ela foi substituída por outro professor que era francês nascido em Paris, o Monsieur Jean Pierre Puig e que algum tempo depois seria Diretor do Colégio substituindo ao Professor Francisco.

Em música, a professora e maestrina D. Ieda tinha a admiração do Moleque, como também, a professora de Desenho, D. Marília que ele separava da secretária séria e enérgica, por ele muito respeitada por isso, porém sem demonstrações de simpatia o que deixava patente enquanto ela atuava como professora de Desenho. Em Português, o professor Ledur um sujeito calmo e letrado e, no Latim, a D. Domingas, que os maledicentes diziam que sua indisfarçável impaciência, de atitudes firmes, exigente e no xingar sem papas na língua, decorriam da agressividade dos dois cães, pastores alemães, que a protegiam somados ao fato de ser solteirona; o certo é que D. Domingas realmente tinha dois cães bravos, era solteirona e era baixinha, tinha no máximo 1,48m, quem sabe nem isso e, se Lombroso tivesse razão em suas teorias, ela seria um prato cheio para comprová-las, desculpem a brincadeira. O certo é que D. Domingas era uma excelente professora de Latim, justa mas sem riso fácil para ninguém o que facilitava o reconhecimento de sua sinceridade fosse quando xingava ou quando, raramente, elogiava algum aluno.

O grande professor de Educação Física era o ativo Sargento Rosalino que agiu com especial cuidado e competência ao preparar seus “atletas”, ops, alunos, para o enfrentamento da primeira Olimpíada Estudantil, chamada de “Jogos Primaveris” porque disputada ao início da primavera e que colocava em contenda esportiva os educandários de Uruguaiana (além do Dom Hermeto, o Instituto União, o Colégio Sant'Ana, o Colégio do Horto, este exclusivamente feminino), com jogos nos diversos esportes como vôlei, basquete, atletismo, futebol e outros, sendo realizados em diversos locais, com o futebol tendo porfias disputadas nos estádios dos clubes profissionais da cidade: o E. C. Uruguaiana (Estádio Felisberto Fagundes Filho), E. C. Ferro Carril (Estádio dos Eucaliptos) e o Sá Viana F. C. (Estádio dos Álamos). Infelizmente o Moleque participou somente da primeira Olimpíada defendendo as cores do Dom Hermeto, tendo, no ano seguinte, se mudado para Porto Alegre.

Como supra citado, em História o Moleque teve como professores D. Norma e, depois dela, o Professor Clóvis; em Geografia, após a querida D. Dirce, veio o Sr. Silvério para exercer o cargo de professor, outro que fazia o Moleque vir para a frente só porque, um dia, após a aula de Trabalhos Manuais da Professora Sônia, sobrara uns “cavacos” de madeira e o moleque atirou um deles, tipo aviãozinho, visando o “caxias” Argemiro que sentava bem à frente e, infelizmente, aquele cavaco saiu fazendo curvas e zig-zagues dentro da aula, acabando o percurso batendo no alto da lousa ou quadro negro e daí se precipitando à cabeça do professor e, mais, dali caindo por sobre a caneta-tinteiro em que fazia a marcação da presença ou ausência dos alunos durante a “chamada”, realizando o movimento corpóreo ou braçal, para tanto; ao toque do cavaco na cabeça e em sequência quase simultânea, na caneta-tinteiro e, incidental e involuntariamente, o professor movimentou o braço esquerdo batendo e derrubando o vidro de tinta ao seu lado e quase cheio, espalhando todo seu conteúdo por sobre a mesa e, pior, muito pior, empapando e borrando todo o “Livro de Chamada”... vida dura, lá foi o Moleque à Secretaria, mais um castigo vindo, mais um professor que o mantinha bem vigiado durante as aulas... vida dura, muito dura!

O Moleque não tem certeza do nome da professora de Trabalhos Manuais que, acha, fosse Sônia, o que lembra e bem, é das diversas batalhas que participou, ou sejam a dos “cavacos de madeira”, também das “sobras de gesso” em seu estado sólido duro ou em pó, resultantes de trabalhos de escultura com esse material, compostos de pratos e outros arranjos, com desenhos e pinturas, coloridos, todas dentro da sala de aula e quando então tais matérias-primas foram trocadas, para evitar a balbúrdia trazida pelas “batalhas”, criando-se ensinamentos à confecção de mantas de lã, não durou muito para se descobrir que os volumes de lã podiam ser enrolados formando uma circunferência, isto é, uma bola que proporcionava, aos fundos da classe, interessante disputa de pênalti entre duplas, com um chute para cada um dos contendores, enquanto um chutava o outro defendia, trocando as posições de defesa (goleiro) e ataque (chutador), com livros servindo de marcos do gol … dá para imaginarem a bagunça, o alarido, decorrente disso tudo. A professora era maravilhosa, bondosa demais e não tinha muita força para conter seus alunos com o que, em quase todas as aulas de Trabalhos Manuais lá estava a D. Marília eis que e certamente inteligente como era, remanejou o horário e as aulas de uma e de outra não coincidiam... a vida se tornou dura de novo, muito dura e vigiadíssima, desta vez não só para o Moleque, registre-se!

Graças a Deus, a Mãe Dele e nossa, a todos os Santos e anjos, pela existência e ensinamentos que foram passados por esses e todos os demais professores que ajudaram ao Moleque se formar como pessoa, no homenzinho que D. Marília rezava que fosse ou viesse a ser. Também além desses estimados e saudosos professores, o Moleque agradece àqueles que chama de “Professores ao Reverso”, aquela turma de “calaveiras”, “bebuns” e outros tantos frequentadores do Clube Sete de Setembro, da jogatina tão famosa quanto aquela praticada quase sempre pelos mesmos jogadores no então denominado Caça e Pesca da região central de Uruguaiana, sem esquecer aos que criavam os galos de rinha, atletas, frequentavam e participaram dos jogos e lutas, espécie de “MMA” campeiro, no rinhadeiro que ficava na Av. Flores da Cunha, entre os Colégios União e do Horto e que ganharam memoráveis versos no poema “Galo de Rinha” do nosso grande poeta gaúcho Jaime Caetano Braum.

A propósito, tem um historinha hilária do amigo Vanderley Chiquettel (filho mais velho da amada e saudosa D. Roquita, irmão do Nei, do estimadíssimo Wilmar, da Nilza, da Neida – que casou com Marcos, da querida Iolanda – que casou com o amigo Juarez Barbat aos quais o Moleque por diversos motivos é muito grato, e mais outras duas irmãs, todas e todos integrantes da família que o Moleque teve a honra de conviver e manter em sua lembrança e afeto). Vande também criava galos atletas das rinhas, e teve como o mais famoso o seu quase invencível galo branco, alertando que o galo era branco e não cinza, mas quase cinza, hem!

Pois bem, contemos a divertida história prometida: Num domingo de manhã, dia e horário das rinhas, Vande se dirigia para o rinhadeiro segurando o galo em seus braços quando, passando por um dos tantos bares ou botequins do caminho foi chamado por amigos que também frequentavam e iriam ao rinhadeiro, convidado a entrar no boteco e tomar umas que outras antes das peleias rinhadeiras. Sem muita lenga-lenga, o que era de seu feitio, Vande entrou e já lhe trouxeram um copo de “trago” e ele, antes de pegá-lo, com rapidez e cheio de cuidados colocou seu galo embaixo do braço e para que ele não viesse sentir os vapores do álcool, virou-lhe a cabeça para às costas dele, Vande, e somente então pegou o copo iniciando o bebericar concernente e, que prazer, aquela que era “das boas”, como todos lhe tinham afirmado e até por isso se quedou distraído envolto em devaneios enquanto bebia e jogava conversa fora com seus amigos. Ocorre que um gaiato, também amigo dele, sem que ele visse, se postou atrás e ofereceu um copo cheio até as bordas de cachaça ao galo que começou a bicar o copo e bebeu um bocado da “marvada”. Logo depois todos aqueles cretinos, juntos com o amigo que em nome da gozação tinham enganado, foram para o rinhadeiro, onde o galo branco, quase cinza, de Vande não pode participar da lutas daquele dia porque sequer conseguia ficar em pé. Vande ficou enfurecido com seus amigos gozadores, mas não por muito tempo, gente boníssima que era, brincalhão, amado por todos, acabou perdoando aos que lhe aprontaram, prometendo volta que se houve, o Moleque não ficou sabendo, o que souberam todos é que, a partir disso e talvez essa tenha sido a “volta”, Vande fazia seus amigos pagarem, cada um por vez, bebidas para ele que, quando em companhia do galo deixava a cabeça do mesmo bem ao alcance de sua visão pois aprendera que nessa circunstâncias não podia confiar naqueles gaiatos...

Coisas de Uruguaiana, com os Professores curriculares e aqueles “Professores ao Reverso” formados pela universidade da vida e, mesmo calejados, sacudidos, atordoados, vítimados, não perderam o viço da esperança e da boa intenção de legar àqueles que amavam o melhor que puderam oferecer, ensinar e dar, como com certeza fizeram ao Moleque que, mesmo ou mais agora como adulto, os reverencia sempre. Salvem todos os Professores de nossas vidas, de cujos ensinamentos, “das boas” bebemos com ou sem um galo branco quase cinza virado ou não, sempre os recebendo com prazer, tenham sido ofertados nos grandes, requintados e nobres salões do acaso ou nos salões simples do cotidiano, os Professores que de nós somente merecem afeto, aplausos e gratidão!