domingo, 28 de março de 2021

FESTAS JUNINAS – FOGUEIRAS, BATATAS, MILHOS, ETC.


  • Mais uma, das tantas, do Moleque:

  • Quase ao final do outono, quase ao início do inverno, se apresentava junho com suas festas que, caipiras em outros pagos, em Uruguaiana era bem gauchesca mesmo, com aquele bando de guris e gurias trajados à campanha e lides campeiras(¹), borboleteando por sobre o mel dos passos marcados, desenhado pelas músicas e danças trazidas pelas gaitas ponto ou não, piano ou não que, engasgadas de milongas, xotes e rancheiras embeveciam os convivas, como o Moleque que somente não estava vestido a caráter por falta de pila(²) mas nem por isso deixava de se esbaldar em meio aos demais, especialmente às demais, claro porquanto, de fácil combustão, em meio delas crepitava como capim seco jogado ao fogo.

  • Mas, não eram apenas os folguedos juninos patrocinados pelo Grupo Escolar Maria Moritz que davam corda ao Moleque; ele próprio, mais alguns amigos e os tinha em grande número, desde o alvorecer do mês rumavam às Vilas Júlia ou Rui Ramos, localizadas nos arrabaldes da cidade, lá prás bandas do Matadouro, local de abate de gado – vacum, ovino, suino - à comercialização nos açougues e bem mais além do que a escola; a geografia dessa região plana, com várias nascentes e olhos d'água que formavam arroios e sangas onde os valorosos militares do 8º Regimento de Cavalaria realizavam manobras de instrução e aprimoramento montados em briosos cavalos, quase xucros(³), em espetáculos parecido com os circense nas acrobacias e, por que não, nas confusões entre as partes, cavalo e cavaleiro que nem sempre se acertavam, gerando situações de comédias como verdadeiros palhaços da companhia; as ocorrências eram tão encantadoras e hilárias, dando ou não dando certo os exercícios que, o Moleque e mais alguns de seus colegas, gazeteavam aula nos dias marcados, para assistir o show que, jamais, deixou de ser um grande atrativo e nunca decepcionava pela qualidade do aqui e agora, do improviso e, quem sabe também por isso, sendo gratuito, realizado ao vivo praticamente junto ao espectador que embora o ímpeto próprio da idade, só não interagia porque não tinha cavalo para montar e os berros do sargento impedia.

  • Quase sempre quem se dava mal nos exercícios de saltar por sobre arroios e sangas, ou atravessá-los ao trote, além dos cavalos, eram os milicos, reiúnos, soldados(4), como queiram e somente uma vez, para grande alegria e algazarra dos espectadores, uma plateia sedenta de inusitado, aconteceu do próprio sargento-instrutor também se dar mal: um reiúno sem traquejo equestre não dava seguimento à montaria que, desobediente, estancava à beira do arroio e não tinha pinguelim(5) que o impelisse à frente, fazendo-o desempacar; “Volta, toma distância de uns dez ou quinze metros e de lá, vem à galope e faz esse matungo(6) pular o arroio”; não adiantou nada tudo isso, embora o milico tenha cumprido a ordem exceto no quesito galope pois o indomável cavalo, ainda que mais açoitado pelo rebenque(7) não chegou a galopar ou fez “corpo mole” desdenhando do condutor. Irritado, o instrutor aos berros mandou o milico desmontar e entregar às rédeas para ele que iria mostrar como deve proceder um militar num caso desses; dito isso, desmontou do seu e montou naquele veiaqueador(8) desordeiro e tomou larga distância do arroio, para lá dos 30 metros de onde partiu a galope, intrépido, açoitando às duas ancas do cavalo. Olha foi como se um raio chispasse(9) o terreno pelas patas do cavalo que, ao chegar na barranca do arroio, em magistral e impressionante retesamento muscular estancou sem aviso e nem se sabe como, complementou tal inércia com um movimento brusco de trás para a frente e de baixo para cima com as patas traseiras, enquanto as patas dianteiras se mantinham inertes fincadas à barranca, arremessando o instrutor num vôo cego, de cinco ou seis metros, para dentro das águas frias do arroio... aquele cavalo maroto, atrevido e sem patente, vingou a todos os infelizes milicos jogados à sanha de um instrutor que mais berrava do que ensinava, meio que despreparado, convenhamos.

  • Voltemos, porém, ao cerne e assunto principal; naqueles locais, ainda ermos, destacava-se na vegetação não apenas maricás(10) e suas flores que dependendo de quando aparecem, de dezembro a março, anunciam se o inverno será para mais ou para menos rigoroso (quanto mais cedo a floração, mais enregelante será o inverno), também as sina-sinas(11) planta um tanto quanto franzina que tem como caracteristica principal enorme quantidade de espinhos no tronco e nos galhos. Pois bem, pelos efeitos naturais da vida vegetal (e quem sabe animal também) muitas dessas plantas a cada ano se tornavam secas sendo apelidadas de ramas que, incendiadas, emprestavam aos folguedos juninos o brilho e calor das fogueiras ao redor das quais todos brincavam e até as pulavam com outros, mais expeditos, o que o Moleque jamais entendeu como, caminhando descalços por sobre brasas sem se queimarem; além disso, eram assadas mandiocas (chamadas de aipim em Porto Alegre), batatas (em especial as chamadas “americanas” de cor amarelada, muito mais doces do que as batatas brancas) e até pipocas, mais milho assado; registre-se que o pinhão era raro devido a ausência de araucárias ou pinheiros naquelas plagas(12).

  • O Moleque e sua turma puxaram muita rama seca pelas ruas de acesso às suas respectivas frentes de casas onde realizavam suas fogueiras em horários distintos de forma que todos participassem de todas, em grande comilança, danças e cantorias, além de demonstrações de arrojo e valentia sem conotação com outro predicado senão o de se mostrar em exibição inútil e sem noção ou, mais suave e verdadeiro, pela simplicidade de ser feliz pelo ato de meramente participar da brincadeira sadia. Assim em 12 de junho, véspera do dia dedicado a Santo Antônio e em 13, as fogueiras eram acesas, umas por volta das 19:00H, outras mais tarde; também em 23 e 24 (diziam ser esta a noite mais comprida do ano mais propícia ao exercício de magias e “simpatias” que revelavam o futuro, principalmente às gurias) do mesmo mês, véspera e dia dedicado a São João, o espetáculo se repetia, voltando a ocorrer em 28 e 29 véspera e dia dedicado a São Pedro e São Paulo, onde todas as fogueiras se tornavam bem menores em comparação a única, enorme, em que todos colaboravam para sua realização, em meio a um descampado, no epílogo das festas em grande estilo. Bombinhas e buscapés, em todas, explodiam e serpenteavam por entre a gurizada e, pasme-se não ocorreu nenhum acidente a respeito, pelo menos que disso tenha lembranças o Moleque, tampouco dessa gana incendiária não sobrou para nenhum deles o vício respectivo.

  • Não se tem, também notícias de que alguém se tenha ferido, levemente que fosse, por queimaduras, exceto pelo acidente, incidente melhor dizendo, protagonizado pelo Dula, o marido da Bila, uma das filha da "mãe" Mocita. Vez que outra, Dula ultrapassava a cota no trago indo além do quinto “martelo”(13) e no trajeto de volta ao lar, caía nas incontáveis valas e valos do caminho sendo ajudado a sair da encrenca por vizinhos e conhecidos que o sabiam bom e pacato sujeito até mesmo quando enxarcado pelos “martelos” ingeridos. Ao epílogo, naquele ano, lá estava Dula com entusiasmo e grande alvoroço distribuindo aplausos e vivas pra todo mundo, com sua voz tronante um tanto quanto enrolada, em dicção falha por culpa do álcool; as pernas, da mesma forma, trôpegas, o mantinham no tonto movimento que o comando cerebral determinava. Dona Lucidez há horas o havia abandonado quando ele, descontrolado como estava, resolveu pular a fogueira e, de imediato, sem aviso, lá se mandou para exercer o ato que tanto aplaudira naqueles que arriscavam e conseguiam fazê-lo. Nem tão alto estava o fogo porém Dula, na sua beira, tropeçou nas próprias pernas e despencou no meio dele; inegável que o impulso dado ao seu corpo pelas cambaleantes pernas saturadas de “trago” lhe serviu para que rolando escapasse de um resultado pior, pois saiu na outra ponta da fogueira todo chamuscado porém vivo e exceto pela queima de alguns fios de cabelo de sua larga melena, mais a totalidade de cílios e pestanas, da traseira e joelho da bombacha, das pontas do ponche e do cotovelo da camisa de lã, que a tudo vestia, nada sofreu, sendo contido quando disse que iria pular de novo porque não se entregava e ia vencer a peleia com aquelas ingratas ramas que ele mesmo, junto com os outros, trouxera de muito longe para queimar e elas deviam ser agradecidas por isso, não pealá-lo como tinham feito... e a vergonha do destemido Dula que jamais caíra de qualquer cavalo, como bom ginete que alardeava ser... ah, nas valas e valos, bem aí era outra história, não eram elas ou eles e sim ele, bicho indomável, que corcoveara quando nelas e neles vez que outra caía...

  • De qualquer forma, as fogueiras, tradição iniciada por Santa Isabel para avisar Virgem Maria do nascimento de São João, trouxe muita alegria e calor a infância do Moleque que a cada junho às reacende nos cantinhos da memória e volta a brincar de pulá-las, comer batata e milho assados, etc, etc...

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  • GLOSSÁRIO: (¹) eles de bota, espora, bombacha, campeira, lenço vermelho ou branco no pescoço; elas, vestidas de prenda, com vestido comprido até o tornozelo, fita e flor no cabelo quase sempre solto; (²) corruptela do Cruzeiro, moeda da época; (³) Diz-se do animal bravo, ainda não domesticado; (4) milico é o nome que se dá aos soldados em geral, sendo o reiúno o menos valorizado, o iniciante; (5) Chicote comprido e delgado usado pelos cocheiros; (6) cavalo ruim, velho, imprestável; (7) Espécie de chicote; (8) cavalo manhoso, matreiro; (9) de chispa, fagulha, faísca, centelha, lampejo; (10) o mesmo que espinho-de-maricá, planta da família das leguminosas-mimosáceas; (11) árvore leguminosa, espécie de espinheiro, geralmente empregada em sebes viva; (12) País, região; (13) medida para líquidos equivalente a 0,165 litro; copo pequeno para aguardente.