sábado, 18 de março de 2017

DEIXEM-ME O AMANHÃ - antologia poética 2014

DEIXEM-ME O AMANHÃ Antologia Poética Editora Agbook São Paulo/SP 2014 Itagiba José (51 3012-0630)Produção Cultural: Luciana Carrero Coleção Planeta da Poesia – Vol. I Todos os Direitos Reservados É proibida a reprodução no todo ou em parte desta obra sem autorização por escrito do autor. Deixem-me o Amanhã Produtora Cultural: Luciana Carrero – luciana.carrero@hotmail.com Tel. (51) 92218199 - Porto Alegre. RS. Brasil

Sobre o autor: Itagiba José, poeta, contista, advogado, casado, pai de dois filhos. Escreve poemas, desde a mais tenra idade. Esta Obra é uma Antologia dos três livros: Metamorfose, Ponto e Vírgula, Bolinha de Vidro e outros poemas novos.

PREFÁCIO Imagino que, ocasionalmente, o prefácio possa ser visto como uma espécie de passaporte que um escriba institucionalizado e/ou abalizado fornece para o escritor sair do ineditismo e adentrar referenciado ao umbral do livro. Quem prefacia, salvo melhor juízo, deve ser discreto, elegante, e um dedicado padrinho que se orgulha do seu afilhado, o novo autor. O poeta, contista e advogado Itagiba José não é, entretanto, um novel autor, já que escreve desde a mais tenra idade. Nem é aquele menino assustado que chega com os originais ou com o livro embaixo do braço, e que vai tremer e sentir aquele friozinho na barriga, ao chegar. Por isso, ao decidir aqui apresenta-lo, já percebi que não me será um afilhado pesado, que eu tenha de carregar no colo. É, ao contrário, um poeta, na verdadeira acepção e amplitude da palavra, que sabe onde pisa. Já editou três livros: Metamorfose, Ponto e Vírgula e Bolinha de Vidro. Este terceiro tive a honra de editar, quando estive na Presidência do Instituto da Poesia Internacional e na Direção da Editora Carré. Depois disso Itagiba já escreveu centenas de poemas e contos. Mas parecia não ter pressa quanto à decisão de editar novo livro. Foi aí que entrou o cutuco desta madrinha. Ele esteve e está publicando, já de um tempo, partes de sua obra, que vai incluindo, aos poucos, no Blogspot. Atingiu a um público bastante expressivo, que o prestigia no blog. Mas na visão da madrinha, que é franca atiradora com as armas da Internet, é necessário, destarte, dar-se atenção ao leitor do livro físico, que representa uma relação emocional e lúdica com o interlocutor amante da Literatura e da Poesia. Para os apressados, o gélido virtual, que some da tela, como uma aparição fantasma. Para os que curtem, com maior profundidade o aconchego e a vida, e que veem alma na arte, o livro, com o qual podem dormir lendo e acordar nele abraçados. E podem até molhá-lo com suas lágrimas diante da identificação com o universo que mostra, ali, não ao clicar das pontas dos dedos no teclado formal, mas na profundidade de uma relação fraterna. Porque o e-book é um cidadão que passa, dá o seu discurso e volta para o arquivo. O livro é um amigo que está ali na cabeceira, sobre a mesa, na estante ao lado de outros, nos espreitando e pedindo o nosso aconchego, a nossa carícia de amor. Já estou fazendo literatura. Não tenho intenção de roubar a cena. Por isso vou ser mais realista e continuar falando um pouco do meu afilhado. Dos poemas não falarei, porque falam por si próprios. Porém o modo mais prazeroso e fácil de conhecer um autor é lendo a sua obra. E isto será um trabalho do interlocutor, que é o leitor. Para me livrar um pouco da inspiração e cair na real, me socorro no texto que escrevi no “Planeta da Poesia”, portal que coordeno no Facebook. Acho que encerra o assunto: REVISITANDO TALENTOS: Itagiba Perrone é uruguaianense. Poderiam dizer que está perdido em Porto Alegre. Mas não. É um poeta e advogado achado em Porto Alegre. Não necessariamente nesta mesma ordem, poeta e advogado, porque na verdade a ordem é concomitante: menino que se esforçou e lutou para chegar onde está; o poeta que foi crescendo desde sua menina-poesia, até à grande arte que cultiva; o advogado. Juntando todos estes atributos, moldados da mesma cepa, deu no que deu: um ser humano ímpar, verdadeiro amigo e fiel a todos, à família, aos companheiros, e destaca-se no Direito, onde não busca notoriedade ou fama, mas trabalha incansavelmente pela verdadeira justiça, aquela que tem na alma, se reflete na justiça do que faz muito bem feito, e ainda se banha nas águas cristalinas da Poesia. Descobri este poeta há vários anos, por um desses felizes acasos da vida. “Descobri” é um termo bastante pretensioso que prefiro mudar para: tive a honra de encontrar e de editar seu segundo livro: Bolinha de Vidro, anos atrás, já que os primeiros, Metamorfose e Ponto e Vírgula, a mim chegaram editados. De lá para cá a minha vida deu muitas voltas, mas nunca o perdi de vista. Sempre que o procuro, o encontro do mesmo modo, em sua trincheira de trabalho onde reveza, Direito, cultivo às amizades e dedicação às Letras. Mais recentemente conheci seus contos. Faz tudo misturado. Nas esperas, nos corredores dos foruns, em todo o lugar, vai anotando na agenda suas ideias poéticas, líricas e prosaicas à medida que chegam. Verdadeiras pérolas que temos de trazer a lume. Itagiba é um filósofo, não de intrincadas teses, mas do cotidiano, e nos atinge na alma, coração e vida, com suas mensagens lítero-poéticas. Tem uma extensa bagagem que pretendemos editar. O poeta é aquele ser humano dotado de sensibilidade ímpar que visita a essência universal, onde busca a alma de tudo e a retrata a partir da visão privilegiada que encanta aos outros humanos. Estes, em princípio, sofrem o impacto do estranhamento, mas a seguir se apropriam do poema e se deleitam, já familiarizados. Não é raro, ao contrário, é lugar comum o leitor se identificar com o poema, decorá-lo, declama-lo e até toma-lo como seu, dentro da alma. E nisto reside a explicação do porquê da boa poesia encantar. Ela faz chorar, rir, pensar, entristecer, calar ou falar. Ela consola, exalta, exulta, assalta, salva e mata, julga, contemporiza, provoca, completa, avisa, profetiza, satiriza, xinga, preconiza, retrata, sintetiza, pinta e borda, aumenta, diminui, soma, multiplica, e muito mais. Mas, sobretudo, é o caminho mais curto de coração a coração. É humor, amor, princípio e fim, unidade. Não tem dimensão, pois gravita no infinito do poetar, do poeta e de nós mesmos. E nos aproxima. A poesia de Itagiba José faz tudo isso e mais um pouco. Oferece, em sua natural espontaneidade, um carioca entrosamento, e se respalda no conceito subliminar da filosofia intrínseca que jorra do seu poetar. O livro deste vate, aqui prefaciado, em seu universo vive um panorama caleidoscópico que nos apresenta um mundo fantástico de cores, até onde os nossos olhos espirituais possam alcançar, levados pelo nosso olhar de ler. A riqueza de inspirações e de temas, desde os mais banais até os mais sofisticados, é apresentada numa disciplina não ensaiada que inferimos naturalmente do contexto. Eu disse que não iria falar da poesia. Que ela por si só falaria. E agora falei. Está falado. Mas não contei o filme. Nem fiz aqui sinopse. Viajem, então, leitores, nos poemas deste autor. Eles estão aqui no livro para provoca-los. A boa sorte está lançada. Aproveitem e se apropriem da aura. (Luciana Carrero, Produtora Cultural, reg. 3523, LIC/Secretaria de Cultura/RS. Deixem-me o Amanhã:

À ESPERA DO AMANHÃ Na fria e úmida manhã porto-alegrense os edifícios são sombras sob o nevoeiro como meus sonhos no junho outonense onde o inverno se anuncia por inteiro. A vida vai passando assim, úmida e fria, a noite se estende bem além do horizonte no buraco negro onde a luz perde o dia. Em meus ombros a cruz curva-me a fronte... Ah, primavera com seus ventos de esperança o renascer, o rebrotar de forças e da vida, por onde andas, quando virás, minha criança, brincar em mim, ventar em mim sem despedida.

UM SOPRO DE VIDA APENAS Mais que o riso, mais que a prece Queria que tu me desses Um sopro da vida que sobra em ti Não precisa mais que tanto Pra recuperar todo encanto Da vida que falta em mim. Se deres o que te peço Do zero ao tudo, recomeço Na vida que estará em mim. Ao contrário, deves saber Condenas-me a morrer Por falta do que sobra em ti. Acorda que a vida aqui fora te chama! Acorda, de qualquer forma terás o sono eterno e o drama extinguir-se-á como um sopro de acaso. Acorda, não te entregues a esse sono que te fará perder a consciência, entrega-te ao amor que fará perder o ódio e o egoísmo.

PESCARIA Olhava o córrego refletindo nesgas de céu e o comparava a sua própria existência: também transitara por leitos a si destinados refletindo nesgas de céu, sem contê-lo; às vezes, com a impessoalidade do espelho outras, com projetos somados ao que refletia. O anzol sequer dava sinal de esperança ou vida (vida que a minhoca, embora a luta, entregara) diante do descompasso e enfado dos peixes. Ora, como peixe desprezara tantos anzóis por sabê-los engôdos que a dor contém; como minhoca, dera a vida a anzóis errados atraindo olhares e ações gulosas. Só anzol não fora, assim pensava... ou fora?... De repente, agitação na linha e na água, um idiota, como ele, vencera a dúvida e se jogara, corpo inteiro, ao destino. Era a vida presa aos enganos e curvas, de novo atraída pelos encantos do proibido, debatendo-se vã, às forças últimas... Puxou a linha, à ponta, um peixe pequeno, boca dilacerada, sufocando no gasoso, extinguindo a vida, rebelada e vã à morte que vinha, que vinha, que vinha... Berrou, então, ao ouvido do peixe: "Idiota!" e o enviou de volta às águas... Encerrou a pescaria sem haver pescado nada além do que um pouco de si mesmo, refletido que estava na história vivida... Aos amigos diria, mais tarde, sobre pescaria: "Meu maior peixe é o amanhã que sou sendo a vida a maior de todas as pescarias!".

NA TARDE DO SÁBADO De súbito, um raio rasgou a garganta da tarde libertou o vento que, furioso, varreu a calma do sábado e nuvens na orgia, pintaram o quadro de chuva, desabando a magia fez-se a tempestade. Nem era verão, o sol escondeu os seus raios diante do raio que impune brincou de assustar os humanos na tarde do sábado. Enquanto lá fora o inusitado ocorria nos dois, no improviso da fantasia em raios nos dávamos e beijos raiados, há tanto ansiados, fustigaram o não que a realidade gritara ao amor que explodia. Em nós toda a festa do sol esperado gerando em magia incontida o amor, ao viver um início de céu na tarde do sábado.

MULHER Tão delicada! Tão Meiga! Feminina! Sem preconceito invade minha retina, Traz trilhas esquecidas à visão desbotada Reavivando focos de ternura na neblina Do sutil sibilar de rimas amordaçadas No renascer da terra, sem feri-la. Toda mulher nesta estampa de menina Toda a graça nas luzes de teu jeito Cega-me no espanto de tua doçura O tanto quanto que ascende o meu peito Ao infinito de tua natureza pura.

JUNTOS Eis-nos juntos, aqui, sempre e agora tentando viver a aurora no tanto quanto e tão logo se perca o espanto dessa revolta do ir-se sem jamais ter ido e como um relógio no infinito marcar e passar das mesmas horas no deambular impreciso de nossas pernas tortas. E com as vindas e idas desse nosso andar fenecem luzes, pose e preces, assim parece, n'um quase nunca mais que desaparece nessa cerração que de espessa nos embaça escondendo o desmaiado sol que nos abraça. E continuamos além dos prazos e relvas, juntos mais solenes, solitários, na selva dos adultos grávidos de ausências, estampas sem centelhas no percurso entre o meio, o fim e às estrelas.

OFERTA Repouse o teu silêncio em meu silêncio A tua cruz na minha, o teu eu em mim No curso desta prece e andar imenso. Deixa-me carregar-te enquanto posso Neste nosso andar desbotado de carmim Neste caminho íngreme que se fez nosso. Perdi a chave dos sonhos que um dia tive Desaparecida na neblina dos teus olhos E tudo e mais vivi e tudo e mais retive Em meio às reprises desses velhos sonhos. Que reproduzem e se eternizam onde estão Nos carinhos, graça e ternura de tuas mãos. E passo assim como a ventania louca Destruindo passagens de horas, poucas, Em que fui além do que pensei um dia ir Contigo em mim, assim plena e esfuziante Mais do que viva, mais do que luz, amante De um eterno agora, de um eterno fluir... Repouse pois o teu silêncio em minha alma E deixa-me ser teu céu na tarde calma Que cai entorpecida de pecados idos Deixe-me tocar-te, pensar-te presente e nua Habilitando-me em quartos de todas as luas No supremo embalar dos sonhos vividos.

REGAÇO Cada hora, cada segundo Transpasso todos espaços Neste agora o meu mundo Sonha em teu regaço Esta luz que assim deflora Manda a solidão embora À paixão todos os passos...

RANCOR Da caligrafia do tempo Despenca esmaecida Folha amarela, esquecida Ao peso dos contratempos Fotografia do inverno, de tantos outros infernos Das estações ressentidas...

ESCUTA Quero que me escutes com os poros de teu corpo e alma não quero que minha voz penetre em teu ouvidos nem machuque teus tímpanos com ruídos estéreis, quero ela penetrando em teu ser, louca e totalmente, para tocar lá no fundo, que não mostras, e ressoar, ecoar como sino que canta a aleluia em tua emotividade e vibrar em ti, no teu querer. Quero mais, que ela te envolva e me transporte para o infinito que me acena de teus olhos, para a espera e o sonho contido em teu gesto, para a suavidade e a incógnita de teus lábios e paire tranquila por sobre edens e solidão e como nau exploradora do desconhecido de teu ego traga-me, em sua volta, via eternidade tudo que de ti espero e amo, traga-me a vida em forma de beijo, o mel em forma de carinho... Quero que me escutes com os poros de teu corpo e alma.

CONJECTURA Não é fácil explicar o que nos é insensível, mais fácil é sentir o que não se explica. Vejam o amor, por exemplo, grafado pela ação humana serve-a sob todos os pretextos. Esse mesmo amor retirado da essência dos sonhos não explica nosso egoísmo, nem se consagra em nossa insanidade. Ninguém diz: "Amo, porque..." Ama apenas e nisso se basta! E se não fora assim, toda a ilogicidade e imprevisão da vida estariam fundadas apenas na morte material... Por isso que, sentir sem poder explicar ou fazê-lo sem sentir é parte de cada um. E quem sabe o homem elevado a tanto raciocínio que lhe desvenda tudo através da lógica consiga ficar isento de dor ou sofrimento... ... e não seria insípido e sem graça o ato de viver?

PROSTITUTA Prostituta tua luta, tua labuta é imoral usa o corpo que parece a manchete de um jornal. Eu te acuso mas te uso e te uso e te acuso de venal, pecadora, desgraçada, sem-vergonha e marginal. Prostituta te entregas a quem te paga à final, te transformas na amante, na amada, no refúgio, na esposa ocasional e também no quebra-galho mais bestial. Hoje o Pedro, ontem o Paulo... amanhã? quem sabe quem! Pouco importa corpo máquina, não pertences a ninguém. Teu lar é a sarjeta, o teu corpo o ganha-pão, tua alcova, teus abusos em qualquer lugar estão. Prostituta filha pária, catalisas teus vinténs o amor tu desconheces, só o dinheiro te convém vives na promiscuidade e é dela que provéns sem jamais ouvir-viver o caminho que é do bem. Prostituta, Madalena da era espacial não tens pena, te condenas a viver pelo mal. Vês a filha que geraste, que vida ela terá? Seu futuro, oxalá, não seja o "trottoir", não tem pai, não terá mãe, não terá nada... Prostituta mais te acuso, mas te uso embora queira te ajudar. Prostituta tua luta, tua labuta é imoral usa o corpo que parece a manchete de um jornal. Prostituta te ajuda, volta a vida, te ajuda, pede ajuda e perdão para os erros teus prostituta te ajuda e te lembra, te ajuda e te lembra que ainda existe Deus!

SINTO QUE ESTOU SÓ Eu me sinto tão sozinho desconheço os caminhos onde minh'alma andou é que eu estou perdido tenho o coração ferido porque ele muito amou. Se beijar fosse pecado, já estaria condenado pois beijar muito beijei há porém o desencanto muitas vezes, entretanto eu beijei, mas não amei. Encontro-me inconformado de tudo já bem cansado, inclusive de viver. E me curvo a realidade é difícil em verdade ser feliz e não sofrer. Hoje estou envelhecido da vida desiludido sem carinho e sem amor, só me resta a dura sorte de esperar até que a morte venha me livrar da dor. Pois morrer se me afigura como um sonho que me augura felicidade sem par, desconheci na poesia a sublime fantasia que na morte vou buscar.

REGRAS DO AGORA O dia foi destinado para ser vivido. Ativo. A noite, para o descanso. Brando. Do destino virá a morte, sem aviso de quando e onde se fará o encanto e o descanso, dizem, eterno será (?) ... Dia ou noite, pouco importa quando, vives pois as tuas noites e os teus dias sem descanso ou dor, vivo e satisfeito sem amargura ou agonias neste mistério, graça e fulgor que o agora te oferece e insiste desabrochado do amor de que és feito eis que o amanhã é mera fantasia poderá vir, mas ainda não existe...

CHARLA DE BALCÃO Escorado ao balcão bate charla João jogando trela pra fora carneando problemas falquejando dilemas no copo da hora. Vai gastando bombachas botas, cuscos, guaiacas, gineteando ilusões pela pampa da vida na visão destemida é o senhor das ações. E o dia assim passa sem saber como, passa à lo largo de João quase nada é sentido pois o que faz sentido é o copo na mão!

STRESS Correu célere em busca do amanhã na doida certeza que o alcançaria. Sem tempo a perder e tudo a fazer preocupou-se e ganhou uma úlcera. Fechou-se em si mesmo dobrando o ritmo, cultivando a volúpia do poder. Duro foi despertar sem identidade naquele hospital que desconhecia. Um corpo cansado, uma mente abalada. Um nada ao quadrado! Enquanto corria rumo ao amanhã não se deixava viver o presente nem ser ou fazer alguém feliz. Recuperado, não buscou o amanhã antecipado e viveu em cada segundo sua eternidade compreendendo que a vida ou a felicidade é o instante que fica, embora passado é o instante que passa, embora presente é o instante que vem pelo inesperado.

QUEM É CRISTO? Deve ser esta força que impulsiona minha fé, ou então essa tremenda energia de mais de mil cavalos que impulsiona meu motor; um motor cansado, abatido cuja última gota de gasolina se foi há muito tempo; um motor cujos pistões tocam a música inaudível do ronronar da incerteza e cujas bielas foram soltas pela ação corrosiva da desventura; um motor que não merece nem o óleo que consome e queima e não existe. Quem é Cristo? Deve ser esta força que impulsiona minha fé, não pode ser este mundo que laureia minha descrença e nem pede auxílio, nem auxilia! Apenas mata ou entorpece enquanto aos fracos reveste dessa farsa passiva de existência. Quem é Cristo? Não diga que é o Filho de Deus sem sentir o que isso significa tornando-a uma frase vazia que o tempo agilmente colocou entre o fanatismo de alguns e o ateísmo de outros. Cristo é o dia, é a noite (estrelada), é a chaga, é a dor, a alegria, a beleza, é o sorriso, é a paz, o meu corpo, o teu corpo, é o espírito, é a prece, Cristo, enfim, é o Amor em letras versais, em todos os idiomas, sob todos os nomes, sobre todos os mundos.

À MINHA MUSA Lês os tolos versos que te escrevo com o coração a ouvir baixinho a cansar ternura, a canção carinho que neles a te ofertar me atrevo. Sentes na maciez da pétala caída o suave perfume de aroma agreste e a naturalidade que ao poema deste além da grande paz nele contida. Vês nos versos que invadem o espaço o teu perfil formado no regaço da inspiração tênue que ele alinha. Do infinito a luz a terra espreita Tal qual meu sonho que de ti aceita a sua própria vida, musa minha.

VISÃO No trajeto teu trejeito aromado e satisfeito mesmo com este verão, lá de longe eu te sigo tendo como meu abrigo este sol de tua visão. Permito-me a eloquência sem deter a impaciência que meu ser todo comporta e, bem sei, é teu encanto causa viva deste espanto que à loucura me transporta. Lamento que esta alegria de te ver sempre de dia não te faça perceber que a noite, deprimido qual demônio arrependido de ti tento esquecer; não adianta, és minha cruz e em meus sonhos és a luz que não posso segurar entre os dedos reverentes alma e corpo, convergentes, és meu ponto de chegar. Quando passas, não te chamo tu não sabes, eu te amo, amo teu jeito de andar, amo teu rosto, os seios, teus quadris e seus recheios e tudo que não posso olhar.

METAMORFOSE Espera que eu creia nas juras que faz? Que pensa que eu sou? Esgotou o seu crédito, sabia? Lamento dizê-lo, simplesmente acabou! Já não faço do vento uma parcela de minha soma ou de qualquer total nem castelos de areia abrigam minha crença, e o mundo continua a girar, tudo bem, tudo igual! Somente fiquei mais objetivo, temperado, enfim eu mudei, não sou mais o mesmo. Aquele passionalismo que foi minha expressão, o arrebatamento, a ilusão acabou, acabou! Vivi o bastante, errei outro tanto, mas aprendi, as lições foram variadas, custou muito, mas aprendi! Vê, não me venhas com juras, promessas, não creio em você. Ah!, a grande vantagem é que agora creio em mim e piso na terra. De resto, agradeço a você por ter feito de mim exatamente o que sou: um ser racional que colheu do amor um pouco de dor e muito de paz... um ser que sonha dentro dos limites que a realidade impõem. Por isso, não venhas com juras que creio em sua aptidão de jurar... por nada! O meu sonho morreu em suas mentiras e através delas você passou em minha vida, passou, deve conformar-se com sua herança! Adeus, suas juras não têm o meu crédito e o amor feneceu na própria ilusão que ele foi. Adeus a vida é isso aí, exatamente e eu renascido para o mundo real agora que aprendi, vou renovar o fascínio que sinto, em outras paisagens, todavia não usarei mais binóculos ou lentes de óculos, verei por mim mesmo... e com estes olhos, ora!

CAVALOS DE BATALHA As rodas de borracha deslizavam mansamente na cidade grande e nada chamaria mais atenção naquela tarde de chumbo e sol do que tanta miséria retratada no todo daquela carroça. Própria ironia como se buscando um lugarzinho no asfalto, se postara imediatamente atrás da carroça; um carro importado buzinava, queria empurrar o lixo à frente, dobrar a rua, desviar, fugir ao contágio... Percebido um gesto fugidio, nervoso, da mão que varou o espaço indicando entrada à esquerda, o mundo parou como sempre para a miséria atravessar a rua sem saber qual o mais infeliz se o cavalo ou o carroceiro ambos desnutridos, desolados puxando seus infortúnios, um atrelado a uma carroça o outro, sem saber como ou por que, atrelado ao chumbo e sol da vida.

PROJETO Não farei tese, síntese ou quaresma, nem quero lavar as mãos no sangue do mundo, quero apenas mediar todas as questões sem prevenção ou jurisprudência, isento! Baseado nessas premissas construirei meu silogismo e conduzirei meus passos à Lógica que amo tanto; nem por amá-la, entretanto, deixarei de traí-la em nome da loucura primitiva que habita o fundo de mim mesmo, essa loucura que me faz procela, eloquência ou redemoinho e me projeta sobre o norte de tantas paixões com a ferocidade da revolta e me esfacela, me sangra, me ilude e me faz um ser inexplicável cheio de vida e de morte... Reconheço-me, assim, inimigo de meu próprio objetivo mas, talvez por isso mesmo, detendo a força necessária para vencer-me, conhecer-me, conquistar-me.

INCÓGNITA Quem és? vens de uma noite que ninguém entende e dilapidas um dia que ninguém viveu. Quem és? sorris ante a ignorância e te serves dela como um trunfo e te esqueces dela como um sábio. Talvez sejas a solidão, a dor, ou simplesmente a verdade que não quero admitir nem enfrentar. Quem és? Ah, reconheço em teu aroma, em tua obesidade, o volume crescente de tua coragem e, apesar de minhas negaças, como o tempo, estraçalhas as mesmas e surges imponente e grave no manto que cobre tua nudez e reduz o teu impacto. Como uma artista de mil predicados no strip-tease do tempo deslizas o manto e te descobres aos olhos curiosos do historiador. Por que não me deixas tocá-la, agora, tal como és, sem sombras ou dúvidas? E em troca me dás, a minha certeza, a verdade que os séculos cobriram de pó e nem recompensas a minha procura, ao contrário alimentas as minhas perguntas... Quem és?

A INFÂNCIA PERDIDA O Itinha* que eu tinha hoje não tenho mais, perdi-o nos labirintos do mundo civilizado. Presumo que o Itinha afogou-se na vergonha de ter-me alterado tanto e mudado como cera ao toque do cotidiano, desaguando em tantos vícios com status de adulto. Por que é que não retive o Itinha que ainda vive no menino que eu fui? O Itinha que eu tinha hoje eu tenho na lembrança.

* Apelido de infância

LUA NOVA Cansei de borrar meus sonhos com tintas do não fazer e de irrigar os meus olhos com histórias do pode ser. Cansei de viver na lua minguante do não viver, pisar na febre das ruas do bem-querer, mal-querer, da guerra do dia-a-dia pintada de insensatez, de querer ser meio-dia na noite desse talvez. De germinar egoísmo, cansei de morrer semente, quero agora o ativismo de viver todo o presente, tropear saudades, quimeras, abrir cancelas de aurora, deixar de só ser espera, querendo e fazendo agora!

ESTÁTICA Molhava os pés, distraída, nas águas doces do açude enquanto nelas, refletida na mansidão na quietude a inocência saltitava - Que visão! Que encanto dava aos meus sonhos de guri... Agora, de volta, aqui, às águas do mesmo açude não mais são cristalinas... nem a vida, que não pude evitar de poluí-la... resta a imagem da menina que nunca mais esqueci...

INVERNO Tarde úmida, o Pampeiro sopra firme em Uruguaiana E já faz mais de semana sem dar alce pra ninguém Quem me dera o vento frio, com um sol pálido de estio, Que só o Minuano tem! Minha vida tem andado qual o tempo em Uruguaiana E já faz tantas semanas, se arrebenta de ninguém Quem me dera agora fosse tempo de colher pão doce Que o meu cesto já não tem! Como a minha Uruguaiana, pra esta ou n'outra semana Espero venha o Minuano com o sol feito batom Quem me dera neste Junho, com a viola que empunho Festejar um tempo bom!

ATO FALHO Saboreava o chimarrão, sólito, do fim da tarde, folhando à toa o jornal, despassito, sem alarde... De repente o irreal de um nome, qual tentação saltou da secção "Recados", repontando o meu passado... Dizia a simples mensagem: "Volte logo, meu amado!"... Como pode tal bobagem, deixar-me nesta agonia? O amargo da fantasia queimando amargo no amargo - sal e mel, entreverados - no sol posto do passado... E a dor, sei lá, adormecida por vacinas do ausente voltou a dizer presente na quadra da minha vida... Até parece engraçado, o meu amor exilado voltou pleno no contraste do nada desse recado - que não foi tu que mandaste, nem pra mim foi destinado...

MOLEQUE ENGRAXATE Tão cedo para a vida acordaste moleque engraxate, tão cedo choraste o choro que o mundo te provocou moleque engraxate a ilusão terminou. Caminhas inseguro, moleque engraxate carregas na língua a fala que bate, pequeno e sisudo, arguto e vilão, apreendes e professas outro palavrão. Proclamas a glória de saber lustrar, tu que não sabes nem mesmo brincar e o germe que viça no peito inocente é o vírus do ódio que por tudo sentes. O amor, a infância, são coisas banais sofres na carne da realidade punhais e as feridas abertas não cicatrizarão sucumbes ao vício, desconheces perdão. Trabalhas agachado aos pés d'outra gente por míseros centavos te tornas contente e pensas que dinheiro, moleque engraxate, a tudo e a todos convence e abate. Ah! quando te olho assim na sujeira, na altura do nada, criança fagueira deploro esta vida de muitos madrasta que divide homens em classes e castas. Vejo-te moleque sem eira nem beira, moleque engraxate entregue a fogueira do mundo imundo que bate e tonteia e te fez tão jovem conhecer suas teias. É noite e ainda tu andas nas ruas, perambulas sem dono, sem lar, continuas... Apregoas tua fibra moleque falaz, moleque engraxate, que pena me dás!

MENEIOS Andar e dizer com o corpo a prece dos insensatos, assim te veem, embora inocente em tuas perguntas e anseios, de todas as respostas escondidas. Caminhas na leveza do firme pensar enquanto a beleza descansa os homens doidos por não ter senso pensam demônios, luxúria e escapam simplistas por olhares vagos. E quando andas, no andar sinuoso sem perceber ou pressentir, o terremoto que teu corpo causa os torcicolos que teu andar realiza.

A DEMISSÃO* Apenas sei que quando me dei por gente eu estava no mundo e já conhecia um bocado de suas manhas. Enquanto me chamavam de pobre moleque eu, com a cara estampando toda a tristeza tirava vantagem dessa necessidade de apiedarem-se que as pessoas têm. Que sabia de cinismo? só sabia que uns olhos marejados, um rosto contraído, uma máscara de amargura, enfim, era o suficiente para assegurar-me, ao menos por alguns dias, mesa farta. Era um artista! Em dois minutos, no máximo, lá estava resplandecendo em sorrisos para mostrar a alva fileira de dentes que naquela época eu possuía; aliás, só tinha duas cáries, se tanto... não lembro bem... O que lembro é da Maria-Pega, oh, se lembro! e como pegava a Maria. Para mim, novinho e cheirando a fraldas, como ela dizia, ela foi a prima-dona verdadeira. Naquela época só não gostava da chuva, a cidade se escondia e eu ficava sem aquilo que era a minha família: o povo que escorria por entre as ruas e que me sustentava, sim sustentava, uma trombadinha aqui, outra acolá e já estava garantido o "grude". Especializei-me no ramo e tirei patente, fiz o teste vocacional na prática e optei pelo viver o mais possível sem grandes esforços. Foi um erro porque, na verdade, fiz muito esforço para não fazer esforço e acabei cansando. Um dia fui engavetado, como diziam na época quando a pessoa ia para a cadeia... e me tornei doutor! Entrei especialista em trombadas e saí de lá cheio de solfejos e teorias novas. Apliquei-as e foi dando certo até que assaltei, no maior sangue-frio, um velhote e seu dinheiro me fez muito bem mas o que ele me disse me marcou, me incomodou. Ele falou nesse negócio de ser tão jovem e simultaneamente tão vazio, coisas assim; o sermão foi longo e o tabefe que dei no velho expressava, hoje compreendo, um tapa no mundo, no mundo que eu conhecia. Perguntou-me sobre o que imaginava a respeito do bem, essa coisas e aceitou altivamente minha ousadia. No fundo, no fundo fui eu quem levou aquele tapa e até hoje acho que o velho se deixou roubar... por que? sei lá, só sei que daí dois, três ou quatro anos, não estou certo, encontrei-o e lhe devolvi seu dinheiro, com juros e tudo. Mas não foi só esse velho, foi também aquele menino que me olhando com um misto de inveja e orgulho disse-me naquela praça que gostaria de ser como eu... Ser como eu, essa agora!... O que realmente sou? acho que nem sou, pensei... O pequeno marginal que vivia em mim começou a morrer nessas passagens: o velho, o menino, o medo da cana, tudo crescia e tudo me empurrava para outro caminho, um caminho que não trilhara e nem sonhara, Banquei a coragem e meti a cara com vontade, assaltei mais um, com a intenção de começar nova vida, com outra base mais sólida do que a primeira quando surgi para preencher um espaço que, se existia, nem precisava ser preenchido... No assalto me dei mal e novamente fui preso... O Juiz de Menores me repreendeu severamente e acho que me enviaria para o Reformatório não fora o que tentei lhe explicar. Ele deixou-me e, com um pouco de relutância, acreditou no que eu lhe dizia. Daí em diante me orientou, se preocupou, me protegeu me deu a chance e foi um pai para mim. de minha parte fiz o possível para não decepcioná-lo! Vejam como, com tal experiência, estou aqui julgando outros menores, orientando-os, já fui como eles e sei bem de seus azares e por mais que me esforce não consigo empurrá-los para um Reformatório enquanto não o consigamos mudar o fazendo instrumento de recuperação real e adjetiva; real porque objetiva, adjetiva porque com amor. Lutei, lutamos, mas estou desistindo, desistindo de julgar por não concordar com o método de hoje que continua sendo o mesmo de meu tempo. O Reformatório precisa ser reformado e não desisto de lutar por tal desiderato, apenas sinto que materialmente nada posso fazer e dessa forma chamo a atenção para o problema com este gesto medido, calculado e, quem sabe, inútil, um gesto considerado por muitos, possivelmente, tresloucado: Solicito minha demissão do cargo vitalício por ser incompatível meu dever (o de mandá-los para o Reformatório) com a justiça que creio justa e nobre. Talvez não possa reformar o mundo, nem o Reformatório mas tenho convicção, terei colaborado para chegar a tanto. Adeus, a todos!

* (Poema/Mini Conto/Continho)

NINGUÉM Sou um nexo sem causa ou efeito E recebi as surradas teses filosóficas Da humanidade, de uma só vez Como recebera, nem embrião, A herança genética de meus ascendentes. Enquanto massa, não tenho face Nem a perspectiva histórica Que alimenta a ficção e a realidade; Enquanto indivíduo não tenho massa suficiente Para deter o que passa em sentido inverso Ao meu destino. Não detenho nem a mim mesmo, creio. As paisagens são sempre as mesmas Para quem não consegue mudar os olhos Nem a forma de olhar. Devido a isso, Materializado no nada encontrei meu tudo E transpus o impossível. O absurdo é que, Apesar de reconhecer-me no vácuo, Respiro o oxigênio da vida E me alimento dele com a febre dos que creem E vivo dele com o delírio dos viciados. Todas as minhas mentiras se fundiram E criaram essa verdade irreversível para mim: Eu passo! ... Oxalá, não tenha sido tudo inútil!

MORTE NATURAL Morreu como tanta gente sem campos de batalha, sem cama, sem palavras, no anonimato. Em troca das flores, velas ou lágrimas, comuns diante da morte, ganhou o aparato policial, a curiosidade popular e a manchete do jornal. Ele que pouco ousara ter tempo de beijar os seus beijou o asfalto à cem por hora. Morreu como tanta gente, no anonimato, atropelado pelo progresso.

TRANSMUTAÇÃO* Olhei o sol através de uma gota d'água e ele ficou multicolorido; a beleza está em que, a gota d'água, embora pequenina, transmutou o sol, aos meus olhos.

ANDORINHA** Fui súdito de sua beleza; fui certeza do seu amor. Hoje aceito dentro do peito saudade e solidão, qual andorinha ela partiu, pra ser rainha n'outro verão.

*/** - Micro contos/continhos

FOLHAS Mesmo quando te perdi, saí ganhando um sonho de criança e mais... Cantavas no portão uma canção de amor que falava em folhas mortas pelo chão... Quantas despedidas vãs fomos morrendo um dia, sempre e outro e mais... Ficou no portão aquela canção de amor que falava em folhas verdes do verão... Passo na mesma rua e vou lembrando aquele sonho de criança e mais... Ouvindo no coração a canção de amor que falava em estações e em jamais... Vivificadas imagens vão se formando por sobre um portão imaginário e mais... e as folhas caídas no ora solitário verão jazem no fundo da estação nunca mais...

VENTOS GAÚCHOS O vento que paspa as pernas é o mesmo que paspa os braços, o rosto, as partes internas, o resto e mais um pedaço. Às vezes se chama Pampeiro se da Patagônia vem gelando nos aguaceiros os ossos e a alma também. Outras vezes é Minuano, se dos Andes ele sopra, português ou castelhano é a milonga que ele toca. Ai que preguiça, guria, uma preguiça de morte, quero uma sesta vadia eis que sopra o vento Norte que, se tem companheiro, não é o Minuano, nem seria o úmido vento Pampeiro com sua neblina tão fria; 'tá na cara, é o Nordestão que agita o Litoral levantando todo o chão que revoa em areal... São ventos bem conhecidos deste Rio Grande amado abraçando embevecidos as belezas deste Estado sem paspar todas as pernas muito menos todos os braços, os rostos, as partes internas, o resto e mais um pedaço. Ventos que se dão ao luxo de se cobrirem de acento, de gauchos viram gaúchos sem lenço e sem documento.

HOSPITAL Ofegante murmúrio à vida perpassa cerram-se olhos à espera da graça, nasce uma criança, renasce o perdão! Em contrapartida à vida que entra, no quarto ao lado a morte adentra e ceifa outra vida, final de oração. Tristeza e alegria no branco avental vida e morte coexistem no hospital e a ansiedade do peito é opressão. Passos distantes, o silêncio é pesado, na luta incessante o minuto é contado como tempo bastante, embora a duração. As doenças e as dores ali tem lenitivo abertos ou fechados caminhos cativos, ida a eternidade ou volta a ilusão.

JOÃOS Ando cansado de perder, não ser, cair e levantar para cair de novo como aquele João-Bobo, o brinquedo, o João-Teimoso. Sei, não é só meu o privilégio mas a teimosia arrefece nem tudo é o que parece e o mar deixa na praia espumas a espantar tédio. O desânimo toma conta cada vez mais do espaço, das nuvens densas, tontas onde meu dia desmaia nas franjas desse embaraço. O que fazer, penso, agora, quando a luz se vai embora deixando-me só em mim mesmo? Faz-se mais que necessária a coragem de ser praia, mar e festejada dança de um futuro que se alcança e se constrói desde o ontem porque, sei, não há horizontes quando se perde a esperança. Mas, o cansaço que me pesa, traiçoeiro câncer que lesa as profundezas do ser, é o verdadeiro João-Teimoso que, sei, preciso vencer ou pelo menos, enganar, mudando o curso da história porque no pêndulo do tempo embalam-se os meus momentos, latifúndios de derrotas por grânulos de vitórias...

GIRASSÓIS Rasguem as entranhas do nunca com a força da fantasia, estalem os dedos da escuta lambuzem a barra do dia. Voem libélulas, efemérides, borboletas nos arco-íris das vindas ou idas das despedidas e enquanto o sino do tempo badala o som do amanhã, o hoje se faça consenso na flauta doce do ser. Voem libélulas, efemérides, borboletas a vida é frágil cometa no eterno céu do esperar. E enquanto brincam de tédio, enquanto buscam remédio a vida se deixa estar a vida se deixa viver. Explodam o aperto do antes em multicores facetas reafirmando o durante passeando neste cometa. Voem libélulas, efemérides, borboletas, libertem a alma, o sim da fonte, de todo o início e se dando inteiras, assim, despidas de artifícios sejam canções benditas no sempre-viva das horas pois que frágil, ainda e embora, a vida é infinita!

SEIXOS Solitário, passeio em meio a desordem do mundo varando madrugadas, bebendo ilusões e infortúnios no cálice dos aflitos, dos que têm pressa e fome mas não se entregam, nem o medo os consome. O néctar desse amanhã que ainda não existe impregna o ar, umedece minha pele e goteja formando alva e tangível a geada do crer que a febre da decepção se encarrega de dissolver. Doce andar por sobre a prata do luar cheio que brinca de criar sombras fugídias que espantam nada se compara, nem abala, esta silenciosa ida da dor marcada pela resignação do curar ferida. Não há que aquietar-se ante dúvidas ou consolos é preciso encontrar em meio a fadiga e o denodo, o hiato do tempo certo, entre a espera a realização, pois o hoje e o adiante, trarão o ontem, desbotado, na retrospectiva ineficaz do inventariar passado. E o mundo regurgita de mistérios, nuances de paixão enquanto varo a própria madrugada no improviso de me sentir inteiro, quem sabe pouco além de vivo para ofertar ao exterior o sol que penso ter e tenho como todo mundo e minha insensatez esconde. Andar e brincar com a vida, mãos e pés esfolados pelos talvez dos deserdados e mal traçados rumos sobre úmidos e escorregadios seixos transitados em busca daquelas manhãs que sequer consumo pelas franjas do meu agora que não vem nem passa. Sinuosos e repetidos ciclos que a morte espanca com o inevitável epilogo desta vida que a graça de um Ser Divino nos brindou e por fim estanca na desordem do mundo material onde tudo perece na infinita e presente surpresa que nos desvanece.

CONTA-GOTAS Em gotas anuais pelo conta-gotas do tempo conto meus passos. Refaço minha trajetória e respiro meus gestos bebendo a vida como pura água, cotidianamente na fonte do infinito, dela fazendo imagens, minha verdade e extensão. E sigo o caminho dos eleitos para continuar a caminhada sem mesmo saber os porquês que me assaltam e agitam ou quando e onde o fim se fará. Embora isso, sigo tranquilo rumo ao futuro, até a gota final. E pensar que tudo iniciou no acaso de um tempo e a vida se fez em microns e a morte virá por fim ao milagre...

SOBRE MIM Sobre mim os amigos dirão música, serão generosos em demasia. Dirão o que quero ouvir! Eu direi o que minha vaidade deixar, parcos defeitos, outras inverdades que acreditarei verdadeiras. Os inimigos dirão coisas que não sou, exagerarão meus erros e faltas extrapolando negativamente conceitos e danos. Como descobrir meu verdadeiro eu aos olhos isentos da realidade? Neste coquetel de extremos e meios-termos embriago-me com a vida e sigo, passos vacilantes, rumo indefinido, desconhecido e desconhecendo-me, sendo consequência e causa, outro e eu mesmo simultaneamente, real e artificializado carregando em mim Um eu que até de mim escapa!

SINGULAR Sou feita de pó e espinho de ritmo descompassado, de olhar perdido, recheada de riso morto e amargo. Sou o resto, sou passado em presente sem caminhos, sou refúgio e insegurança, venho de meu egoísmo recriando mil abismos nas agruras do futuro. Transparente, misteriosa, herança de amor vivido, por vezes sou cortejada sem ser dor e nem castigo, outras, sou desprezada por trazer a dor comigo. Fogo brando ou labaredas, realidade ou ilusão, carícias ou bofetadas, eu me chamo solidão.

O PASSEIO Ia Maria Uruguaiana a Porto Alegre vendendo vida e ria tanto e como ria a Porto Alegre. Era o passeio, carro do ano, tão almejado, anos inteiros, a Porto Alegre. Mas, de repente bate em Maria nos olhos turvos a curva em frente e o riso cessa cessa o instante e Porto Alegre fica distante. Perdeu o Porto grande alegria com a Maria que chegaria. Cheia de espera toda Maria que era linda, de Porto Alegre ficou na estrada, nem vinte anos, de Porto Alegre cheia de espera. Em geada fria a Uruguaiana retornaria e o passeio tão esperado ficou Maria Não consumado. Curva em Maria tanta existia à curva nada sobrou à estrada...

INDO Nem mesmo é antigo esse repetir-se em franjas de impossível ou inviável. Vai-se indo e pronto... Vai-se! No revestir-se, transvestir-se e mais reviravoltas do tanto realizável cai-se de equilíbrio.. cai-se! Nem só a madrugada é resultante do repartir-se dessa noite crua que se constrói a partir do dia. Lá, todas as trevas, relutantes absorvem luzes, estrelas frias nos infindáveis quartos de outras luas. E se repassam os ecos percorridos até o instante do eterno outrora, no ir e vir do misterioso agora...

MILAGRES* Caminha por sobre os perigos Seguindo as luzes do amor, Em volta estão os amigos Adiante aquilo o que for. Destranca dos lábios o sorriso A vida é milagre, é amor, Apreenda de seus improvisos Ou o sumo daquilo que for. E siga a estrada do sempre, Limites não há para dois, Acenda o infinito no ventre Do antes, durante e depois. É o sonho que acende a manhã Do hoje, do sim, do que for, Creia, há sempre uma canaã Basta viver para o amor. Mantenha os olhos abertos Pois são tantas as armadilhas Que o mal, o fácil, põem perto Nas encruzilhadas da trilha. Levanta após cada queda, A dor também é bendita, É pedra que junto a outras pedras Forma a escultura da vida. E quando não sobrar caminhos E o sol esconder-se por fim Lembra ainda terá passarinhos, Lírios no campo e a mim. Caminha por sobre as guerras, Nas mãos a oliveira da paz Expulsa o terror que se encerra No ódio doentio que ela traz. E quando morrer de cansaço, De dor, de não ser assim, Venha colher dos meus braços Tudo o que reste de mim. Caminha no sonho dos livres A vida é milagre, é amor, Aprenda ela é o que se vive Antes, durante e o que for...

* (Um poema guardado por minha amiga Ione Kusnecoff, escrito em 30/12/1988):

CAMINHADA Venho de longe, de viagens repetidas resultante que sou de vindas e idas. Chego onde o braço me alcança e a criança que fui torna-se adulta. Não trago migalhas ou vetos, nem portas ocultas ou gestos de nada, sou apenas minha própria história de pureza entretida e pecado formal. Sou um pouco distante do tempo de espera e agito o vernáculo na ânsia de ser ouvido, rebatizando o cotidiano na fé e na força, trazendo o inusitado como incerteza. Venho do meio da plebe, assumindo os riscos dos tempos verdades, etapas concretas e rimas. Sem prevenções, não me visto de alegorias que não a do pão, do circo e da vida. Venho e continuo vindo como tudo que passa. Olho a destreza do sonho e da realidade vagando em meio às minhas tormentas. Sou parte, jeito, antídoto e veneno sou todo e todo me entrego, me abro, me fecho, caminhando meu rumo, no rumo de tantos. Sou o que sou, o que fui e serei, venho e continuo vindo como tudo que passa.

PEDIDO Não quero ser resposta de tudo nem metrificar o infinito, antes quero transitar o verde e viver o simples. Só isso. Para que mistérios e sofismas se a vida é gratuita? De que vale o brilho, se cega e afasta os outros de mim? Não quero ser mito, nem mitificar-me, antes quero ser eu, e viver-me. Para que mistérios e sofismas se o amor é gratuito? De que vale o ódio, se corrói e expulsa a luz de mim? Não quero ser o só de agora, sem a fantasia do tudo adiante.

REQUIEM PARA EZOLDA Quisera ser doçura pintar de cor-de-rosa toda esta amargura estampada, dolorosa... Mas, que dizer enfim senão banalidades a dor desta verdade dilacera tudo em mim. Quando um coração para calam-se as palavras e a chuva da saudade irriga a realidade. É um sonho que termina na vida que se vai, silêncio que alucina no frio do nunca mais... Mas que fazer enfim senão juntar momentos guardá-los aqui dentro e continuar tua vida em mim!

ADEUS Vai, caminha na abscissa do tempo e na vertical da vida da resultante faça a tua extensão. Ascende-te ao firmamento, porém não tentes esquecer que na horizontal viveste e viverás teus melhores momentos. Anda ordenada, na desordenada devassidão do deus social, não esqueças o bem, não penses no mal. Prove o tempero da distância ou a ânsia da volta, não lastimes a espera, mantenhas o otimismo, pois o sal usado no batismo dá a pureza, o usado na vida, o mérito. Delicia-te com a doçura do reencontro ou do descobrimento. Vai, o teu passado tornará na curva do caminho e o teu futuro é a incógnita da perfeita equação que é a tua (a minha) vida e que enjeita a solução barata ou incoerente. Anda durante, pelo menos, um segundo na felicidade ilimitada e terás vivido bem mais do que muitos pensam tê-lo feito. Não mudes porque as coisas mudam e sim pela necessidade, pela procura da autenticidade. Não sejas poliédrica, mantenhas uma face! Tente sempre a perfeição embora ela seja também, imperfeita por não dar nenhuma chance a qualquer de nós alcançá-la. Busque o amor sem explicá-lo, o perdão sem defini-lo. Se possível, busque o prazer de viver sem a passividade dos fracos, com a vitalidade dos fortes, todavia evite exageros - os extremos são perigosos. Se acreditares, siga para o norte, apesar de te apontarem o sul. Ajudar a quem sofre é uma forma de evitar a própria dor, mas se ela insistir em conviver em ti, abriga-a como uma dádiva, ela será a chuva que regará o teu jardim, revigorará tua crença e reflorescerá tuas cinzas. Vai, a despedida não existe quando levas de mim uma lembrança deixando de ti, esta saudade.

PONTO E VÍRGULA Estava na rua e a frase surrada dita pelo velho amigo soava aos meus ouvidos antes como advertência do que consolo; não te preocupes, dissera ele, se uma porta se fecha, dez se abrirão. A fixação era que aquela porta fechada ainda há pouco presente, agora era passado e as dez referidas sem a precisão matemática representavam um futuro incerto e não sabido escondido no mutismo próprio do futuro todavia encravado em tantas vicissitudes que rigorosamente escapavam ao meu domínio. Analisei a situação, poder-se-ia dizer que me encaminhava às férias tantas vezes negadas mas não era essa espécie de férias que desejava e nada mais injusto do que tal descanso. Não era ponto final, isto eu sabia, no máximo aquilo representava um ponto inconsequente interrompendo uma frase quase período. Era evidente que gostaria de minimizar o fato dando-lhe a amplidão restrita de um ponto e vírgula. E lá estava eu, na rua, enfrentando a busca de, pelo menos conservar o status adquirido, sabendo de antemão que entre a oferta e a procura eu poderia oscilar na defasagem do tempo e me reter demais na indecisão. As grandes questões econômicas e políticas continuavam a gastar as energias do meu País e a minha questão, de mera sobrevivência gastava a energia do meu e de outros corpos próximos, além de muita sola de sapatos. E o mundo repassa em minha retina e percepção voltadas ao jornal de empregos, estava na rua como tantos outros e o ponto e vírgula quase significava um obstáculo gramático de rara proporção... E a minha questão se confundia com a questão maior do meu país subdesenvolvido, lá estava eu, com mil portas por abrir!...

CATA-VENTO Resumia-se o outono no cair de folhas e em tardes mornas, nada além. Um dia, fez-se um pé de vento e me colocou na estrada e desde aí não parei mais. Como redemoinho, procuro meu epicentro sem me livrar de tantas voltas e percorro a vida como se esperando, a cada instante, a calmaria. Enquanto o sopro da esperança empurra-me para a frente o vento da decepção me estanca, a brisa da moral me reanima. Sigo em frente, ou ré, mas sigo e por vezes tomo o rumo de todos os pontos cardeais rodando pela cruz, sem destino ou abrigo, sem encontro ou recado. Indo. Tento multiplicar o pão sem o trigo e apenas consigo o milagre de estar vivo o que, apesar dos pesares, gosto muito porque o inverno sei ao chegar resumir-se-á em um fechar de olhos e em tardes frias, nada além...

INCONSCIÊNCIA Acorda que a vida aqui fora te chama! Acorda, de qualquer forma terás o sono eterno e o drama extinguir-se-á como um sopro de acaso. Acorda, não te entregues a esse sono que te fará perder a consciência, entrega-te ao amor que fará perder o ódio e o egoísmo. Acorda, quero te ver desperta, acesa, desnuda de incógnitas, descoberta para mim que não tenho o sono que te rouba, descoberta para mim que não tenho o canto que te ganha, descoberta para ti que deténs a alegria que me falta. Acorda, estou esperando e já faz uma vida que espero e, parece, teu sono é tanto que não te dás conta, enquanto dormes o sonho mais lindo sou eu quem tenho. Acorda, eu espero a tanto tempo...

IMAGINAÇÃO* Encontrara sua amada após buscá-la inutilmente na realidade, reduzida a uma fotografia antiga em uma casa de antiguidades. Aquele rosto fotografado no alvorecer da arte fotográfica espelhava a candura, a ingenuidade que ele sonhara haver existido. Apaixonado por àquela imagem sabia que não a veria em carne e osso mas acreditava que a encontraria em um canto qualquer do infinito, lá onde os mortais penetram apenas com as asas da imaginação. Um dia, após violenta tempestade à sua frente fez-se o arco-íris rapidamente alçou-se à estrada colorida percorrendo-a em um sopro de vida. Com a chave que não soube explicar como viera ter às suas mãos, abriu a porta do céu e encontrou sua amada. A fotografia do início de um século transmudara-se para aqueles braços que o envolveram em sua paz e amor. A cidade inteira, enquanto isso, penalizada comentava que perdera seu cidadão mais pitoresco: um bom sujeito, louco e inofensivo que amava, como se o ato de amar por si só não fosse uma loucura, amava uma fotografia!

*Em algum lugar do passado

O DIREITO DE ESTAR SÓ Um dos gêmeos, revoltado resmungava; o outro, mais humilde, permanecia quieto. O primeiro estendeu-se comprimindo o outro e tudo não passava de uma provocação. Não estavam delimitadas suas áreas e nem cabia acordo. Ao mais forte, tudo! Enquanto se dilatava o ventre da mãe um sugava o alimento, o outro a fome; um o poder, o outro a servidão; um a exuberância física, o acinte, o outro a fraqueza, a humilhação; E quando vieram ao mundo ultrapassando o portal do indizível o esfomeado engoliu o seu ódio, o opulento engoliu seu orgulho e mesmo assim conseguiram permanecerem sós. Abortados, jamais viriam a saber que repetiram em um ventre de mulher o drama do ventre do mundo.

SOL POSTO E cai a tarde assim como a zombar de mim mostrando o que perdi, suspenso por um triz o sol morre infeliz como eu também morri. E tanto encantamento da dor, neste momento registro a olho nu e a cor da tarde calma esvai-se como a alma da tarde que foi tu. Mas, amanhã é certo o sol acesso, esperto, inteiro e renascido virá banhar de luz a vida que seduz a todos os sentidos. Cá dentro o meu sol posto expulsa para o rosto a noite em que estou, nenhum sonho me diz à frente o dia feliz da tarde que voltou.

POESIA EM PRETO E BRANCO Olha teu retrato refletido no vermelho desses lábios e a plenitude do mistério na escuridão desses cabelos e a alvura do silêncio transitando nessa pele. Olha o rumo e o tempo do vislumbre desses olhos e o mundo que repassa em rimas nesses sentidos levando em si o encantamento desse corpo. Olha a luz em contraposição nesses labirintos e a lucidez da fronte altaneira nesse etéreo formando a mulher no negro e branco da poesia vida.

À LUZ DOS CAMINHOS NOSSOS Eu quero sufocar tua boca em beijos mastigados, tontos sugar, na carícia louca, o sol deste reencontro. Eu quero refazer o dia, rasgada a loucura tanta, em céus de estrela guia no amor que comigo canta e assim percorrer a vida à luz dos caminhos nossos! Eu quero engolir-te inteira e sendo engolido tudo fazer do infinito a esteira do nós sem apelos surdos. Eu quero explodir sementes de sonhos em realidade amada viver nosso presente, matar esta dor cansada e assim reviver, querida, à luz dos caminhos nossos.

MULHER - II E assim te vejo e sinto, carne e sonho na lascívia do infinito chamado agora e do fundo de teu olhar, toda a vida e o desejo encontram a recíproca, revisitados no canto deste despertar. Tu mulher agora, bem mais que antes, ao acordar explodindo em meus braços não mais ouvirás murmúrios ou queixas de coisas e risos não feitos nem o lancinante grito de haver passado. Ao acordar, o corpo dirá, enfim corpo e o mundo será, enfim vida! E nos teus lábios e nos teus olhos a languidez de se saber enfim mulher e, em mim, o infinito de ser o homem!

LUA CHEIA Nem de perto sonhar mas é noite de lua cheia e a prata teima em ficar no espanto da escuridão. Pende em mim o acalanto que restou preso em meus braços, entre meus passos à lua cheia dos teus abraços. Afago mistérios passeando-os ao léu em céus que a escuridão desmente, plenos de luas e estradas curvas onde, por vezes sóis irrompem diletantes. Atento, não me visto só de devaneios, enquanto brilha fora um luar errante, cá dentro, meu peito esmaga os teus seios.

INVEROSSÍMIL Andar entre andares, mudo sendo a impressão do que se guarda no fundo, ao buscar-se o tudo lambuzado de sentir-se um nada. E se viver nisso, no milagre da alternância do incontrastável explodindo a cheia que consagre o impossível e o improvável. E continuar entre os absurdos (surdo a apelos, entre outros surdos) colado ao pêndulo das horas chegando e tendo de se ir embora. Do paradoxo, na banalidade do ser-não-ser desta eternidade viver o agora é o grande prêmio da loteria do passar efêmero. E a música segue, algo diluída entre harmônica e dissonante nos infinitos presos aos instantes indefinidos que chamamos vida.

TÍTERES Antes, embala os rumos do agora pela destreza dos ventos e não te envergonhes de ser criança eis que é duro deixar de sê-lo e nada se acrescenta quando, exceto que tudo se perde. Não me julgues pior do que sou, nem envenenes meu pecado com o mal que não tenho. As questões se bifurcam desdobrando estradas e vias sequer sonhadas ou queridas, levando-nos aos mistérios de amanhãs insuspeitados e a presença do inusitado determina, no bailado da vida, a extensão do palco medido nos milímetros da corda bamba. Logo ali... O inferno!

EU NÃO SEI Eu não sei se pensa em mim, mas eu em você penso sim. Eu não sei se sonha comigo mas eu muito sonho consigo. A flor nasce à vida? à morte? O homem tem ou faz sua sorte? Eu não sei e nem compreendo a dor que sempre vou tendo. Eu não sei, confesso não sei se foi o bem ou o mal que dei, se tudo o que tinha a dar eu consegui ou não realizar. Quem não sentiu no amor um gosto amargo de dor? Quem nesta vida que passa não conheceu a desgraça? Quem não deixou na esperança um sonho sonhado em criança? Eu não sei se existe a saudade, se a vida em si é bondade. Eu não sei se vivo ou se morro. Eu não sei se paro ou corro. Eu não sei se sou o que sou. Eu não sei se fico ou se vou. Estou perdido na vida, no nada, não encontro saída ou entrada, até o vento me consegue levar e não sei onde e quando parar. Eu não sei se sou Deus ou sou pó Eu só sei que me sinto tão só.

LUME Não tenho medo de morrer! Tenho medo de não viver! Eis o pecado que não quero na ânsia do ser e do que espero deixar escorrer entre os meus dedos o agora desta vida que vai cedo! Viver e estar vivo são diferentes sem ser conflitantes: Estar vivo é significativo! Viver é significante!

PINGOS DE CÉU Chovia. A chuva açoitava, com grossos pingos, a vidraça da janela. Um pingo correu celeremente em toda a extensão do vidro frio ... Perdeu-se no anonimato. Outro pingo recebeu companhia, cintilou, reviveu provou que, ainda, dois é mais que um. Tantos pingos, alguns sós outros acompanhados, descendo açodados a vidraça impessoal para reunirem-se na esquadria, para perderem a forma, a individualidade em holocausto ao todo, ao infinito. A humanidade é pingo na vidraça do mundo. A vida é a janela para a eternidade. Quantos pingos correm celeremente e se perdem no anonimato? Pingos desiguais no formato mas, no fundo igualados pela procedência, todos irmãos da razão. Pingos sós e acompanhados marchando na lividez do tempo. E, após percorrida a vidraça impessoal, chegar à esquadria não importará o porte e sim a substância sem ânsia, na morte da matéria o nascer para a vida que é o destino, uma célula apenas, do Universo divino.

ACIDENTE Um carro em alta na rua baixa canta pneu ... Um baque surdo bradou bem alto o que ocorreu ... Um corpo rola como uma bola cheia de adeus ... E o carro em alta na rua baixa sangra pneu ...

DIÁLOGO "- Cada passo é um passo rumo ao tudo ou ao nada; cada finta é uma deixa de todas as queixas ou de contos de fada; cada gesto um abraço ou um triste rechaço de alguém em alguém; cada seio é um regaço de quem vai ou quem vem." "- O que sabes da origem dos mundos? do como, do porquê do profundo filosofar que te envolve e tantas vezes te cala? Anda, brinda com tua fala, desenvolves o brilho no ouvinte zeloso que embora orgulhoso de ver o filho com tantas opiniões, sem querer uma polêmica lembra-lhe que há situações em que a lógica acadêmica com aparente razão não nos deixa sentir importantes mensagens vindas de nossos corações. Por isso pergunto o que sabes de tua própria origem? Que sabes dessa coisa gozada, engraçada, indolor para alguns e tão complicada chamada Amor?" "- Pai o amor é...” "- Não, não tentes defini-lo porque de um mortal Ele não merece uma definição; tente senti-lo, apenas senti-lo, é nossa mais humana ação; talvez não descubras a origem dos mundos, mas descobrirás tua própria origem e analisando mais fundo verás que o nada só existe onde falta o Amor!" "- Puxa, pai, o filósofo era eu assim eu pensava, mas você ..." "- Sei disso filho, mas vê um filósofo sem amor é uma casa sem vida, é a noite de um dia. Para que não seja vã tua filosofia, não seja pagã, nem noite de um dia, meu filho, jamais esqueça: some o coração à cabeça!" "- Obrigado, meu Velho, cada passo é um passo rumo ao tudo, cada finta é uma deixa de todas as queixas, cada gesto, um abraço de alguém em alguém, cada seio um regaço de quem vem e não vai!".

DIRETRIZ Quebra a estrutura do não e repete o prodígio do som nos lábios de tua aurora. Não te prendas no ontem eis que teu amanhã é e o vento acaricia teus passos. E o rumo é o sempre! Basta de improvisos e improvisar-te sendo antes o que não és, depois o que não foste. Identifica-te no rimar dos sonhos e na busca da realidade sendo hoje o que mereces. Quebra a estrutura do não e repete o prodígio do sempre!

DO PONTO DE VISTA DO CRIMINOSO OCASIONAL Sinto o peso do mundo sobre mim, pesa-me uma vida mais que a morte. Tudo se conjugou para o resultado que extinguiu o sonho, estripou a força e, sem ânimo, prostrou a realidade. Vertiginosamente ruiu a fé, o poder e me vi impotente diante de um corpo. Só e fraco, vazio e torpe, vi meu ego retratado em tantos monstros. Instrumento, causa ou consequência, não importa, fui cada uma das coisas ou adjetivos, todas elas, tudo. Interrompi uma trajetória, uma luz que não era a minha e, mesmo que fosse, não tinha tal direito. A partir daí fez-se tarde, falta, fardo e medo fez-se ausência de quem nunca tive. Fui o epílogo inesperado e algoz inserindo em meu próprio livro o amargo capítulo de minha culpa e a certeza triste de não haver desculpa. Continuarei a caminhada, a dois, levando minha vítima comigo, eu também vítima do meu passado.

ROTA Estrela cadente que engana o viajante que busca no céu os caminhos da terra, os caminhos da vida, os caminhos da luta, os caminhos da sorte, estrela caída de uma quimera. Estrela cadente, ideal de ventura que vi e vivi em dois olhos morenos ...

LENDA DA GEADA Na noite tão linda Vestida de prata Caiu o orvalho em forma de pranto E toda de branco minha pampa adornou E a noite de prata mais prata ficou. Piazito eu era, vovô desvendava Os mistérios do mundo pro neto guri De todos os contos o mais lindo que ouvi Dizia que a geada era um choro gelado De um qüera que há muito tempo atrás Foi tropear o Cruzeiro do Sul. E apesar da beleza do campo celeste Do fulgor, da magia de sua tropilha Por vezes retorna em sua retina A imagem saudosa do pago terrestre E quando ele chora o rebanho acompanha De tanta tristeza que a tudo resfria Parando o minuano na noite que é dia ... E quando geava, vovô repetia O qüera de novo da pampa lembrou e a paz do seu pranto a pampa abraçou... O minuano murmura no ventre da terra Enquanto ele chora a saudade incontida Cantigas de inverno, história que encerra A alma gaúcha no ciclo da vida.

DE ÓCULOS ESCUROS Hoje, estou a olhar o mundo de óculos escuros e vejo tudo cinza... Desanimo ante a perspectiva de enfrentar meu dia e a natureza contribui para esse desânimo, está quente, grave, abafado. Apesar disso tenho de fazer o que faço sempre agir no mesmo diapasão e dedilhar o conhecidíssimo teclado da velha máquina de escrever, cair na mesma rotina cheirando a mofo. Quando menino colori meus óculos de cor-de-rosa, depois várias cores alternaram-se nas lentes exceto a rosa que, agora sei, não mais virá. Ao verde da adolescência sucederam o vermelho, o amarelo, o lilás e este cinza que me cerca e me força a usá-lo cada vez mais mantendo-o, possivelmente como símbolo do azedume recolhido ao interior de meu ego durante minha própria campanha na vida. Espero que minha decadência física, amanhã, seja minha ascendência moral e possa cobrir de branco o conteúdo inócuo trazido nas lentes da reminiscência. Por enquanto e pelo menos, hoje, estou olhando o mundo de óculos escuros e posso afirmar, com toda a certeza, não há beleza no que vejo!

MUTANTE Sou tão velho quanto o tempo e tão novo quanto a eternidade. Não sou a medida cronológica que querem me atribuir; não me divido em partes sou um todo! E com essa responsabilidade a cada instante me renovo, me transformo em mais eu mesmo. A todo instante me submeto ao teste de viver; renasço em cada esperança, após morrer em cada decepção; com isto, sou velho e moço, simultaneamente e misturo minha finitude com o infinito de minha própria extensão. Eu!

ANDORINHA Eu fui um súdito de sua beleza, eu fui certeza de seu amor e caminhei sob a leveza sem ter tristezas por seu amor. Hoje, aceito dentro do peito esta saudade e a solidão, qual andorinha você partiu pra ser rainha n'outro verão.

FORÇAS Arrombaram sua intimidade e retiraram o hímen de sua fé e força. Desnaturada manhã em que o sol não veio e o sonho trombou com a realidade. Estava ali, tresloucada, deteriorada, como gente sem adjetivos, fria e chuvosa ... Conhecera a fome material, imaterial, a fome de tudo. Era carente de si mesma. Aquela água passava sob a ponte, quisera ser ponte mas se confundiu tanto com águas passadas... as esperadas nunca vieram. O rio a chamava, a vida lhe fugia em meio a ficção que revestira sua brisa. Agora tudo era iminente e sujo e fraco ... A cabeça, o pensamento, a empurravam: Passa da ponte à água e tudo será passado, molha o corpo apaga a ideia. Descansa, enfim! O mundo passando pela ponte, apressado, problematizado, se enfrentando, dilapidado, indo. O corpo inerte, fraco, ali permanecia quieto, cabeça e pensamento revoando sobre as águas que, mansas, pareciam dizer "Vem! ... Vem!" ... De repente, dentro de si o chamado à vida, à luz. Passado o êxtase do desencanto, atrelou-se ao sol, lá adiante a vida continuava distante e alegre, triste e presente. Rindo. Chorando. Vida! Ponte e estrada aceitou o convite e se perdeu na multidão. A fé se revigorara na dor solitária e aguda do desespero!

NO ESPELHO Tu que me falas desse modo com a autoridade da aparência e, na essência, te manténs indiferente nesta estampa que deténs: Nada és! E me informas: Nada sou também! Do espelho, essa imagem me provoca e desloca à estampa envelhecida, os pesares que os anos a cercaram. E assim, muda, falas e me espantas dançando impune na frieza do aço escancarando essências transparentes. Tu, oposto e aparente, percorres o fio da existência que passa ao largo em vicissitudes que os fulcros mostram. Tu em mudança, o eu que está agora, o eu chegado do que tu demonstras, aparentemente, em verdade, aparentemente...

DESILUSÃO Eu o forte. Nada vendo em teus olhos, vi além, o reflexo dos meus. E me enganei! O espelho assim me trouxe ilusão e o irreal. E sozinho amei, inventei e arrebentei de nada. Eu o forte. Eu meu nada!

ENQUANTO ME AMAS Enquanto me amas eu sou a essência e a substância do sonho. Enquanto me amas a saudade fica de fora e o vazio se ausenta. Só tu existes. Só tu és mundo. Eu vivo o doce de teu beijo e o linguajar sublime do teu corpo.

BOLINHA DE VIDRO Novinha, a bolinha de vidro era usada alegre, Batida, estalada, entre as bolinhas Companheiras ou inimigas Das mãos do menino às mãos do acaso era jogada De tanto usada, de tanto batida, acabou lascada, Jogada, esquecida, na lata do lixo. Da lata do lixo para o lixo da terra E lá se vai o tempo, não se vai a espera. Enfim, chega um dia, improvisado No menino usado que revolve o lixo Buscando o alimento, o brinquedo, o quem sabe E descobre a bolinha de vidro lascada e sua. Usada de novo, batida estalada, Lá vai a bolinha , nas mãos do menino, Feliz o menino, nas mãos a bolinha Que se refazia no ciclo da história. E o ciclo se fecha. A bolinha de vidro fragmenta-se e pronto, mas não perde o encanto: Reflete colorido o sol Que, atrevido, a possui sobre o lixo.

ELIPSES E assim a força centrífuga me atinge e o mundo roda E a roda sou eu... Em nada sei e penso. Embora o receio e a curva, Sigo empurrado e sacudido por sonhos E o sonho sou... Em tudo sei, o escuro... E o remoinho dos passantes e certezas Aderem-se ao menino E o menino sou, de espirais incertos. E perplexo, consigo o nada e o tudo Inventando a vida E a vida sou, desfolhando cinzas. E rodo à curva, o tempo corre E movo o novo do infinito hoje E o hoje sou, em amanhãs que tenho... E o mundo meu se chama enigma E rasga o antes e o depois E o antes e o depois sou, em mim o espaço Como tempero de todos os meus tempos Que este tempo urde A curva próxima espera-me em seu todo De recriar mistérios ao menino moço...

MONÓLOGO Neste jeito de conversa Bota a tristeza na mesa, Não reduz o teu talento E dispara teus momentos. Solta a língua com vontade Contrariando este recato Que manténs por conveniência Diante da autocensura E te afasta da mesura Que te envolve como ciência Levando o teu evento Ser apenas marco chato De um mesmo cotidiano Que repete este teu dia Transformado em teus anos Tudo igual sem consequência. Neste jeito de conversa Bota a saudade no bolso, A estrada em tua mão, O teu eu em teu retrato E te despe e te refaz Sem ser tema nem parágrafo, Fala o quanto tu quiseres De escutar estás morrendo... Fala que eu estou te escutando E não sou a tua consciência E não sou o teu passado E não sou o teu momento E não sou o teu não sei... Fala que eu sou o vento Sou tão forte e tão vazio, Sou o céu que nada escuta Sou a estrela que iludiu... Quem afirma que caiu... Sou a cama que te abraça Sou o sono que te envolve Sou a lágrima que é graça Que ao riso te descobre. Bota a tristeza na mesa, A esperança em teu rosto E sorri para o teu jeito, Para o jeito do teu mundo E compreenderás que o tudo Não existe sem o nada! Fala tudo que te escuto, Sou a tua alvorada Que escapou de tua noite E vem brincar em teu dia, Na magia do vermelho Desses olhos inchados Pela chuva do passado. Neste jeito de conversa Manda a tristeza à mesa E teu tempo será o outro Fala tudo que quiseres, Solta a mágoa para o mundo E teu tempo será outro...

UNIDADE Vejo você por dentro de mim, vejo você saindo de mim, vejo você pedaço de mim e extensão de mim em você. No desaguar da cachoeira, na ilusão das estrelas, na sutileza do implícito, sinto você em toda parte, aqui, ali, no infinito você e eu estamos juntos. E juntos caminhamos sem pressa o rumo da vida, o rumo do nós, você em mim, eu em você, somos um, sem paradoxo carne e sangue, céu e mar, pleno de sonhos, enamorados.

FERMENTOS As amarguras são fermentos que fortalecem o ser nos ensinam que a dor do pranto é o início do reverter. Mas, para que tanto em um só momento, não posso mais, passei do ponto nos desencontros, não posso mais. Mais que sozinho perdi o caminho na escuridão. De amargo quero apenas o amargo do chimarrão e quando o sorvo em goles pausados líquido verde bem temperado, com gosto d'alma do meu rincão, a esperança aquece a mente e o passado vem para o presente...

DISFARCE Disfarça! Na farsa da fé espalharam o terror, o ódio, a discórdia, a desgraça e a fome que grassa os mantém em pé. Disfarça! Os comparsas do ter se encontraram nas trevas malmequer que os cega e se espalham na terra morte a paz, viva a guerra e morte ao ser. Disfarça! São loucos, fanáticos, lunáticos d'alma devassa que geram desgraça em nome de Deus, da crença suicida em cadeiras no céu e assim imolam ao léu, no altar da cegueira, o milagre da Vida. Disfarça! Dementes, pirados, coitados órfãos de senso, instrumentos da dor, sem luz, sem amor, de teologia pagãos são párias, sem ressalvas, da maior das verdades: só o amor é que salva.

PASSANTE Peguei na tesoura, tosei os embalos D'uns tempos de ida que volta não tem Fui muito mais que ao fundo da grota Buscar encilhado o cavalo do além. Por sobre seu lombo voei nas campinas E das nuvens meninas colhi o orvalho Fazendo cambotas me perdi dos atalhos. Vestido de açoite, guaiaca e pataca Pudera estar sóbrio no baile da vida Pudera ter rido, sem dor, sem ferida. Rodei no galope em meio a manada Daquele guri já não resta mais nada Disparo palavras trançadas à navalha. Dividido em sobras que o vento guardou Sou antes o que fui, nem fui o que sou, N'alma forjada na dor que estraçalha.

MILONGA DE RENDIÇÃO Segui teu conselho, ensarilhei o relho, Amarrei o cavalo e tropéis de estalo Agora, penso muito antes de agir, Sei bem mais para onde e como ir e os pesadelos, encrencas e novelos, Se foram para longe de mim. E a vida voltou a sorrir por ti, minha doçura, meu bem e minha cura. Descubro a Pampa na tua estampa sem sombras do agreste no amor que deste E nele preso só por te ver, libertei o meu ser Agora a quimera pilcha este qüera Não mais me atrapalha o fogo de palha Por tua ternura, tua doçura, não sou mais quem era... Milonga, minha milonga, milonga de rendição... trago teu ser marcado no fundo do coração...

E TUDO MAIS SE VAI Em voo rasante a águia apanhou sua presa e na torturante surpresa a presa desatinada passou sua vida a limpo, mais que isso diante disso, da morte que a sorte lhe reservara (ou azar, qual o norte), viu-se só em seu destino no desfecho de seu nada, a presa coitada... A águia, por sua vez, caçadora sem piedade que à vítima rapinara e nas garras a apertava seguiu rumo ao ninho matar a fome da ninhada. A natureza é assim, boa ou má, vazia ou cheia, dando o mel ou a ferroada, própolis ou a colmeia, e como tudo, depende a ocasião e/ou protagonista vida e morte, no recheio os perigos aos artistas. No percurso, da águia, da presa, da espécie, nasce, cresce, a vida segue seu curso, fenece e o novo empurra o ontem para o infinito jamais que a tudo mais e muito mais, se vai... e esquece.

ORAÇÃO DO AFLITO Valha-me Deus, tenha o nome que tiver, seja Homem, seja Mulher Espírito, Verde, Vermelho a outra face do espelho o Sim, o Não, o quem sabe. Valha-me Deus nesta hora, em todas as demais horas, mas nesta, em especial, traze-me a benção, a alegria, Tu que és Luz e Energia. Tupã, Jeová, Alá, Oxalá, seja lá o nome que for se És, como creio, Amor, Valha-me muito o Senhor pois perdido estou e morro se não me deres socorro...

TEIMOSIA Seguindo a regra geral vou caminhando... mal! mas caminhando meu próprio passo, sem treta, sem muletas, troçando do azar pelas gambetas... E quando pareço mais trôpego do que o normal é porque estou convalescendo de pealo recente sendo certo que à cada queda levanto-me mais gente. Provo, pela realidade, sou um teimoso e ponto final mais que um milagre sou a prova de que Ele existe tanto por estar vivo, tanto pela razão que persiste na esperança e vida que se soma em cada qual. Mais vale um teimoso derrotado, temporariamente, do que um néscio triunfante além do temporariamente, vivo e o que é que tem e se bobear morro também.

COMETA Veio do acaso que a ninguém pertence da luz que cega mais do que ilumina e todos foram pegos na armadilha... Ante a menina, os vassalos, ajoelhados ofertaram flores sem espinhos ou pecados e perfumavam seus sonhos indecentes... De tudo aproveitou, o fogo fátuo, exaurindo as almas das presas encantadas e, buraco negro, não devolvia nada... Como veio, partiu, deixando ocasos não mais menina, luz, paixão, acasos, fugaz passagem que não deixou rastros...

NENHUM POR NÓS Flutuo em tua praia sabendo-me sozinho e só em mim desmaia o escuro do caminho. Na luz desse dia que o sonho anuncia navego, me entrego... Tu, na mesma praia, muito mais sozinha, d'outras madrugadas feres de espinhos às flores anunciadas que não formam ninho. E a noite do enfim sós aborta o dia não nascido e no escuro da indiferença jazem corações e crenças e em nós e em cada um morre o plural jamais vivido do pelo nós, nenhum...

NA TRAVE Passaram-lhe a bola no tempo e espaços certos porém não estava no lugar quedara preso do incerto que o titubeio esfola na sina do não chegar. Enquanto isso, aceso o zagueiro passado tomou-lhe a frente como sempre, sem pejo no tranco pesado e estancou o repente. Mais um gol perdido Mais uma derrota fracasso rotundo. Novamente o quase tido desviou sua rota à linha de fundo. Quem sabe, adiante, n'um futuro jogo como em raras vezes no sim do durante, mesmo no malogro, estufará as redes...

CONTINUÍSMO A humanidade, no alvorecer do terceiro milênio geme à busca, por qualquer meio, dos inteiros sempre perdida em emaranhados de problemas prostra-se à eternidade dos esquemas fracassados. Nada vê além do umbigo, momentos no escuro, o egoísmo corroendo o agora, futuro, pensamentos pensa inocente que nada fica na corrida dos segundos exceto a dor que estraçalha os trajetos deste mundo. E o escárnio estancou o riso, fez do abraço o açoite e do latifúndio da ironia brotou o espaço da noite dilacerando o dia que morreu triste, sem aviso, preso às queixas do cotidiano, sem improviso. Assim se esfola inteiramente a humanidade em tristes e obtusas figuras dos jogos difusos dos seres gregários que arrastam pelas cidades os pesados fardos de seus egos sós, confusos.

INSTABILIDADE Logo à frente o medo de se saber "quem sabe" vulnerável, infinitamente vulnerável e o eufemismo do hoje indo antes que se acabe resfriando sóis e luas do amanhã instável. Tudo isso, sei, virará pó ao longo do caminho dores, alegrias, medos, fobias, azar ou sorte, retornarão às franjas do ido, enfermo descaminho de tanta vida que se desdobrou em morte. O hoje que passa, em si só não se basta ainda que somado ao ontem desperdiçado no amanhã que ainda não veio e arrasta os indecifráveis teoremas do passado. Rebeldes astros de órbitas irregulares não sendo frascos, aprisionam perfumes sulcando traços e, apesar dos pesares, irradiando a efêmera luz dos vagalumes.

RETRATO DO AVESSO De súbito, entendi! É o tempo o senhor Sou apenas o súdito Sem queixa ou pudor. Então, assim, percebi Que o sim e o não Em qualquer versão Ou mesmo endereço Não tem razão de ser Ou ter, tudo é começo. Minhas escolhas São folhas soltas Que reprimem orvalhos Do ontem, de atalhos, Que sem me dar conta Despedacei em tédios. Pretenso remédio Que não faz a cura Das tantas juras Do inalcançável Que indisfarçável Em mim repousa. Presas do tempo Todas as coisas O bem, o mal Ir-se-ão sem ter O som do agora Do meu sofrer E dos gozos meus... Todos sabores, ao final, Dos meus amores, De minhas dores, No agridoce do adeus.

CRISTAL Sabemos que o tempo parou naqueles tempos, enamorado! Ficou em nós, sem ter passado. Ficou além do horizonte, na luz, suspenso no ar e a dor, então, se fez ponte para a saudade passar! Passar, ah, quem pudera voltar ao tempo que era em cores vivas, total, um lindo sonho de cristal!

REFLEXO Dize-me que olhas e me reconheces naquele verso lido ao acaso, miragem em verdade, não vistes pois esqueces que só o olhar dá beleza à paisagem. E assim me amas e por isso vês o teu amor refletir-se em preces que estão n'alma e olhos, no que só o teu amor aumenta, engrandece... Dize-me tanto teu olhar, imagens de inusitado belo, de passagens sublimadas em cores e matizes. E saem à vida, ao amor, mensagens de paz, felicidade, paisagens das maravilhas que assim me dizes.

CINZA-ROSA Ela nem tinha o que dar, esperava bem mais do que eu podia dar enquanto eu, do amor que imaginava bem cedo soube, não lhe ia bastar. E logo adiante, o fim, o ir embora deixando para mim o esquecimento e este passar e não-passar de horas de êxtase e amor, ódio, arrebatamento. Quero chorar o amor mal resolvido embora por amar sozinho tenha sido bem mais feliz que ela, em verdade Posto que a chama deste amor antigo consumiu esperanças e se fez abrigo deste cinza-rosa chamado saudade.

RECOMEÇAR Não há mistério na sutileza que pomos à mesa neste trivial encontro tarde, vindo do antes que neste instante vive outra vez. É na medida, tom verde claro batendo à porta desta manhã. Ah, o nosso amor, o amor de tantas voltas, mesmo lugar, é pão da vida, é pão dos sonhos que nem chegamos a fermentar. Ah, tempo para recomeçar, tempo desse nunca mais, para perder, para ganhar, vamos à mesa desta manhã, ao pão da vida, ao pão dos sonhos, recomeçar, mais uma vez, recomeçar, viver de novo...

ATO DE VIVER Não chores o passado nem premedites o futuro. Por pior que seja a realidade a surpresa, por seu inesperado traz um misto de vida que renova mesmo doloridamente a carne e o espírito. Por isso, aprende a viver teu presente como se ele fosse teu último momento e dessa forma reterás todos instantes e formarás a auréola de felicidade que todos pretendem encontrar: nada escapará à vida, tudo será vida. Não esqueças porém que o ato de viver não impede o ato de amar: Um é essência do outro! Amar a vida deve ser não só um desejo como também um oceano real e atuante onde naveguem corpos, espíritos e sonhos Um dia navios cansados, cascos arrombados naufragaremos no desconhecido, apesar disso o mar continuará nos retendo e vez que outra olhos curiosos, despertos, revirarão o pó e recomporão nossa paisagem. A história não deixa em paz, perenemente, seus integrantes. Vive pois o teu presente que logo será passado, história, viagem e de tua vida outros se ocuparão, por certo!

PERSPECTIVA Não se abraça a essência do vento e ele impune nos bate no rosto levando consigo nosso pensamento que vaga no espaço de nossa ilusão. Não se cobre o curso do firmamento e ele impune cabe em nossos olhos agindo em sorrisos perdidos, amados, retendo consigo nossa imaginação. Nem se vive a verdade da vida que como o vento nos agita o rosto como o firmamento nos cabe nos olhos e como o amor ficou para amanhã.

DEIXEM-ME O AMANHÃ Tirem-me tudo se assim entenderem que mereço exceto o amanhã que não tenho, nem conheço. O homem vive de perspectivas, de fantasia, da utopia e seus adereços e o que paga pelo hoje que já vai ontem é resultado de suas ações e omissões, justo ou injusto, paga-se o preço. O amanhã, que nunca tenho, pode trazer em suas dobras o que me falta para só ser inundando o leito seco do riacho do agora com águas puras originadas d'outras auroras e meus excessos na dor que espanca nelas banhados renascerão em esperanças. Vida na vida, sonho encantado, o avesso destes tempos rudes que vivo e sei, mereço tirem-me tudo, menos o amanhã que não tenho e nem conheço.

ACRÓSTICO (à minha filha) Do alto desses meus anos Escalo o meu futuro Sou zero em desenganos Infelicidades ou escuro Recém liberta das fraldas Estrela, manhã, grinalda Estirpe de "pelo duro". Alegre cresço e apreendo Lições que me são dadas Feitos, ternura que entendo Olhando exemplos em casa Na razão, no sentimento, Sou arco-íris, firmamento, O sonho que me embasa. Por tudo isso, o sorriso Esplêndido que me ilumina Reflete o que idealizo Relva, flor, sol e neblina. Os meus anos, a vida brilha, Na incrível maravilha Em ser mimada e menina.

ÍNDICE A Demissão/33 À Espera do Amanhã/11 A Infância Perdida/28 À Luz dos Caminhos Nossos/61 À Minha Musa/23 Acidente/68 Acróstico/96 Adeus/52 Andorinha/74 Ato de Viver/93 Ato Falho/31 Bolinha de Vidro/78 Caminhada/50 Cata-vento/56 Cavalos de Batalha/26 Charla de Balcão/20 Cinza-Rosa/92 Cometa/87 Conjectura/17 Conta-Gotas/45 Continuísmo/89 Cristal/91 De Óculos Escuros/73 Deixem-me o Amanhã/95 Desilusão/77 Diálogo/68 Diretriz/70 Disfarce/83 Do Ponto de Vista do Criminoso Ocasional/70 E Tudo Mais se Vai/85 Elipses/79 Enquanto me Amas/77 Escuta/16 Estática/30 Eu não sei/64 Fermentos/82 Folhas/39 Forças/75 Girassóis/42 Hospital/40 Imaginação/57 Incógnita/27 Inconsciência/57 Indo/48 Instabilidade/89 Inverno/30 Inverossímil/63 Joãos/41 Juntos/14 Lenda da Geada/72 Lua Cheia/62 Lua Nova/29 Lume/65 Meneios/33 Metamorfose/24 Milagres/49 Milonga da Rendição/84 Moleque Engraxate/32 Monólogo/79 Morte Natural/37 Mulher – I/14 Mulher – II/62 Mutante/74 Na Tarde do Sábado/13 Na Trave/88 Nenhum por Nós/87 Ninguém/37 No Espelho/76 O Direito de Estar Só/58 Oferta/15 O Passeio/47 Oração do Aflito/86 Passante/84 Pedido/51 Perspectiva/94 Pescaria/12 Pingos de Céu/66 Poesia em Preto e Branco/60 Ponto e Vírgula/54 Prefácio/5 Projeto/26 Prostituta/17 Quem é Cristo?/21 Rancor/16 Recomeçar/93 Reflexo/92 Regaço/16 Regras do Agora/20 Réquiem para Ezolda/52 Retrato do Avesso/90 Rota/71 Seixos/43 Singular/46 Sinto que Estou Só/18 Sobre Mim/45 Sol Posto/59 Stress/21 Teimosia/86 Títeres/64 Transmutação/38 Um Sopro de Vida Apenas/11 Unidade/81 Ventos Gaúchos/39 Visão/23 Itagiba José

segunda-feira, 13 de março de 2017

OUTRA DO MOLEQUE – O DIA QUE QUASE FUROU O OLHO


Eram por volta de 16 moleques brincando de “Padeirinho” naquela noite, sempre ali, sob a luz do “foque”, única claridade vinda através da lâmpada de não mais do que 100 watts que iluminava a esquina da Sete (de Setembro) com a Vinte e Sete (de Outubro) emprestando brilho ao letreiro pintado na cor vermelha que, em grandes letras, identificava o bolicho (armazém) “Ferro Carril”, do Sargento Camargo, depois herdado pelo Enio “Encrenca” e, bem depois “tocado” pelo “Fulô”, ambos, somados a vários outros, filhos e continuidade daquele, do Sargento. Aind sob o peso do luto pelo falecimento de sua querida avó Nana, escancarado na camisa preta que vestia, o Moleque participava da brincadeira que consistia em vários personagens separados entre si por mais ou menos um metro e distribuídos em forma de roda, com um deles, o “Padeirinho”, no meio da roda, escolhendo um dos componentes desta, para o qual perguntava “tem pão?”, enquanto isso, os demais eram obrigados a trocar de lugar e, nesse troca-troca, sobrando um lugar o mesmo seria ocupado pelo “Padeirinho” da vez desde que fosse suficientemente rápido e aquele que ficara sem lugar na roda a partir daí era o “Padeirinho”, até que...
A brincadeira em si proporcionava muitos momentos hilários e incontáveis confusões entre os participantes; ninguém queria ser o “Padeirinho” e a cada pergunta deste (“Tem pão?”) todos se movimentavam entre si, trocando de lugar, quase sempre, ocorrendo congestionamentos diversos, quando vários se dirigiam ao mesmo tempo para um único lugar, dando para imaginar e até ouvir os sons, ainda agora, da algazarra desencadeada pela gurizada, toda balbúrdia e algaravia daqueles folguedos...
Tudo transcorria dentro dessa inesgotável energia destravada na brincadeira quando surgiu um retardatário pretendendo dela participar; a práxis era de que o retardatário ingressasse como “Padeirinho” substituindo o da vez, enquanto que, para início, a forma usual para a escolha do “Padeirinho” era aquela corriqueira, a do “par ou ímpar”, jogo em que o moleque era um péssimo praticante e por isso e quase sempre era o primeiro “Padeirinho”.
Aranha, o guri que chegara atrasado, quis burlar a regra e se posicionou entre os Joãos Carlos, o Imbido e o Melena, que o expulsaram dali, não sem antes Aranha, um gozador por excelência, enfiar as mãos no traseiro de cada um, a direita no do Imbido e a esquerda no do Melena; Imbido saiu em perseguição para dar uns peteleco no Aranha que corria e gargalhava em volta da roda, Melena um tanto quanto preguiçoso e mais belicoso, se agachara buscando munição achando uma pedra e seguindo a trajetória em curva de Aranha, a arremessou por sobre a roda para atingi-lo...
Neste exato momento, postado em sentido diametralmente oposto a posição onde se encontrava Melena, estava o Bia, irmão do Sérgio “Da Porca”, guri alguns centímetros menor do que o Moleque e agora, na roda, localizado ao lado deste, alheios aos acontecimentos protagonizados pelos Joãos e Aranha, ao ouvirem o “Tem pão?” do “Padeirinho” da vez, antecipadamente combinados, trocaram de lugar... A troca foi fatal para o Moleque eis que a “viagem” aérea da pedra jogada por Melena chegou a um destino imprevisto, a órbita do olho direito do Moleque, provocando escoriações à córnea, raspada, e abrindo dois cortes de meio a um centímetro, de sentidos vertical um, à altura do supercílio, e horizontal o outro, rente aos cílios inferiores... certamente o estrago não foi maior graças a capacidade intuitiva que todos têm de automática e involuntariamente fechar os olhos perante algo impreciso que ofereça perigo iminente, um grande facho de luz dirigido de inopino aos olhos mas e também, em decorrência da atuação dos músculos orbiculares que, por contração, servem para fechar certos orifícios. Com o sangue jorrando dos cortes, em fluxo continuado, parte dele inundou o olho, contribuindo exponencialmente para dar ares de espanto e tragédia a todos os guris, amigos do Moleque que o tentavam socorrer e sem saberem o que de melhor fazer, alguns deles, correram à casa do Moleque, há mais ou menos cem metros dali, para avisar aos familiares enquanto outros, mais devagar, o acompanhavam no trajeto; aquela procissão de olhos esbugalhados e sons inaudíveis (se comparados à algaravia de antes) vestidos de ror, pensamentos de terror, no meio do trajeto se encontrou com os desesperos da mãe do Moleque, D. Mema como era conhecida por todos, da tia Dila, das Manas Oca e Ezolda e do pai recém chegado da Barbearia, tendo o encontro virado um insistente e desritmado fluxo de versões, ensaio de falhas, inconstâncias de “não se saber o que fazer”, enfim coisas e confusões que o sangue jorrado provoca. Um segundo depois da estupefação porém o pai já tomava às rédeas da situação decidindo levar o Moleque, imediatamente, ao único Oculista (hoje, Oftalmologista, médico praticante da Oftalmologia) da cidade, o Dr. Degrazzia; para tanto, foi em busca da bicicleta, sendo interrompido pelo “Seu” Raul, marido da D. Anália, Carreiro de profissão que já colocava os arreios na parelha de cavalos, o Solito e o Luar, que levariam o Moleque ao médico oculista.
Enquanto isso, o agressor acidental, João Carlos Melena, chorava, lamentava o ocorrido, era amigo do Moleque e não tinha intenção de acertá-lo, quisera acertar o Aranha, tampouco com a gravidade que, entendia, tinha atingido o alvo involuntário. Acaso prestasse atenção, desde cedo, aprenderia que são muitos os nefastos exemplos de boas intenções resultando em graves problemas, independentes da vontade do emissor e, quem sabe, haveria de fazer como tantos outros, cuidar com responsabilidade para não cometer ações irresponsáveis, todavia, criança ainda, quase certo, que pena, jamais aprenderia isso.
O Moleque, manheiro, sentia-se mal pelas dores advindas do impacto da pedra sobre o globo ocular, os cortes na pele, o sangramento e até mesmo pela até então desconhecida “raspada” na córnea, mais ainda pelo martírio de estar agora, pensava, irremediavelmente “torto”; para além da feiura que pensava possuir se somava àquele defeito físico provocado pela pedrada, à falta do olho direito; naquele momento, o Moleque se imaginava com um furo na cavidade orbital e se acreditava um futuro pirata, sem olho de vidro porque devia custar muito caro um olho de vidro mas, quem sabe e pelo menos com um “tapa-olho” de couro de camurça ou pelica... Cruzes!
Os pais do Moleque, mais a tia Dila (que não o deixara em momento algum desde o instante que tomara conhecimento do, digamos, acidente sofrido) se acomodaram no Carro Rainha puxado pela parelha de cavalos e dirigido pelo Seu Raul que, da boleia, tentava imprimir maior velocidade àqueles e, ao mesmo tempo articulava palavras de conforto e coragem ao Moleque que, como todos sabiam, infernizava sua vida todos os dias, pegando “carona” na parte traseira do Carro, alojando-se nas madeiras de sustentação das rodas e do corpo do Carro como um todo posto que os unia por eixos horizontais, perpendiculares entre si, também de madeira, à parte central e as rodas da frente e traseira, observando-se que sendo estas de tamanho quase o dobro das dianteiras e aquelas madeiras da sustentação uniam as rodas pelo centro das mesmas por mais comprido que fosse o relho (o relho do “Seu” Raul tinha mais de três metros) os laçaços dados para afugentar o “carona” eram endereçados acima das rodas, atingindo local bem superior onde o Moleque se alojava, por isso não produzindo o efeito desejado, sequer molestando este que, ao chegar onde pretendia, sempre agradecia ao irritado vizinho.
Parece que todo mundo sabia onde morava o respeitado Dr. Degrazzia, pois foi na sala da casa dele que foi atendido o paciente; com a paciência própria de grandes profissionais no trato com crianças, o médico limpou o ferimento passando algodão embebidos em água oxigenada e, a seguir, com tintura de iodo e mercúrio e não vendo grande afronta ao olho propriamente dito receitou para pingar no mesmo três ou quatro gotas, quatro vezes ao dia, do famoso remédio de então, o “Colírio Moura Brasil” e que cuidassem de o proteger com um tapa-olho de algodão untado de soro fisiológico e, como medida complementar, sendo possível, o uso de óculos escuros por alguns dias. Tudo isso foi providenciado e o Moleque, pela primeira vez na vida, usou óculos escuros, ainda que estes ocupassem quase a totalidade do seu rosto, tão grandes que eram...
Tudo passou e aquele acidente foi esquecido, vida que segue sem prejuízos à visão do Moleque até que... Bem, chegada a época do alistamento para o serviço obrigatório, o Moleque realizou sua inscrição e, posteriormente, enfrentou os exames que o considerariam apto ou inapto para “servir”, no caso, o exército. Chegado o dia dos exames respectivos, segunda-feira, se apresentou com o joelho esquerdo inchado devido a um pontapé recebido em jogo de futebol praticado no domingo imediatamente anterior; era certo que pretendia escapar do serviço militar, mas não tinha nenhuma desculpa para tanto, todavia, imaginou iludir o médico examinador que batera no músculo ou nervo situado na rótula do joelho direito tendo como pronta resposta o movimento involuntário da perna suspensa e ao tentar repetir o gesto no joelho esquerdo constatou o inchaço perguntando a respeito tendo o Moleque declarado como possivelmente proveniente da excessiva umidade daqueles recentes dias chuvosos já que nesses dias o joelho sempre inchava. O Moleque observara que quem saía pela porta direita da enfermaria iria “servir”, os da esquerda, não, e ganhariam a Certidão de Reservista de 3ª Categoria; diante do silêncio do médico examinador, pensou que a “estória” que contara tinha “colado” ...nada disso, o médico com um sádico sorriso escancarado no rosto, lhe comunicou que ele iria “servir” e que saísse bem rápido e quietinho pela porta da direita, senão o episódio poderia vir à tona logo adiante, no primeiro dia do serviço militar e ele poderia iniciar pesando-lhe uma punição que poderia ser detenção ou até, mais grave, uma cadeia. Não houve exame ocular ou “de vista”.
Já servindo, integrante do Quartel General da 2ª Divisão de Cavalaria, então, no centro de Uruguaiana, Rs (prédio que ora abriga a Fundação Cultural Uruguaianense Dr. Pedro Marini), lá no campus da “linha de tiro”, fronteiro ao Cemitério Municipal, realizando o primeiro treinamento e exercício de tiro, ao empunhar pela primeira vez um “mosquetão” (fuzil antigo) e mirar o alvo a ser atingido por tiros, no formato “agrupamento”, colocado a vinte ou trinta metros a frente, o Moleque, destro, instruído a apertar arma contra o corpo enquadrando-a no “cavado” (na altura da clavícula) enfocou a “mosca” que cinco segundos depois desapareceu, o próprio alvo como um todo também ia aos poucos desaparecendo naquela névoa que embaçava seu olho direito; mais que depressa e antes que tudo desaparecesse, puxou o gatilho conseguindo acertar o alvo no alto, à direita, muito longe do centro, da mosca, esquecendo-se da regra básica da instrução dada, afrouxara a pressão do mosquetão contra o corpo tendo a coronha deslizado e repousado na junção do ombro e do braço, direitos; o violento “recuo”, cuja força e feitos seriam amenizados pelas corretas posição da arma no “cavado” e intensa pressão causou muita dor no Moleque cuja continuidade e persistência fez com que o mesmo optasse por passar o mosquetão para o braço e mirar com o olho, esquerdos. Os tiros dados pelo canhoto de ocasião foram excelentes a ponto de transformar o soldado em atirador, tendo atirado com a grande maioria das armas de então, por exemplo, mosquetão, revolver (calibre 45), pistolas, metralhadoras com gatilhos automáticos e carregadores que ficavam em brasa (pontos 35, 50, 51 e a metralhadora Ina – portátil que apresentava incrível dificuldade para o atirador obter rajadas de um ou de dois tiros) ...As histórias da caserna, e são muitas, quem sabe, um dia serão contadas...
Foi esse episódio ocorrido ao início da prestação do serviço militar pelo Moleque que trouxe a verdade do real e efetivo “estrago” daquela pedrada... sua córnea tinha sofrido um raspão que reduzira sua capacidade e, quando fixado o olhar em algum ponto, ficava pleno de névoas como um vidro embaçado por vapor... Soubesse dessa deficiência quando do exame médico a que foi submetido o Moleque não teria “servido”, o que teria sido uma enorme, grandiosa lástima porquanto jamais saberia o quanto teria perdido à formação do seu caráter, como homem e cidadão, o bem que lhe fizeram os ensinamentos recebidos, a postura cívica, disciplina e tantos valores e reconhecimentos pelo mérito, a igualdade, fraternidade como artífices do salutar, atuante e benfazejo companheirismo.

A parcial perda da visão do olho direito jamais pode ser reparada embora tenha o Moleque tentado curá-la. A pedra que atingira o olho, não rompera o tecido da córnea, todavia dele retirara uma parte considerável a ponto de deixá-lo demasiadamente tênue, comparado a uma folha de plástico que, esticada ao limite, jamais volta a composição original, deixando marcas amarrotadas no tecido correspondente. A falta de visão plena do olho direito do Moleque nem dava para ser notada sendo compensada pela perfeita visão do olho esquerdo, tampouco as cicatrizes dos cortes, cobertas pelo supercílio, uma, e cílios, a outra... E, como disse o poeta, as histórias do Moleque vêm e continuam vindo como tudo que passa!