A
MULHER DE BRANCO
(Itagiba José)
Segundo
consta, o pai se chamava Agenor, a mãe, Cléamosa, Mosa para os
íntimos. A filha, Domitila, a Domí, de uma beleza invulgar, morena
de olhos e longos cabelos, negros como uma noite sem lua e sem
estrelas, era a alegria e orgulho dos genitores que, dela, tudo
esperavam, tudo amavam... A família, assim composta, era um oásis
de felicidade, calmaria e ventura... Os moradores da Rua Santana,
vizinhos da família residente naquela rua, quase ao lado do Clube
Caixeiral, no centro da Uruguaiana de então, todos reverenciavam a
beleza invulgar da menina Domitila, a Domí, de todos.
Domí
cresceu, se fez moça, mademoiselle
ou melindrosa,
naqueles tempos de exacerbado modismo à francesa, teto cultural do
mundo, a hoje denominada belle
époque
e ainda que tenha tudo ocorrido na distante Uruguaiana, Rio Grande do
Sul, a Sentinela postada lá nos confins do Brasil, na fronteira com
a Argentina e o Uruguai.
Claro
que a rapaziada da Uruguaiana de então, pertencente a elite rural
pré e dominante, vestia-se com apuro e, por isso era denominada
janota,
tendo-se
marcantemente natural na indumentária o uso da bengala e do
chapéu coco e
a realização, nos finais de semana, do footing
nas Ruas Bento Martins, XV de Novembro e Santana e na Av. Duque de
Caxias, enfim, ao redor da iluminada e belíssima Praça Barão do
Rio Branco (dizem, em evidente exagero dos orgulhosos brasileiros,
gaúchos e uruguaianenses, ser a praça mais bela do Brasil) passeios
repetitivos protagonizados por rapazes e moças, estas acompanhadas
por senhoras mais velhas que elas, cuidadoras das donzelas,
normalmente uma tia ou mãe de alguma delas que, timidamente,
ensaiavam olhares de
soslaio,
flertes e namoros com os rapazes.
Após
o footing,
as moçoilas recolhiam-se às suas residências à espera de, quem
sabe, um mancebo encantador viesse bater a sua janela com violões e
cantos, em serenata, as saudosas e românticas serenatas origem de
tantas histórias de amor quando vários rapazes saíam munidos de
instrumentos musicais e muita “cantoria” pela madrugada,
prostrando-se aos pés de portas e janelas das namoradas já
conquistadas, outras mulheres amadas, namoradas à
traição
pois não e que esperavam conquistar, entoando músicas de serestas,
de um romantismo ingênuo e inocência inolvidável.
N’uma
dessas serenatas dirigida à casa de Domí por um de seus muitos
“admiradores” e namorado à
traição,
Agapito Flores mais conhecido como Pitinho, aconteceu o encanto,
iniciando-se ali uma história que teria que ser linda não fora o
epílogo funesto e inesperado sofrido por ambos os protagonistas... A
vida nem sempre é o que se planeja, se escreve ou descreve, seus
desígnios são insondáveis, fortuitos, força maior, inestimáveis,
imprecisos, como bem cantou e elucidou o grande poeta português,
Fernando Pessoa: “... Navegar é preciso, viver não é
preciso...”!
Na janela,
derramou-se o cantor nos versos e música, sentidos e lacrimosos de
Luzes da Ribalta (Limelight) de autoria de Charles Chaplin, na versão
de Antônio Maria e João de Barro, o Braguinha, para, logo a seguir,
culminar com “Deusa da Minha Rua” a bela página musical de
autoria de Jorge Faro e Newton Teixeira. Enquanto a primeira falava
de vidas e luzes que, respectivamente, “...
se acabam a sorrir... se apagam, nada mais...”,
a segunda declamava que a Deusa amada tem os olhos “...
onde a lua costuma se embriagar...” e
que
“... o sol n’um dourado sonho, vai claridade buscar...”.
A
emocionada interpretação, a lua cheia, as estrelas brilhantes e a
inexplicavelmente cálida temperatura daquela hora, tudo colaborou
para que Domí fosse tocada e se apaixonasse imediatamente. Em
resumo, funcionou!!! Domí, ouviu e sonhou... Pitinho, a
conquistara... daí, para ingressar em todo aquele cerimonial da
época para firmar ou afirmar o namoro dito sério, com as intenções
casamenteiras foi um passo, além do que Pitinho era considerado “um
bom partido” às moças casamenteiras, eis que, coisa difícil para
quem havia nascido no lado dos “peões” em terras de fazendeiros,
sem indústria e comércio sazonal e ao sabor do câmbio, se alto o
peso argentino, muitos “hermanos” comprando em Uruguaiana, se o
cruzeiro, moeda de então, “todos” brasileiros indo às compras
em Passo de Los Libres, quer para consumo próprio, quer para
abastecer terceiros com os respectivos ágio no comércio “formiga”
apelidado de chibo (nome espanhol do cabrito). A consequência de
cada um desses eventos, desaguava no oposto à cidade cujo comércio
restava vitimado, com a falência dos comerciantes e o desemprego dos
trabalhadores da cidade atingida – diga-se ainda que pela
estabilidade e progresso mais acentuado da Argentina, em maioria de
vezes ou quase sempre, o negativo atingia Uruguaiana.
Abra-se
parêntese para dizer de uma particularidade pouco divulgada ou
conhecida então era que, quando ficava nervoso, Pitinho gaguejava,
por isso chamado Gago pelos amigos de sua idade, não se sabendo como
conseguia entoar, com sua bela voz e excelente musicalidade os
cânticos das serestas, sendo, apesar de possuído por intenso
nervosismo quando, um grande intérprete das canções, mormente da
sempre considerada rainha das serestas, “Chão de Estrelas” de
Orestes Barbosa e Silvio Caldas.
Pitinho
era empregado “de carreira”, ganhando bom salário na portentosa
Viação Férrea do Rio Grande do Sul-VFRGS, empresa que se
consolidava no transporte ferroviário de então (transportando para
todos os lados, passageiros, mercadorias, frutas, gados vacum, ovino,
etc). Pitinho morava na Rua Sete de Setembro, na esquina da Rua
Catorze de Julho, perto do campo do Esporte Clube Ferro Carril, do
qual era sócio contribuinte, circulando naqueles quarteirões e ruas
adjacentes como a General Câmara, a José Garibaldi, a Aquidaban
(atual, Av. Flores da Cunha), a Prado Lima, a Vinte e sete de Outubro
(atual, Gregório Beheregaray) e a Quatorze de Julho, onde
desenvolvia atividades sociais e esportivas (gostava de praticar
futebol, como lateral direito – não muito talentoso é verdade) e
cultivava muitas amizades e convívios com rapazes e moças de sua
idade, além de ser reconhecido como honesto, trabalhador, afável e
educado. Ao que constava não tinha inimigos ou detratores, sendo
muito considerado por todos que privaram de sua companhia e
conhecimento.
E
tudo se encaminhava para um final feliz para o casal, Domí e
Pitinho, até que (porque será que em maioria de vezes tem que
acontecer o “até que...”, não é muito justo, embora possa ser
creditado a lei da vida, do imprevisível, do “estava escrito”,
sei lá...) alguns dias antes do casamento marcado e com festa
encomendada, programada, pronta a ser realizada no grande, querido e
tradicional Clube Caixeiral, Pitinho desapareceu, sumiu como se
jamais tivesse existido, nunca mais alguém ouviu falar dele,
evaporou-se... Um estranho caso jamais desvendado, materialmente,
pelo menos... Talvez um dia e como mero exercício de imaginação,
juntando os cacos dos vidros estilhaçados desde aquele tempo e cada
vez mais dispersos, se possa formar algum juízo ou histórico que,
pelo menos, torne explicável o inexplicável e inexpugnável
mistério do desaparecimento, para sempre, de Pitinho, o seresteiro
apaixonado por Domí que foi impedido de casar com a mesma, sabe-se
lá como ou porquê... Aliás, abra-se outro parêntese para dizer ou
ratificar a quase natural destinação de Uruguaiana a casos
extraordinários de aparições e desaparecimentos sem que se saiba
origens, destinação, finais, como, quando, nem porquês... São os
casos, exemplificativamente, do Velho Damião, o Sete Trouxas que
nela apareceu sem se saber de onde e cuja “história” tentamos
contar através de conto próprio antes publicado mesmo sabendo que
não foi ou pode ser contada na íntegra, ou a do velho Jorge, o
“Aviador do Lixo” que portava como se fosse parte perene de sua
cabeça um boné ou “gorro” de aviador “das antigas”, da
primeira guerra mundial portando um rádio galena, composto por uma
caixa de fósforos com uma “pedra” de chumbo dela saindo fios de
cobre, um aparentando “fio terra”, outro para ser contatado em
possível “antena”, tipo rádio portátil sem dial, pilha ou
bateria, instrumento que captava som das rádios emissoras de ondas
AM (amplitude modulada); a casa escavada em terreno baldio onde
morava o “Aviador do Lixo” era outro capítulo... mas isso são
outros quinhentos...
Domí,
abandonada na véspera do casamento, praticamente no altar, nunca
mais foi a mesma... definhou acabando vitimada, após o indescritível
sofrimento proporcionado pela doença maldita, a tuberculose que até
ali não tinha cura. Domí morreu virgem, devastada pela doença que
ceifava muitas vidas naqueles tempos da belle
époque
e pelo desaparecimento de Pitinho, jamais explicado... Domí morreu
tendo em seus ouvidos o inaudível canto de seu noivo, jamais
repetido, como a “Deusa...” de Pitinho, cujos olhos agora, como
na letra, eram “...
espelhos de minha mágoa... poças d’água, sonhando com seu
olhar...”
ou, mais lancinante e melancólico como Luzes da Ribalta, “...
vidas que se acabam... luzes que se apagam, nada mais... é sonhar em
vão tentar aos outros iludir, se o que se foi p’rá nós não
voltará jamais...”!
Sua roupa mortuária era uma espécie de vestido de noiva, alvo como
a geada em que se convertera sua vida jovem e agora em fuga e
revestindo internamente seu caixão, um tecido de puro cetim, também
da cor branca, ratificando, exaltando sua condição de menina-moça,
virgem, pura, inocente, casta, tão bela, tão triste, tão
precocemente falecida...
Tempos
depois da morte de Domitila, a Domí, morena linda de olhos e cabelos
negros como uma noite sem lua e sem estrelas, começou a ocorrer um
fenômeno inexplicável e que seria chamado de “aparições
fantasmagóricas”
para logo adiante ser “identificado” e, para sempre, repaginado
como “Mulher
de branco”,
nas ruas e redondezas onde vivera Pitinho, supra elencadas.
Tratava-se, segundo consta, do fantasma de uma mulher linda, morena,
de cabelos longos e negros, envergando um vestido da cor branca que a
cobria da cabeça aos pés.
A
Mulher
de Branco
aparecia para as pessoas, provocando-lhes arrepios, suor frio e
acompanhando-as por determinado trecho quando se evaporava no ar,
sumia da vista do indigitado vidente, sem falar nada, sem esboçar
sequer um sorriso ou um “buuu”,
nada disso, apenas se postava ao lado e caminhava como se quisesse
identificar a pessoa. Talvez a história mais contundente a respeito
tenha sido a vivida pelo militar do exército, cabo Giuseppe que ao
chegar na república onde morava com outros militares solteiros, em
plena rua Sete de Setembro, noite de inverno, muito enluarada, céu
cheio de estrelas, tudo pronto para “cair” geada na madrugada,
viu aquela mulher linda, esguia, no pátio do vizinho, por entre os
canteiros de hortaliças e, curioso, resolveu chegar perto para vê-la
melhor, iniciar conversação ou prosa, conhecer, namorar quem sabe;
ao se aproximar da “presa” ela se distanciou indo para mais ao
fundo do terreno, para perto da “casinha” (nessa época nem
pensar, não existiam, pelo menos naquela região pobre de
Uruguaiana, os WCs ou banheiros de hoje), onde desapareceu.
Intrigado, no encalço e busca frenética que realizava, Giuseppe
abriu a porta da “casinha” acreditando que a linda mulher que
vira nela se escondera. Foi a última coisa que se lembrava ter feito
quando, por volta das seis horas da manhã, em estado de hipotermia,
foi socorrido em plena sarjeta da Rua Santana, quase ao lado do Clube
Caixeiral e levado às pressas ao glorioso e venerando Hospital de
Caridade e, depois de identificado, medicado e recuperado sua
temperatura corpórea, que voltara aos 36°C normais, ao não menos
importante Hospital Militar da cidade. Giuseppe sabia que não
dormira e, se fosse o caso, não sofria de sonambulismo, por isso
jamais soube como fora parar ou deitar na calçada, em estado de pura
inconsciência, em frente à casa que fora de Domí e nem a
conhecera, tampouco sua história, afinal nem de Uruguaiana era posto
que, “gringo” viera de outras plagas, da distante serra onde
nascera e se criara, para prestar o serviço militar obrigatório de
então, no glorioso 8º Regimento de Cavalaria, onde estava seguindo
carreira, já cabo, rumo a patente de terceiro sargento, logo
adiante...
Diversas
foram as explicações para o caso extraordinário das aparições
fantasmagóricas da “Mulher de Branco”, tendo, talvez, a mais
plausível, verossímil ou de maior credibilidade, embora possa nem
de perto arranhar ou explicar o insondável caso do desparecimento de
Pitinho, que, mais a tuberculose, esta quem sabe também resultante
daquilo, vitimaram a bela deusa Domí, seja o que todos comungavam
como informação ou definição, afinal, Domí que morrera esperando
o reaparecimento de Pitinho, agora o buscava nos locais onde mais ele
estivera e detinha apreço, ali e ao redor de onde nascera, crescera
e todos o amavam e o reconheciam...
Certo
é que a Mulher de Branco, durante decênios “apareceu” para
terceiros, normalmente em noites de inverno, muito frias, todavia
muito enluaradas, com o céu cheio de estrelas brilhantes, em tudo
repetindo àquela que, perdida no tempo, Domí ouvira, em meio a
acordes sonoros de um violão muito bem tocado pelo grande Miguel
“Dedo de Ouro”, sob o ritmo de um bandeiro agilmente tocado pelo
ritmista Geada, dentre outros instrumentistas presentes e atuantes
como o Charanga, a voz de Pitinho entoando “Luzes da Ribalta” e
“Deusa da Minha Rua”, tão lindas, tão românticas, tão...!