terça-feira, 16 de junho de 2020

OUTRA DO MOLEQUE - ACIDENTE DE FOGO E QUEIMADURA


O Moleque nem terminara de almoçar e estava sendo chamado na frente de sua casa pelos amigos Guirland e Luiz Chaves (Linguiça para os íntimos), este um bom centro-médio, àquele desnecessário dizer de suas decantadas qualidades futebolísticas difundidas, analisadas e discutidas em outros contos; ambos amigos e vizinhos do Moleque, além de companheiros de vários times das redondezas. Aquele dia teria um confronto com o time da “Baixadinha”, la no campo da “Fazendinha” de propriedade do goleiro aposentado, Garcia, que defendera o arco do Esporte Clube Ferro Carril e, agora, montava um time de guris para participar de diversos torneios futuros.

O Moleque quase engoliu o talher de tão apressado para finalizar a refeição e correu desasado ao quarto para pegar sua chuteira, meia, calção, e lá se foi chispando, porta afora, estancando diante da mãe que o fitava com um certo ar de repreensão ou preocupação por tudo aquilo, pela pressa... nada que não pudesse ser desfeito pelo beijo na face, dado, um tapinha no ombro, dado, um não demoro mãe, falado e para finalizar, vou jogar bola e já volto... E lá se foi o serelepe, mais serelepe ainda, correndo para encontrar os amigos que já estavam a uns cem metros de distância!

Foi um jogão e muito especial porque ao fim e ao cabo golearam o time da “Baixadinha” por quatro a um, tomando esse um porque o grande goleiro Deca, o Parrudo (que depois jogaria no Grêmio FBP.Alegrense), resolveu “aceitar” uma bola defensável justificando depois dizendo que o jogo estava tão enfadonho, a bola não chegava nele, seu fardamento nem precisava ser lavado e os companheiros nem se lembravam que ele estava lá, por isso, para aparecer, resolveu deixar aquela entrar. Parrudo além de grandão, era um “baita do gozador”, e tornou o “frango” em proposital, mera vingança contra os que não deixaram nunca o outro time sequer levar perigo a sua goleira e, ele, não aparecera positivamente, por isso...

No jogo propriamente dito, quem “comeu” a bola foi Luiz Chaves, jogando à lá Didi (Valdir Pereira), o Princípe Etíope, das Copas do Mundo de 1958 e 1962, quando nosso futebol brasileiro foi Bi-Campeão Mundial; Luiz naquele dia exagerou no direito de bater na bola “de trivela”, fazer lançamentos milimétricos de 50 jardas, desarmar sem falta todo e quem quisesse chegar perto do gol do Parrudo e, com tão esplendorosa atuação ofuscou até o grande nome do time, Guirland, referência técnica a que todos “batiam continência”. Foi pela exuberante atuação de Linguiça, reconhecida por todos que o Moleque o indicou, ao Parrudo. como culpado pelo seu “sofrimento” entendendo muito convincente e aceitável a estória que contara para se safar de ser chamado, pelo menos por aquele dia, de “frangueiro”, acrescido agora de “faroleiro”; foi uma gargalhada geral, com Parrudo gritando para o Moleque “só não te bato porque sou teu amigo!”o que não impediu continuasse a gozação.

Por volta das dezessetes horas o Moleque chega em casa encontrando sua mãe na tina, lavando roupas já tendo algumas estendidas no “quarador”; como lhe era comum fazê-lo, o Moleque chegou nela dando-lhe curto abraço seguido de um beijo, tendo ela perguntado se estava bem, como se divertira com os amigos, essas coisas e, ao final, se ele queria tomar café pois o Gelcy, compadre e cunhado dele esposo da Mana Oca, deixara bolachas quentinhas (espécie de biscoito que em Porto Alegre, chamam de “vovó sentada” de aproximadamente 40 ou 50 gramas) da cor de café com leite como ele gostava. Mas era claro que sim, ainda mais considerando o “bucho sem fundo” daquele glutão que recém se esfalfara correndo mais que a bola e tinha fome, uma enorme fome, sempre. Então vou preparar teu café, disse-lhe a mãe, deixando os afazeres para depois; o Moleque a impediu com outro abraço, não precisa, eu mesmo faço … pelo menos deixe-me aquecer a água e qualquer coisa que eu não saiba, pedirei ajuda. A mãe então aquiesceu, entretanto disse-lhe para ter cuidado ao acender a “espiriteira” (espécie de fogareiro rústico, de metal, com trempe de três ferros que formam a base de sustentação e equilíbrio do receptáculo - chaleira, panela, etc, do que será aquecido - cujo combustível é o álcool que fica em reservatório próprio, disposto logo abaixo da trempe).

Entre a tina e a cozinha, estava a irmã caçula do Moleque, Edna Roselaine, que o Moleque apelidara e chamava (como até hoje) de “Branca”, então com não mais do que três meses de vida, deitada em uma “cadeira preguiçosa” (ou espreguiçadeira, como queiram) com a frente voltada para a mãe e a traseira voltada à porta da cozinha; ao passar por ela o Moleque lhe deu um beijo na testa, sacudiu o chocalho fazendo barulho, tendo com isso chamado a atenção da Fátima Eliane, sua outra Mana e de um dos seus inúmeros irmãos de criação, o “Panchito” (o terceiro Francisco que sua mãe adotara de fato, o primeiro foi naturalmente apelidado Chico, o segundo ficara Francisco mesmo, para este aplicou-se a corruptela espanhola para distingui-lo dos demais) que estavam jogando “Cinco Marias” (*) no pátio, à sombra, sob a janela da cozinha. Fátima Eliane por volta dos seis anos de idade, ainda gostava de ouvir o Moleque cantar para ela, só para ela, “A volta do Boêmio”, de Adelino Moreira e Nelson Gonçalvez que, sabe-se lá o porque disso, a acalmava desde quando do tamanho da Branca, choramingava, chorona que era, só se calando quando o Moleque “assassinava” a citada música). Abra-se pequeno parênteses para dizer que os nomes de Fátima Eliane e Edna Roselaine (assim como o de Paulo Rubimar, um dos amados filhos da Mana Oca e do Gelcy) foram escolhidos pela Mana Ezolda.

Após dar um beijo na Mana Fátima Eliane, prometendo após o café cantar a música preferida e dizer, para ambos que um dia ia ensiná-los a jogar “Cinco Marias” pois para isso era portador de técnica muito apurada (mentiroso) o Moleque entrou na cozinha cantarolando em alto e bom som, claro, “A volta do Boêmio”; muniu-se de fósforo, garrafa, quase cheia, de um litro de álcool e lá foi “acender” a “espiriteira”; antes de fazê-lo, porém, com cuidado observou se tinha combustível no reservatório e acreditou ter visto que realmente no dito existia álcool por isso acendeu o fósforo e o aproximou da “boca” daquele. Surpreendentemente para si, não ocorreu qualquer combustão, visível pelo menos, e a “espiriteira” permaneceu quase um minuto sem dar sinal de vida, ou fogo, “apagada” e o fósforo antes aceso quase queimava os dedos do Moleque. Por conclusão óbvia, faltou álcool, por isso teria que “botar” o combustível no reservatório; o Moleque pegou a garrafa de álcool e pela mesma “boca” por onde colocara o fósforo aceso e que esperava tivesse saído a chama azulada do álcool em combustão, derramou o líquido empinando a garrafa.

Após esse ato, o que sucedeu é indizível. Ao primeiro fósforo aceso certamente e embora muito pouco, o álcool contido no reservatório inflamara e ficara escondido no fundo dele, imperceptível, à socapa, à espera do ato seguinte do incauto Moleque; não deu outra, este agindo em claro e insuportável, para si, erro de percepção, não atuou como lhe haviam ensinado, negligenciou ao não tomar mais precauções do que já tomara, afinal com fogo não se brinca; pelo menos deveria ter chamado a mãe muito mais apta a tratar do assunto do que ele... enfim tudo isso aportou em sua mente depois, bem depois do ocorrido...

Infelizmente não foi assim que agiu o imprudente Moleque, agora apavorado enquanto o fogo adentrara pela garrafa quase cheia de álcool agora em labaredas ardendo em suas mãos. O que fazer? o que fazer? Jogar fora antes que exploda em mim, pensou e agiu com rapidez indo à janela esquecido que sob ela brincavam Fátima Eliane e Panchito; dá meia volta, ainda com a garrafa soltando chamas coloridas cada vez maiores e flamejantes, alucinado e cada vez mais apavorado corre à porta e se pensando um grande arremessador de garrafas em chamas, calcula, mede a distância da cadeira preguiçosa onde dorme a Mana Edna Roselaine, a caçula Branca, olha para a tina à esquerda dela onde, de costas, sua mãe ainda lavava e, joga à direita e para o mais longe que pode aquela apavorante garrafa quase cheia de álcool que mesmo sem um pavio qualquer agora estava cheia de um fogo azulado que não era fátuo!

O arremesso da garrafa, bem distante de todos foi um sucesso, com a garrafa aterrissando bem distante da mãe e da Branca, feito um foguete mal sucedido da Nasa sem quebrar derramando-se em fogo azulado na área de aterrissagem, todavia, parte do seu conteúdo líquido na trajetória, em chamas, fizera um semi-círculo de fogo lindo de ver até que, como se fosse uma estrela cadente, sob os efeitos da lei da gravidade deixou-se cair feito um rastro ardente queimando tudo por onde passou, inclusive e principalmente vencendo a barreira do espaldar da “preguiçosa” se despencou por sobre a cacula, Branca, queimando-lhe cabelos, testa, sobrancelha e pestanas, ou supercílios e cílios, mais o dorso da mão esquerda com queimadura um tanto quanto mais profunda e somente não foi mais abrangente porque fraldas e cobertores que a cobriam defenderam-na queimando em seu lugar.

Não dá para descrever exatamente como se gostaria a sequência de ocorrências daí em diante, o alvoroço, a gritaria, tudo em alta voltagem, nervosismo a flor da pele e uma letargia ou inanição própria desses momentos... tudo isso provocando a reação dos vizinhos que de imediato acorreram ao local, inclusive D. Boneca uma das primeiras a chegar, seguida da D. Ramona, D. Eva, grande Evinha mulher do “seu” Ramão Bombeiro, todos parentes do Luiz Chaves (mãe, cunhada e irmão dele); providência imediata era levar a criança ao hospital, logo veio um “chauffeur de praça” (**) conhecido do pai do moleque e depois eleito vereador, Caetano Brum, levando mãe, filha queimada e mais D. Boneca, claro. Não deixaram o Moleque ir, tendo ele ficado sob os cuidados da Mana Ezolda que, junto com Eva, o consolava com palavras de esperança dando-lhe forças, entendendo não haver qualquer culpa de sua parte, etc, mas nada disso adiantava para o Moleque que, dentro de si já se havia julgado mais pesadamente ao ouvir D. Boneca, do alto de seu pseudo conhecimento, mas com razão naquela hora, dizer da preocupação de que o fogo tornasse a pequena Branca cega; todo o resto doía. mas isso, a possibilidade de ter sido o agente da cegueira daquele pequeno ser que era sua mimada maninha caçula, doía muito mais, muito mais mesmo...

Dentre as pessoas que acorreram naquele momento crítico de sua vida, talvez quem foi mais eloquente, contundente foi a “Mãe Mocita”, aquela grande mulher, Negra Velha de Cabelos Brancos, que não lhe disse uma palavra, não evocou nenhuma divindade, nenhum santo e, com seu silêncio, foi mais eloquente que um raio de sol, aconchegando o Moleque em seu colo chorou mansamente e, vendo-a, sentindo-a assim, o Moleque por sua vez verteu com idêntica placidez lágrimas retidas em sua alma pelo infortúnio que causara, pelo que se culpava, ferindo não apenas sua indefesa Branca, também e por extensão a sua família e a todos.

Entretanto, para não fugir de sua natureza nem mesmo neste momento de intensa emoção ele não deixou de pensar nos ditos da Laide, sua querida tia, irmã de sua vó que, ao vê-lo querendo chorar por qualquer coisa que fosse de pronto lembrava-lhe que “Homem não chora! Homem só chora quando a mulher vai embora e, assim mesmo, de faceiro por isso” ... parecendo-lhe que “Mãe Mocita” lhe demonstrara que não era bem assim, contentando-se com o fato de ser um guri ainda e de, ali, quem sabe, dar início ao adulto que seria e, em lá chegando descobriria que o homem chora sim e não apenas quando a mulher vai embora e não apenas por faceirice, mas porque é um ser humano, uma pessoa com suas fraquezas, sonhos desfeitos, virtudes, defeitos, fracassos e feitos e, para se tornar melhor, um verdadeiro homem deve lutar sem abandonar a dignidade e o respeito à vida, pois sua grandeza reside no que disse o poeta, reportando-se a pessoa humana, nos versos que se ousa destacar e repetir agora:

“... Ascende-te ao firmamento, / porém não tentes esquecer / que na horizontal viveste e viverás / teus melhores momentos. / Anda ordenada / na desordenada devassidão / do deus social / não esqueças o bem / não penses no mal. / prove o tempero da distância / ou a ânsia da volta, / não lastimes a espera, / mantenhas o otimismo / pois o sal usado no batismo / dá a pureza / o usado na vida, o mérito. / Delicia-te com a doçura / do reencontro / ou do descobrimento … … não mudes porque as coisas mudam / e sim pela necessidade / pela procura da autenticidade. / Não sejas poliédrica, mantenhas uma face! / Tente sempre a perfeição / embora ela seja também, imperfeita / por não dar nenhuma chance / a qualquer de nós alcançá-la / Busque o amor sem explicá-lo / o perdão sem defini-lo. Se possível / busque o prazer de viver / Sem a passividade dos fracos, / com a vitalidade dos fortes, / todavia evite exageros / - os extremos são perigosos. / Se acreditares siga para o norte / apesar de te apontarem sul. / Ajudar a quem sofre é uma forma / de evitar a própria dor / mas se ela teimar em conviver em ti / abriga-a como uma dádiva / ela será a chuva que regará / o teu jardim, revigorará tua crença / e reflorescerá tuas cinzas ...” (excertos do Poema “Adeus” - poema poster -, do autor).

A primeira notícia vinda do Hospital de Caridade que se localizava então perto do Colégio Sant'ana, do Estádio Felisberto Fagundes Filho do E. C. Uruguaiana, para onde tinham levado a Branca, foi trazida pelo Padre Wiro Rauber amigo da família e especialmente do moleque a quem, junto com Guirland, todas às terças-feira os levava para juntos assistirem o que chamava de “melhor programa humorístico”, que era a sessão da Câmara Municipal de Vereadores, então presidida pelo abalizado radialista Mario Dino Papaléo; disse o Padre Wiro que Edna estava se recuperando bem embora o fogo tivesse atingido cílios e supercílios, testa, os parcos cabelinhos que tinha e, com mais profundidade a mão esquerda, em ferimento ou “queimado” que atingiu o dorso em sentido longitudinal, como se fosse um extenso corte de mais ou menos três milímetros de largura por mais ou menos trinta de extensão. Medicada, não devia demorar muito para voltar para casa. E foi o que aconteceu, sem demora.

Edna e os pais foram trazidos por veículo do hospital, vindo com eles a Freira Diretora que era ou assim se entendeu fosse, versada em Psicologia eis que de imediato se dirigiu diretamente ao Moleque, realizando pequena entrevista da qual, disse-o, resultou mais tranquila com o que, temia, pudesse ter-lhe atingido com maior gravidade do que aquilo que sucedera com Edna, isto é a reação do moleque e a possibilidade de que tudo isso resultasse em traumas. De novo e mais agora passado um distanciamento oportuno e esclarecedor, acredita-se que às sentidas e silenciosas lágrimas de “Mãe Mocita” que deflagraram às do Moleque, tenha trazido luz à escuridão que o estava envolvendo devolvendo-lhe à condição de criança, liberto da cruz da culpa e do arrependimento. À salutar preocupação da Irmã de Caridade com o Moleque, que foi dispensado de comparecimento de outra ou qualquer entrevista com ela que se convencera de que ele não sofrera um abalo superior àquele entendido como normal ao caso, resultou um emocionado agradecimento dos pais dele àquela digna e atenciosa representante dos profissionais da saúde.

Registre-se, por oportuno, que Edna ainda tem cicatriz da queimadura somente que agora adulta, maior do que a bonequinha que era, a natureza se ocupou em quase extingui-la e mudá-la estando hoje localizada no antebraço, bem próxima do cotovelo; os cílios e supercílios, mais os cabelos, todos voltaram ao normal bem como, na testa não há marcas que lembrem que um dia foi queimada por seu irmão, o Moleque...

Para finalizar, também registre-se que “Seu” Ramão, bombeiro, marido da estimada Eva, irmão do Luiz Chaves se naquele dia estivesse em casa e não de plantão no quartel dos heróis do fogo, como estava, possivelmente não teria acontecido tal fato porque ensinaria ao Moleque que bastaria ter tampado a garrafa e o fogo se extinguiria eis que, no caso específico, o que causou a combustão foi o oxigênio que, se consumiria rapidamente se tampada a garrafa. Sem oxigênio, não há fogo... Ah soubesse disso o Moleque, embora, fatalista, possa dizer o que muitos repetem, o que tem de ser, será!

GLOSSÁRIO
(*) Jogo “Cinco Marias”: Composto por cinco pequenas pedras que são jogadas para cima a uma distância relativamente pequena pela mão preferencial do jogador(destro ou canhoto) enquanto os dedos polegar e indicador da outra mão formam um arco - “ponte” - por onde as pedras serão empurradas à passagem; das pedras jogadas escolhe-se uma que será a “joga”, sempre aquela que se entende a mais dificil de fazer passar pela ou sob a “ponte”; feito isso, enquanto a “joga” é atirada ao alto, o jogador tenta passar uma das demais pedras sob a “ponte” sem poder tocar nas outras e pegando a “joga” antes dela cair ao chão, pena de, se errar, em qualquer dos casos, ceder a vez ao adversário, sem marcar pontos. (NA). (**) Denominação dada, em Uruguaiana, ao motorista de táxi: "Chauffeur", motorista em francês; "... de praça" porque o local onde estacionavam à espera de clientes-passareiros era nas praças (Barão do Rio Branco, Argentina, etc).

domingo, 14 de junho de 2020

REABASTECIMENTO


Às vezes necessito esconder-me nos bastidores
Para, escondido e de uma só vez, chorar as dores
Que como em todo o ser humano em mim desabam
Esmagando vaidades que em meu eu germinam
Como inço (*), aos outros aparecendo lúcido, tão forte,
Dono de impossível vivência de sempre saber meu norte...
Ali, caem máscara, pano e sou eu de novo pleno e fraco,
Estranhamente um nada em meio ao imensurável charco.
Daí, desse meio, mais frágil, só e em completo abandono
Defrontado comigo, com minha própria finitude, retomo
A certeza que está nos outros aquela fonte encantada,
Fértil moinho de forças e fé que acreditara esgotada.
Desse esconderijo descubro mais e muito mais descubro,
Não fui nem jamais serei só, embora tantos dias turvos
É nos outros que vivo cozendo trajetórias e contratos
Que marcam vidas para além da eternidade do abstrato...


(*)Inço s.m. RS Conjunto de ervas daninhas que infestam áreas cultivadas. (Dic. Enciclopédico Ilustr. Veja Larousse, Vol 12, 1ª Ed. Brasileira, Editora Abril, 2006, São Paulo).

sábado, 13 de junho de 2020

O QUE É DA ÁGUA...


Olhava uma gravura que despencou
De um calendário sem data ou rito,
Cena rural e a natureza a sangue frio
Falou-me do que fui e não mais sou,
Mais que em voz alta, além, aos gritos
Vociferou, desconectou meu desvario.

Choupana rústica, telhado de capim,
Córrego, ouço a acústica das águas
Passando sob o pontilhão de madeira,
Tudo simples como tudo fora em mim
E já não era, afogado pelas mágoas
Dos fracassos de uma vida inteira.

Perdi o que só eu tive e nem merecia
O ar que respirava, meu paraíso, ali,
A estultice cegou-me, o sonho feneceu
Sem ele, sem vida, sem o que seria,
Assassinei o que tive e o que não vivi
Em meio a estupidez desse tudo eu.

Quis mais quando tive tudo e não sabia,
Quis mais e tudo perdi e mais não tive
Entorpecido pelo fanatismo maleva
Quis o poder, do mundo toda riqueza.
Derrotado, que disso ninguém duvide:
Sempre, o que é da água, a água leva!

sexta-feira, 5 de junho de 2020

OUTRA DO MOLEQUE-Nascente, Sanga, Açude, D. Negra e Vizinhos


Bem maior do que um “olho d’água” como a chamavam, era uma nascente borbulhosa, possivelmente advinda de lençol ou lençóis freáticos (*), de muita água a ponto de, por caminhos subterrâneos, explodir em fonte de insecável poço que abastecia de límpida água potável, não apenas a família do Moleque como também a todos os vizinhos nos tempos de seca; dali, cerca de dez metros utilizando os mesmos caminhos subterrâneos, reaparecia ao início em forma de sanga (**) pelo menos para o Moleque, de mais ou menos três metros entre uma margem e outra até, quintuplicar-se, alargando-se e, ao mesmo tempo, como se fosse água represada, à formação de uma espécie de açude, cuja margem direita ornada de inúmeras plantas em especial, um taquaral, fazia fronteira ao pátio da casa da avó dele que se servia do açude como se sua piscina e pesqueiro particular fosse, para refrescar-se no verão e, em todas as estações, pescar os famosos muçuns para Tivico devolvê-los gostosos, fritos em banha de porco e crocantes, que saboreava com prazer e requinte (até aquele malfadado dia em que, por demorar conversando com Tivico enquanto ele limpava e fritava a iguaria observou que, quanto mais quente ficava a frigideira mais o muçum, agora partido em rodelas, se mexia como se vivo estivesse e, como tal impactante e horripilante impressão, colocou fim à atividade de pesca e comilança do Moleque a respeito (cujo “causo” foi abordado em outro conto).

Com quinze ou vinte metros de extensão o açude, logo adiante, retomava o formato de sanga e seguia, em seu rumo e sentido longitudinal até para bem além do alcance dos olhos do Moleque, de novo sumindo de vista (a nascente localizava-se mais ou menos a trinta metros da Rua Sete de Setembro, com a água seguindo em direção oblíqua à Rua Aquidaban - hoje Flores da Cunha – atravessando-a e desaparecendo logo adiante). Ambas as margens eram povoadas por casebres, a maioria assentados em lotes cujos terrenos eram alugados (no dito “aluguel de piso” existente em Uruguaiana, então).

Na margem direita da sanga que dava sequência ao açude, portanto aos fundos da casa da avó do Moleque localizavam-se os casebres de “Véio Popeye” e família, pais de Guiomar, Camilo e Carlos (o Popeye Filho), do casal Severo e Negra, pais de Jurandir, da família do “Seu” Danúbio (o homem que morreu de “bife”, no conto “Dona Boneca”) tendo ainda, ao lado, o de Dona Vita e família (Waldemar, o marido e as filhas Maria e Pata) e, aos fundos, já na Aquidaban, “Seu” Xingolo sua mulher (analfabeta que, diziam, como medium espírita em transe, prescrevia e escrevia receitas de chás e remédios campeiros, curando os pacientes) e a filha Dolores, também D. Julieta e filhas Almerinda e Santa (mãe de Leda – objeto de conto) em casebre com frente à Rua Quatorze de Julho e, um pouco além D. Isaura, o marido “Véio Fifi” (objeto de outro conto) e o filho Beia, quase à esquina da Aquidaban.

Na margem esquerda do açude/sanga/ nascente moravam D. Clementina (que teve e morreu da doença dos românticos, a tuberculose, incurável à época) e suas três filhas menores; seguindo o rumo da sanga, o “curioso” Jorge, Aviador do Lixo, com sua casa encravada no buraco escavado no terreno, com entrada de ar protegida da chuva (tipo “chapéu” de fogão à lenha, inclusive com “galos” de metais acoplados e móveis para indicar a direção do vento e uma curiosa antena do “rádio galena” (***) a quinze centímetros do chão (tinha que tomar cuidado para não tropeçar nela): os vizinhos eram os integrantes da família Fonseca formada, dentre outros, das Ds. Elvira e Dorila, do gaiteiro Loretto, dos também residente, as gurias, Araci e Mana, e os guris Pedro Sabugo e Eracildo, amigos do Moleque, todos vizinhos da família Espíndola que morava na esquina com a rua 27 de Outubro (atual Beheregaray).

Dessa esquina, rumando à Rua Sete de Setembro, tinha a família Guimarães das “mães de leite” do Moleque, Malvina e Isolete casada com Alcino, pais de Sonia, Pedrinho e Jardel (“irmão de leite” e um mês mais velho que o Moleque) mais o irmão daquelas, Homero Guimarães e a mãe deles, sogra de Alcino, D. Isolina. Ao lado da casa destes, a família do sargento Verdum, caçador de lebres e outros animais; seguido da residência das famílias do “Nego” Pinto, ao lado da de João Carlos “Maneta”, chegando à esquina da Sete de Setembro nos casebres da família Grillo.

Para completar, pela Sete de Setembro até a casa dos pais do Moleque, vizinhos dos “grilos” era o casal Djalma e Lourdes, por sua vez vizinhos de Domício e Mosa pais de Wilson e Núbia; ao lado, “Seu” Herculano comunista, divulgador na região (realizando sessões de leitura para os analfabetos) do jornal “A Voz Operária”, casado com D. Emiliana, pais da Joana (que casou com Napoleão), Neusa (que casou com Bola), Beto, Tito, e João Carlos “Imbido”, da mesma idade e amigo do Moleque; moravam ao lado deles D. Amélia, viúva, mãe da Dulce (que casaria com Adão Camurra) e Virgílio (menor do que o Moleque); ao lado, “Seu” Amâncio casado com D. Nair, pais de Nika e Edson, que tinham como vizinho e compadre, “Seu” Ari que morava sozinho e, finalmente.Entre os casebres de Ari e da família do Moleque, “porteira” de dez metros de largura para acesso dos moradores de fundos (em linguagem jurídica, comum ou leiga, “beco de servidão” ou “direito de passagem” - NA).

Passando, no outro lado, morava o casal Tivico e Alzira e, aos fundos, “Mãe” Mocita” (personagem do conto de igual nome) e Bila, que casaria com Dula. Após o casal Tolentino, o Tarugo, e Dona China, “muié macho sim sinhô” como dizia a letra de uma música da época falando sobre as paraibanas. O Tarugo era açougueiro e um tanto quanto viciado em jogos de azar e volta e meia se metia em confusão e, fugindo da briga, entrava esbaforido dentro de casa de onde saía D.China, com um facão na mão e, riscando o dito do chão, desafiava o agressor de seu marido (às más línguas diziam que era só dela a primazia de dar algum corretivo no Tarugo – na época não existia a lei Maria da Penha, senão Tarugo tentaria vê-la aplicada em seu favor, ora!); o casal tinha uma filha chamada Maria, muito recatada e discreta.

O vizinho do lado era o casal Emílio e Mariquinha, pais de vários filhos: Cema, Anadir, João, Zeca, Cleusa, Mariza, Quico (Saul Adair Inzabralde), Zote (Luiz Alberto Inzabralde) estes últimos amigos do Moleque. Emílio dividiu a casa e terreno em compartimentos de modo que de um lado residia a família e n'outro construiu uma Cancha de Bochas, fundou o Clube Sete de Setembro, fachada da conhecida “Carpeta do Emílio”, onde o Moleque passou grande parte de sua infância e teve aprendizado diverso por aqueles autênticos professores, ao reverso, jamais adquirindo os vícios da jogatina ou bebida, até pelos ensinamentos e exemplos de vida que eles davam ao Moleque sempre dizendo-lhe que aquilo não era certo, que devia seguir os conselhos do pai, um trabalhador honesto que zelava por sua família e não devia ter um filho que o envergonhasse nunca e outros conselhos de natureza positiva que, vindos de quem não tivesse a experiência insalubre que eles tinham, sabe-se lá se surtiriam no Moleque o mesmo efeito e importância como, acredita, tenha ocorrido.

Nesse universo que compôs parte da vida do Moleque, além das histórias do açude e outros tem uma que realmente o marcou muito pois levou o maior “Culepe” (termo, aparentemente, francês que significa grande susto) quando ao procurar o Jurandir, filho de D. Negra, apelidado e conhecido por Jura e mais particularmente pela turma da molecagem como “Gato” pela incrível ligeireza e capacidade de escape, foi atendido pela mãe dele que suave e calmamente disse que iria chamá-lo e em meio ao simples girar dos calcanhares retorceu-se toda, babando desenfreadamente e caindo ao chão onde continuou desenvolvendo procedimento dito normal aos infelizes pacientes que “sofrem” da doença chamada epilepsia (**) totalmente desconhecida pelo Moleque e, mais atreve-se a dizer que exceto pelo pai, pela avó e quem sabe um ou dois vizinhos, ninguém conhecia ou sabia existir. Uma doença, que pensavam ou temiam por absoluta ignorância, contagiosa pela baba cheia de borbulhas que saía da boca do infeliz portador, epiléptico.

Profundamente atingido e em meio ao distúrbio que também o contaminara pelo que presenciara, o Moleque saiu correndo dali e como agulha de bússola buscou seu norte, ou seja, ninguém menos que sua avó pois a sabia capaz de acudir D. Negra, o mundo, o que viesse, como de fato foi o que aconteceu. D. Nãna, correu o mais rápido do que pode, encontrando D. Negra, caída e com grossa e caudalosa baba lhe fugindo, ainda, pela boca, todavia, agora não mais agitada, um tanto quanto mais serena. O Moleque, agora refeito do “culepe”, munido de mais coragem porque ali estava com sua avó, a seu mando foi ao campo procurar o que lhe foi pedido por ela, diversos “jujos” (termo espanhol, de linguajar gauchesco, da fronteira, que significa ervas para chá e tem uma bela letra e música da Califórnia da Canção, do poeta e compositor uruguaianense Knelmo Amado Alves - o grande sapateiro Cotoxo, do “Recuerdos da 28”, que começando pelo título, “Jujo Idéia” debulhou-se do neologismo às metáforas) e quantos e quaisquer que encontrasse, afinal, acreditava, nem mesmo sua avó sabia qual ou quais e quantos “jujos” seriam necessários a dar solução ao problema ali enfrentado. Missão dada, missão cumprida pelo Moleque que colheu e levou inúmeros “jujos”, desde salsa parrilha e pata de vaca, mentruz e losna, folhas de paraíso (em Porto Alegre conhecido como cinamomo), passando por folhas de outras árvores como laranjeira, figueira, pitangueira, amoreira e alecrim (o da beira d’água) e muito mais, entregando aqueles “jujos” para sua avó que, paralelo a limpeza que realizou em D. Negra e a manutenção de sua cabeça e pescoço, eretos, friccionava com álcool às articulações e braços dela que já recobrara os sentidos, ainda que um tanto quanto “grogue”. (*****)

Dona Negra não sabia explicar, nem ninguém até ali saberia, o que ocorria consigo; não era a primeira vez que desmaiara sem mais aquela e ao acordar verificar-se toda molhada de baba, muita baba disse um tanto quanto envergonhada. Dona Nãna a aconselhou procurar socorro médico pois “boa coisa aquilo não era, embora a história contasse que grandes personagens dela haviam sofrido desse mal, como Júlio Cesar o Imperador do Grande Império Romano e, mais próximo de nós, o grande e talentoso escritor Machado de Assis; ao que sabia ninguém tinha morrido, mas o desmaios em aviso poderia fazer com que ela sofresse um contusão mais séria, batesse a cabeça, quebrasse uma perna e coisas desse gênero; certamente aquilo não era boa coisa e ela devia ir ao médico para se tratar”.

A assim chamada medicina campeira praticada pela avó do Moleque pode ser que, em toda sua extensão e prática, não tenha a eficácia e elevada contagem de resultados exuberantes quanto a sua aplicabilidade, todavia e é certo, complementa, auxilia e às vezes é a única fonte e caminho de muitos para minorar o sofrimento e dores dos desassistidos pela sorte que grassam e perambulam por vielas, campos e favelas plenas de ignorâncias, miséria e falta de condições sanitárias de tal e elevada ordem que nem mesmo o SUS, nosso tão maltratado e injustiçado sistema de saúde, quiçá único no mundo totalmente gratuito, por mais que se esforce e vá, como vai, muito além do que lhe seria pertinente exigir pelas ingratas, parcas e insuficientes condições que lhe são fornecidas para cumprir seu mister, não consegue contemplar a plenitude das necessidades e atendimento da saúde do e para o povo.

Naqueles tempos, na área campesina por onde transita o presente conto, a medicina campeira era e continua tendo elevada importância como bem o cantou nosso grande poeta, Jaime Caetano Braum no poema “Medicina Campeira”, excelente como tantos outros desse mestre que deveria ser cultuado e admirado pelos gaúchos como um dos maiores nomes da literatura universal.

GLOSSÁRIO

(*) FREÁTICO adj. (fr. Phréatique) Que diz respeito a lençol de água subterrâneo em nível pouco profundo. (Dicionário Enciclopédico Ilustrado Veja Larousse, vol. 10, Ed. Abril, São paulo, 2006).
(**) SANGA s.f (bras.) Escavação funda produzida num terreno pela chuva ou por correntes subterrâneas; (bras. Do sul) pequeno arroio. (Do cast. Zanja.) (Dicionário Brasileiro Zero Hora, Porto Alegre, 1984).
(***) GALENA s.f. (miner.) Sulfeto de chumbo, que às vezes contém prata, também chamado galenita; (bras.) aparelho rudimentar de rádio em que emprega o cristal de galena como detector ((Do lat. Galena.) (Dicionário Brasileiro Zero Hora, Porto Alegre, 1984).
(****) EPILEPSIA s.f.(gr. Epilepsia)MED Afecção caracterizada pelo aparecimento de crises que incluem manifestações clínicas paroxísticas, ger. convulsivas que se podem acompanhar de perda de consciência; ...(Dicionário Enciclopédico Ilustrado Veja Larousse, vol. 9, Ed. Abril, São paulo, 2006).
(*****) GROGUE (ó), s.m.... adj. 2 gen. Que está titubeante como quem tomou muito grogue. (Do ingl. grog.) (Dicionário Brasileiro Zero Hora, Porto Alegre, 1984).

segunda-feira, 1 de junho de 2020

OUTRA DO MOLEQUE- VIAGENS COM O PAI


Então se deu que o pai do Moleque foi encarregado de complementar negociação referente a aquisição de uma cadeira de barbearia para o salão e com tal objetivo viajaria para Porto Alegre e, aproveitando a oportunidade, resolveu levá-lo consigo, como prêmio pelo fato do mesmo ter passado no exame de Admissão ao Ginásio no glorioso e respeitável educandário, Colégio Estadual Dom Hermeto, escola pública dos níveis ginasial (1ª à 4ª Série), e Médio (1ª ao 3º Ano, do Científico ou Clássico e que era uma das únicas escolas públicas desse nível de ensino em Uruguaiana; a outra, sua vizinha de pátio e quarteirão era a Escola Normal Iris Ferrari Valls, cujas alunas eram chamadas de Normalistas, formava professoras destinadas a lecionar no Curso Primário (1º ao 5º Ano) que antecedia ao Ginásio.

O Moleque ficou radiante pela decisão do pai que, até para tornar a viagem mais extensa e agradável, aumentou o tempo de permanência na Capital eis que nela deveria chegar na sexta-feira pela manhã e resolveria sua missão ainda naquele dia, porém voltaria apenas na segunda-feira, à noite. Para o Moleque aquela deveria ser a viagem que o marcaria para sempre, como três outras, anteriores, feitas com o pai e que ora se permite abrir parênteses para, rapidamente contá-las:

A primeira viagem do Moleque com o pai foi visitar seus avós e familiares paternos na vizinha cidade de Itaqui, terra natal dele (fronteira com Alvear, Argentina), em cujo porto o pai dele, nono Emílio, leu na proa de um navio o nome tupi-guarani, Itagiba, cuja sonoridade, inédita para ele, o seduziu a ponto de batizar seu primeiro filho com ele. Orgulhoso disso e para não ficar sozinho na parada o pai do Moleque, depois de homenagear os avôs paterno e materno pondo seus nomes no filho primogênito (Emílio Elder), se auto homenageou transferindo dito nome ao Moleque; ocorre que a mãe propôs fosse colocado também o nome de São José, antes do nome indígena. Vejam como são as coisas, chegada a hora, por vaidade, o pai colocou seu nome em destaque, à frente de José e, sem querer acredita-se, formou, com o nome e o sobrenome, um verso alexandrino perfeito (*) , como aquele formado pelos nome e sobrenome de um dos maiores, senão o maior poeta brasileiro, Olavo Brás Martins dos Guimarães Bilac, o que não ocorreria tivesse obedecido a ordem proposta pela mãe do Moleque, porquanto nos versos, sucintamente, ao encontro das vogais conta-se apenas uma sílaba (no caso, e+i formaria uma silaba e os nome, sobrenome do Moleque, na contagem, resultaria em onze e não doze silabas como se caracterizam e por isso são assim chamados os versos alexandrinos).

Em Itaqui, além da beleza e placidez da cidade, chama a atenção o portentoso Teatro Prezewodowski (nome difícil de guardar ou pronunciar) joia arquitetônica de beleza e magnitude incomum localizado bem no centro da cidade, atração turística atestando o poder econômico e cultural da região. Na casa dos nonos Anita e Emílio, como fazia a irmã de seu pai e residente em Uruguaiana, Tia Ulda, o Moleque foi abraçado, beijado, mimado,inclusive pelos tios José, Antenor e Mosa que, posteriormente se casaria com um argentino e iria morar em Monte Caseros, Argentina, na segunda viagem feita pela dupla pai e filho. Nessa ocasião, informada do poder destrutivo e desaforado da boca do Moleque a tia, de brincadeira e piscando os olhos para o irmão, disse que gostaria de preparar um “chouriço” (comida típica da região) e para tanto queria que o Moleque fosse na “bodega” da esquina, que era uma piçaria, trazer-lhe a p... mais grossa que encontrasse, para o preparo... Espantado, o Moleque se recusou a buscar a encomenda, decepcionado com a tia por ela ter se envolvido com aquele argentino “bagaceira” que não devia ser grande coisa pois ensinara a tia dizer aquele palavrão e, até, comê-lo, cruzes! Todos, inclusive o tio argentino explodiram em gargalhadas, deixando o Moleque pasmo, sem entender nada até que seu pai desenredou a questão dizendo que a p... nada mais era do que a linguiça brasileira, em espanhol...

A terceira viagem ocorreu em comemoração ao Dia do Barbeiro em conclave e banquete oferecido pela Associação de Alegrete, na cidade de igual nome, costela da qual saíra Uruguaiana, em decorrência do Posto Fiscal Santana Velha ponto avançado ao oeste, origem da aldeia posteriormente deslocada mais ainda, ao oeste, depois distrito, elevada a Vila e, finalmente, a cidade, banhada pelo rio-mar Uruguai, tendo como padroeira Santa Ana, avó de Jesus Cristo, Mãe da Virgem Maria e que, por obra, graça e maravilhosa inspiração de seu fundador, o mineiro Domingos José de Almeida, foi batizada Uruguaiana (**) pela junção dos reverenciados e supra citados nomes.

Em Alegrete, que é o que interessa ao assunto em pauta, conheceu a guaraná, das marcas Brahma e Antártica, ambas à época donas do mercado atinente; ele já a vira na Confeitaria Campana, no centro de Uruguaiana que frequentou algumas vezes após a missa “dos preguiçosos” na Catedral de Santa Ana, das 11:00H porque não era lá essas coisas como madrugador, só não provara a tal de Guaraná e, por isso, mal sabia quanto ela era gostosa e, quase integrante da categoria desde que era engraxate de barbearia, tendo-a à mão cheia, grátis tomou tudo que deu e o que não deu, enfim, um porre amazônico daquele líquido da cor do ouro, do que momentaneamente ficara intermediário indo e vindo ao banheiro tantas vezes quantos copos tomara. Foi uma festança sem fim, com churrasco gordo como gostava, bem gordo, regado a toneladas de guaraná... Melhor que isso ... só isso!

Voltemos à origem deste continho dando andamento a viagem à Capital não sem antes dizer que a demora de nosso retorno a ela, também se deve ao tempo que a Maria Fumaça levava para se preparar e partir em trânsito tipo pinga-pinga, com paradas, desembarques, “baldeação”, em Santa Maria, até chegar em Porto Alegre, vinte e quatro horas distante (este continho com ou sem “baldeação” não vai durar tanto tempo para ser lido).

O Moleque se perguntava como seria o céu em Porto Alegre, as ruas, diziam-na muito grande, seria que seria, bonita mais que Uruguaiana, duvidava fosse: até havia seresteiros ditos “viajados” como o ritmista Charanga que ao se referir ao tamanho dos edifícios levantava o olhar e as sobrancelhas, abrindo a boca, ou bocão enorme que era, em mistura de espanto e convencimento... nada podia ser maior que o esperado, mas para ele foi maior, muito maior ...
Começando pela viagem em si, passando pelas estações de Pindaí Mirim e Plano Alto, dentre outros, distritos de Uruguaiana, por Alegrete, depois por Cacequi (frenético mercado de produtos artesanais como o “Pinguelim” espécie de mini relho de couro cru com cabo ornado de arabescos ou fitas de plástico, crochê ou tecido e a misteriosa passagem – ou túnel – subterrâneo, única forma de se alcançar à rua); logo adiante Dilermando de Aguiar, então distrito de São Gabriel ou Santa Maria, onde à chegada do trem, a gare ficava repleta de vendedores ambulantes, em sua maioria, vendendo peixe frito quentinho ao preço de um cruzeiro (Cr$ 1,00) ou um pila, a fatia. Dali, a chegada em Santa Maria “da boca do monte”, “cidade universitária” ou “coração do Rio Grande”, para que se efetuasse a “baldeação” – troca de locomotiva, vagões e bagagens – procedimento que demandava duas ou três horas, o que dava tempo para esticar as pernas, subir pela Rio Branco e dar uma voltinha pela Dr. Bozzano, ruas centrais de Santa Maria e voltar à gare para seguir viagem, passando por Restinga Seca, Canoas e, finalmente, chegar a Porto Alegre, com a última parada na Estação Diretor Pestana bem à frente do Aeroporto Salgado Filho ou no monumento do Laçador, ao final da Av. Farrapos, início da BR 116, dali indo então ao ponto final do percurso, a gare da Estação Central, no encontro das Ruas Voluntários da Pátria e da Conceição. Mais de vinte e quatro horas de viagem de trem, ufa!

Daí em diante, da movimentação intensa deu-se a perplexidade ao atravessar a cidade e aportar na Venâncio Aires, cerca de cem metros da João Pessoa e igual distância, aos fundos, da Praça da Redenção, na Pensão do casal Heimboldt, onde ambos se instalaram. Logo em frente passou um Bonde cambaleando por sobre trilhos fixados à Venâncio rumo ao Menino Deus; o encanto dessa visão não foi quebrado nem mesmo quando o Moleque nele ingressou pela primeira vez, no mesmo dia e, em grande aventura, partiu rumo ao infinito do logo adiante chamado Praça José Garibaldi; ida e volta sacolejando no Bonde Gaiola (não era não “Num Bonde Chamado Desejo” – peça teatral do dramaturgo Tenessee William, mas como quase toda primeira vez, foi muito bom). Depois disso, fez um solitário passeio, a pé agora e não podia ser diferente, até o Zoológico da Praça da Redenção, distante quase dois quilômetros da Pensão, do Arco do Triunfo e Colégio Militar, ambos na José Bonifácio; no zoo viu macacos, cobras e outros animais, inclusive araras bem parecidas àquelas do zoo da Praça Barão do Rio Branco em Uruguaiana; foi ao lago onde andou num barquinho em formato de cisne, divertindo-se sozinho, todavia atendendo criteriosas ordens do pai para tomar cuidado e não se perder enquanto ele tratava, com terceiros, dos assuntos relacionados ao objeto da viagem.

Na manhã de sábado, agora com o pai, foi ao centro, aumentando seu quase torcicolo de tanto olhar edifícios de baixo para cima, guardando o nome de um, quem sabe o maior da época, o Sulacap na Borges de Medeiros; nunca vira tantos edifícios juntos, em Uruguaiana conhecia apenas um que assim chamavam só que era uma casa em cima de outra e deu. Também ficou impressionado com o Viaduto Otávio Rocha que como uma ponte, seca, passava por cima da Borges de Medeiros e mesmo com intenso tráfego, até caminhão passava ali, não caía. Encantou-se com a Rua da Praia (cadê a dita) que só muito tempo depois veio a saber seu nome real, Dos Andradas, e que com a Borges formava um cruzamento famoso chamado Esquina de Porto Alegre, com intenso movimento de pessoa e de carros, sacrificado pelo infeliz banimento do automóvel, como o próprio Centro Histórico à noite entregue às moscas ou, pior, aos marginais.

No domingo pai e filho foram levados pelo irmão da mãe do Moleque, Jureldi ou melhor Táboa como sempre foi chamado pelos amigos e parentes, que morava na Av. Teresópolis, no bairro de mesmo nome, para lá almoçarem com sua esposa Iolanda, a amada filha Teresinha Jacqueline e com uma visita muito querida por todos e pelo Moleque também de nome Iolanda que estava separada do tio Jurelni, o Ni para os familiares e era vizinha do Jureldi, o nosso Táboa. Por incrível que possa parecer, Ni e principalmente sua ex-mulher Landa (amada mãe de Jorge, Julcema, Naira e Lenine), foram, junto com a Tia Eustáquia, às únicas pessoas que o Moleque chamou de “tios” embora amasse por igual a todos os tios.

Outra novidade esperava o Moleque, a salada que lhe foi apresentada se chamava maionese e ele nunca tinha comido nada igual, pelo menos em termos de saladas. Guloso como era e com o aval e concessão de todos comeu até não aguentar mais. Táboa era um grande e requisitado jogador de futebol, considerado como o melhor ponta-esquerda que pisara o Passo d’Areia eis que atuava pelo Zivi-Hércules, fabrica de talhares, no renhido e disputadíssimo campeonato do SESI, recebendo “grana” para jogar por outros clubes em campeonatos e torneios diversos, às vezes jogando aos sábados e também domingos. Depois do Zivi, Táboa foi contratado para trabalhar e jogar nas Forjas Taurus onde permaneceu por dez ou mais anos tendo sido campeão de Porto Alegre e vice do Estado, empresa para qual, anos depois levaria o Moleque, no auge de seus quinze ou dezesseis anos.

Após o almoço Táboa tinha assumido compromisso de jogar pelo Veronezzi, em Canoas, e convidou o Moleque para ir junto; lá chegando, o campo era no Bairro Harmonia, Táboa deu cinco cruzeiros ou pilas (Cr$ 5,00) para o Moleque gastar no que lhe aprouvesse, enquanto ele jogava bola. Lá pelos quinze ou vinte minutos do primeiro tempo passou um guri vendendo bananas, fruta que o Moleque gostava muito de comer, especialmente àquela destinadas à Argentina e que ficavam expostas quase ao descuido por entre frestas abertas à ventilação nos vagões, à espera da troca dos rodados, já que a bitola dos trilhos da Argentina era bem mais larga do que a brasileira (***).

Dá-me meia dúzia de bananas ao que o guri vendedor respondeu que não era por unidade e sim por quilo que vendia; então me dá quantos quilos posso comprar com cinco pilas. Deu treze bananas que o moleque, enquanto transcorria o jogo, sem nenhuma pressa foi comendo... boas bananas, docinhas... À noite voltando à casa de Táboa, perguntou se ainda tinha aquela salada. Sim tinha, mas ambas as queridas Landas se opuseram a servi-lo informando do perigo porque feita pela manhã, para o almoço, poderia gerar problemas digestivos, além disso, por falta de refrigerador tinha sido guardada no armário (ninguém, nem mesmo o Táboa, sabia das treze bananas). A gula ah, a gula como todos pecados em especial os capitais tira o senso e faz o pecador perder a cabeça; e não deu outra, cheira daqui, cheira dali, deu-se a maionese como em condições de ser comida e o Moleque a comeu.

Pai e filho foram levados à Pensão, despedindo-se o Moleque desses queridos tios, mesmo àqueles que já realizaram a viagem marcada para todos nós desde o nascimento, como a querida Tia Landa, do Morro da Pedreira, como era identificada para diferenciá-la da outra Tia Landa, tão querida quanto, pelo Moleque. Pela altura da uma ou duas horas, em meio a desconhecidos, exceto seu pai, o Moleque se acordou com uma incontinência jamais sentida, em turbilhão desconexo e desgovernado parece que tudo que havia comido naquele dia queria e veio num supetão, tudo saindo de suas entranhas, num mesmo momento, tudo cólica, tudo vômito, ou vice-versa, a ordem não importava pois era tudo concomitante e desarranjado. Em poucos segundos ficou tão fraco que até a vergonha se escafedeu. Acudido não só pelos anjos donos da Pensão, pelos outros que sempre estão de plantão como o Da Guarda, por Nossa Senhora, pela Divina Providência, por Jesus Cristo e todos Santos, escapou dessa, vivo. Sem confirmação médica, que não foi levado para atendimento, disseram “entendidos” que ele teve forte ameaço de congestão ou uma congestão.

De tudo isso, da fraqueza abissal que tomou conta de seu corpo franzino, lembra-se apenas que como remédio lhe foi dado dois ou três comprimidos de Veramon, dito próprio para combater febre ou resfriado ... Aquela interminável noite de segunda para terça-feira continuou como se perene fosse durante todo tempo, infinito, passando pela ida a pé da Pensão à Estação Ferroviária, pelo centro feéricamente iluminado, das alucinações, animações em 3D, vertigens saídas de surtos de precoce labirintite geometricamente multiplicada, na viagem de volta cujas lembranças, se existiram nem foram marcas ou o tempo apagou!

Creiam, entretanto, tudo isso valeu a pena, como mais ou menos versejou o grande poeta português Fernando Pessoa “tudo vale a pena, se a vida não é pequena” ou, em complementação do continho, do poeta mais próximo e nem tão distante na maravilha de seu poetar, o nosso também grande Jaime Caetano Braum no “Bocincho”: “E a China? Nunca mais vi ... tudo isso faz parte do meus passado...”!

GLOSSÁRIO

(*) Verso, s.m. Reunião de palavras sujeitas em número e cadência à certas regras fixas; cada uma das linhas que formam uma composição poética; ... verso alexandrino o que tem doze sílabas ... (Dicionário Brasileiro Zero Hora, 1984). DIZ-SE VERSO ALEXANDRINO PERFEITO àquele cujas primeiras seis sílabas podem se separar das outras seis com ambas mantendo significado individual e independentes entre si, todavia quando complementares adquirem significado único relacionado ao individual de cada conjunto. Exemplificando, é o caso do citado Olavo Brás Martins (composição = 6 sílabas) dos Guimarães Bilac (composição = 6 sílabas)\| total = 12 sílabas. (NA)

(**) “... Decreto do então Presidente da República Riograndense, Bento Gonçalves da Silva, 24 de fevereiro de 1843, referendado pelo Ministro Domingos José de Almeida ... A capelinha construída na margem do Uruguai foi a origem da cidade erigida em homenagem a Nossa Senhora de Santana e cujo nome foi lembrado por Domingos José de Almeida, fundador e benfeitor da povoação ... 18 de novembro de 1841 transporte dos moradores que se haviam instalado no posto fiscal de Santa Velha, para o local escolhido para a nova povoação ... 18 de março de 1846 foi Uruguaiana elevada a categoria de sede de um novo município e desmembrado seu território do de Alegrete ... Lei Provincial de 29 de maio de 1846 ... elevada a categoria de Vila ... Em 1865, antes mesmo que adquirisse as prerrogativas de cidade foi invadida pelo exército paraguaio, que a reduziu a ruínas ... 05 de agosto de 1865, rendição paraguaia, voltando a Vila de Uruguaiana a ser ocupada por seus habitantes ... e a garantia que lhes deu o Imperador Dom Pedro II, colocando-a sob a guarda de três corpos do exército ... lei provincial de 06 de abril de 1874 foi Uruguaiana elevada a categoria de cidade ... (“URUGUAIANA – Seu Passado, Seu Futuro”, de Octávio Lago, Ed. La Salle, Canoas, RS, 1969”).

(***) O grande Irineu Evangelista de Souza, um dos maiores gaúchos, conhecido como Barão e depois Visconde de Mauá foi de vital importância no trato e negociações com os ingleses ao tempo da Rainha vitória, a ponto de a Inglaterra ter débitos para com o Brasil, inclusive tendo criados Bancos em Londres e em Montevideo. Afastado por intrigas palacianas (nenhuma novidade!!!) foi substituído por outros que em pouco tempo dilapidaram as reservas brasileiras, transformando o crédito junto aos ingleses em dívida externa brasileira (de novo, nenhuma novidade!!!). Na troca de trilhos da malha ferroviária inglesa foi alargada a bitola e o lixo dos ferros substituídos negociados adivinhem, com o Brasil que os adquiriu a preço superfaturado... Na Argentina, entanto, nada disso ocorreu e a bitola de sua malha ferroviária ficou idêntica à inglesa e, claro mais larga que a do Brasil, por isso a troca de “rodado” na fronteira. A grande maioria de nossos políticos e dirigentes, desde Pero Vaz de Caminha sabem muito bem negociar em seu favor pessoal mesmo que isso seja vergonhoso, imoral e a história esteja aí para demonstrar e lastimar as falcatruas. Quem porém com isso se preocupa se nosso povo, dócil povo, é tão pobre, tão cego e, parece, dorme o sono dos anjos ou no berço da ignorância. (NA)