sábado, 25 de janeiro de 2020

OUTRA DO MOLEQUE - FORÇAS DA NATUREZA

OUTRA DO MOLEQUE – FORÇAS DA NATUREZA
(Itagiba José)

Dona Buby (apelido de Maria José Pysaco) foi a grande referência do moleque como professora e uma das pessoas que ele mais amou; ela era muito adiante de seu tempo como mestra daqueles travessos integrantes da turma a qual dava aula no antigo Grupo Escolar Municipal Maria Moritz, que a adoravam. Ao início da aula lia textos, trazia novidades, colocações, arguições, exclamações, etc, sempre instigando-os a lerem, contarem histórias, opinarem até e permanecerem atentos aos dias que viviam, aproveitando essa fase, a infância, que ela reputava como a mais importante à formação de boas pessoas, logo adiante, adultas.

Em um desses dias de aula, quase ao final do período letivo em novembro, ela dissertava sobre forças, físicas e mentais, quando de supetão e, se veria depois, por ordem alfabética, perguntou ao Arlindo, um guri calmo e bem educado se em algum momento ele se perguntara sobre que “força física” ele gostaria de possuir e se encontrada a resposta, qual seria tal força; Arlindo não demorou muito para responder dizendo que queria ter a força do “Capitão Marvel”; logo foi a vez de Augusto que, seguindo a linha iniciada por Arlindo, declarou que queria ter a força do SuperHomem; outro declarou seu desejo indicando a força do BatMan, seguido por outro que queria ter a força do escudo do Capitão América, outro a força do Zorro, etc... Algumas gurias consultadas declararam desejos de terem a força da Mulher Maravilha ou, dentre outras tantas e reais heroínas, a força, poder e liderança de Joanna D'Arc, de Anita Garibaldi, da Rainha Isabel de Castella, etc...

Quando chegou a vez do moleque responder, já haviam sido esgotados todas as forças conhecidas, incluindo grandes heróis gaúchos, como os caudilhos Honório Lemos – o Leão do Caverá, Leonel da Rocha, Gumercindo Saraiva, Flores da Cunha, etc., não restando para ele, nenhum dos poderosos super-heróis então conhecidos. Antecipadamente salientando-se que não saberia o moleque dizer se a espontânea resposta dada era de sua lavra ou se de autoria de terceiros escritas em algum dos livros por ele lidos, certo é que, sem querer repetir qualquer dos nomes daquelas alternativas antes utilizadas pelos demais colegas, declarou, sem pestanejar, solenemente, que a força que queria ter era a do espirro. Em meio ao burburinho que se seguiu, provocado pelas risadas e galhofas dos demais colegas, alteou-se a voz da mestra dizendo em um misto de pergunta e exclamação “Espirro??!!!”... “ - Sim, espirro(*), a Sra. conhece alguém que resista a um bom espirro?... se eu tivesse essa força, seria irresistível, certo?...” A grande e amada professora, rendeu-se ao axiomático argumento tão certo como dois e dois são quatro (e não cinco como anos depois cantaria Caetano Veloso para perfumar e abrandar a solidão).

A respeito do espirro cuja definição dada pelo dicionário oferecemos ao final, saliente-se que, segundo os entendidos, o ar nele expelido atinge velocidade superior a 120km/h (cento e vinte quilômetros por hora), dando para entender porque não se consegue resistir a um bom espirro...
Ao final da tarde daquele dia, uma extensa nuvem, cúmulo-nimbo (**) formou um “paredão escuro” lá para os lados dos quartéis (8º Regimento de Cavalaria, popularmente conhecido como Oitavo e o 4º GCA 75 CAV, o popular Grupo e, ainda, da Linha de Tiro, perto do Cemitério Municipal, local de instruções dos militares do QG da 2ª Divisão de Cavalaria). Aquela formação da natureza em pouquíssimo tempo de forma inopinada, vertiginosa, com ventos de brutal velocidade, derramou-se em tempestade de raios e trovões sobre Uruguaiana e, apesar de sua pouca duração, cinco ou dez minutos, fez um daqueles respeitáveis estragos em suas ocorrência e passagem. E, por mera comparação decorrente da perquirição da professora e resposta dada na aula daquele dia, pareceu ao moleque ser aquele um grande espirro da natureza aliás, igual aos espirros que acometem ou submetem os seres humanos, estes também produtos da natureza e que produzem coisas naturais como o irresistível e indomado espirro.

Ao final e infelizmente, mais tarde acrescentaria às conclusões infantis expendidas, o fato de que os seres humanos não dão o devido valor ou mensuração às forças da natureza que sempre vencem e, mais do que isso, lhes impõe inesgotáveis e inestimáveis lições que eles teimam em não aprender, brincando de serem aprendizes de deuses, frustrando sua real destinação, desde tempos imemoriais pois, ao se acreditar na Biblia, desprezando as lições trazidas por sábios seres humanos luminares, como Darwin, Adão e Eva foram expulsos do paraíso eis que seguiram os aconselhamentos de uma serpente, contrariando ordens Divinas, com isso condenando a todos e quem sabe eternamente, viverem neste “vale de lágrimas” de todos os dias... ou, se acaso tenha Darwin razão, ainda penamos e continuaremos penando por um largo tempo, em evolução lerda e plena de contrastes, sofismas, falácias e espertezas de falsos ídolos, exceto pelos ensinamentos de seres especiais como Jesus, este na condição de homem, sem a divindade verdadeira que lhe atribuímos ou como eu, acreditamos possuir, também, de Buda (Siddharta Gautama), Maomé, Ghandi, e alguns outros, etc., que a maioria teima em não seguir.

Saudemos o espirrro como um inigualável atestado de que a grande e real força de todas as coisas está localizada no simples e no amor... Vivam eles! Vivam a Vida, o mais sublime e grato de todos os presentes, realizando-a pelo amor e pelo simples, assim encontrando a plenitude do que é realmente VIVER!...


Glossário:
(*) Espirro, s.m. (fisiol.) Movimento súbito e convulsivo dos músculos da respiração, produzido por excitação da membrana pituitária, e seguido de ruído estrepitoso do ar expirado violentamente...”(Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa” Ed. RBS/Jornal -Zero Hora, 1994.

(**) CÚMULO-NIMBO, s.m., MET, Nuvem geralmente escura e carrregada, prenúncio de trovoadas e tempestades, em forma de torreões superpostos e densos, a não ser pelo topo de aparência fibrosa, devido à presença de cristais de gelo; ...” (Dicionário Enciclopédico Ilustrado Veja Larousse, vol 7, pág. 779, 1ª edição brasileira, 2006, Editora Abril, São Paulo, SP).

DESCASO


Nem sei se mereces o processar da inclemência
Do inverossímil quase do inacreditável outrora
E pouco se me dá se o peso de tua consciência
Rebente a ponte pênsil em que a repousa agora.
E daí se trevas envolvam teu deambular volátil
Que não é meu e nada é meu, nem teu ou nosso
E disso o nada ou muito pouco, te resgate frágil?
Não entendes o óbvio, que desprezar não posso,
Voas ao perigo sem asas, nua, desembaraçada
Embora tudo isso que, vejo e sei, virá à frente
Eu nada posso fazer para evitar tua derrocada
Eis-me todo inútil para te salvar perenemente!

quarta-feira, 15 de janeiro de 2020

O APRENDIZ DE OFÍCIOS


O pai do moleque tinha por meta e adágio preferido e sempre repetido para seus filhos e amigos que “quem tem um ofício nunca passa fome” ou “não morre de fome”; por isso, priorizava o aprendizado de uma profissão e o trabalho, ensinava, muito além de ser OBRIGAÇÃO (assim escrito em letras versais para dar pequena amostra da qualificação, dimensão linguística e sonora, que emprestava ao adjetivo posto) também, pelo prazer de realizar as tarefas dele decorrentes, era uma sadia diversão, tudo isso enobrecendo o ser humano, inexistindo escalas de importância entre as profissões, todas elas dignas ocupantes de nível máximo no panteão das virtudes humanas.
E por entender assim a importância do trabalho, do seu entendimento e desenvolvimento ainda que precoce desde tenra idade, proporcionou aos seus filhos o exercício de trabalhos produtivos com correspondência em ganhos pecuniários, módicos até, todavia sob guarda, uso e fruição do filho e com isso, na prática dando ao mesmo pequena todavia fundamental lição consagrando os princípios da filosofia e fundamentos da responsabilidade, que exercia a respeito e divulgava. Paralelo a tudo isso, não retirou dos filhos, jamais, o livre exercício dos folguedos e brincadeiras infantis, tampouco deixou-lhes livres o suficiente para o exercício do aprendizado escolar, exercendo sobre o mesmo total e pertinente cobrança, zelo e acompanhamento, fundado sempre no axioma praticado de que “...trabalhos, estudos, aprendizados, brincadeiras, etc...” embora diferentes entre si podem ser complementares e, mesmo que exercidos um de cada vez e no tempo certo destinado para cada um, ainda assim, interagiriam favoravelmente a uma melhor formação do futuro adulto que por isso tornar-se-ia mais responsável do que poderia ser acaso não praticassem os ensinamentos que entendia correto oferecer.
Assim, o moleque começou cedo exercendo lides trabalhistas; ao início, por volta dos sete anos de idade, foi aprender a ser o “engraxate” da Barbearia de seu pai do que não se saiu muito mal não, porquanto em pouco tempo até “sambinhas” batucava enquanto célere passava o pano de pelúcia para abrir o brilho da “graxa” ou “pasta de sapateiro” a ser polida, antes colocada sobre o couro do sapato de clientes da barbearia que estavam entregues aos cuidados do barbeiro, cortando ou “aparando” cabelos, bigodes e/ou barba. Em meio a isso, o pai iniciou-lhe na profissão que exercia e na qual era reconhecido como profissional de qualidade ímpar. Desta vez, porém, o dito popular de que “filho de tigre com listras sai” não funcionou; o moleque se perdia “chairando” a navalha, abrindo “caminhos de ratos” na cabeça dos infelizes que aceitavam o desafio de se submeter à imperícia do aprendiz, tendo o barbeiro pai, em todas as vezes, trabalhado dobrado para dar um mínimo de regularidade à tragédia (ou comédia) proporcionada pelo “corte” (literalmente, torto, assimétrico, irregular, etc, etc). De nada adiantaram as chances dadas ao moleque, péssimo aprendiz, um fracasso, sem o menor talento para exercer a honrosa profissão do pai.
Durante esse périplo, o ilustre e respeitado Consul do Uruguai, Don Juan Miguel Sotto, assíduo frequentador da barbearia, ofereceu emprego ao moleque, para, no Consulado de Uruguaiana, exercer a função de “Mandalete” (hoje, pomposamente, denominada de “Office Boy”); o pai do moleque, deixou-lhe tomar decisão sobre a oferta, sem interferir, quem sabe até, aliviado por ter ciência e consciência da inabilidade do mesmo pelo menos quanto a profissão de barbeiro na qual certamente contrariaria os axiomas que difundia (... não morre ou nunca passa, fome).
Lá se foi o moleque exercer a nobre função, ganhando o salário de Cr$ 2,00/mês (equivalente ao preço de um sapato novo, na época), com prestação de serviços de segundas às sextas-feiras, em horário matutino (porque o vespertino era ocupado pelo colégio). Graças a sua desenvoltura verbal, logo encontrou respaldo e afeto na Sra. Consulesa, D. Helena que desde o andar superior do prédio onde funcionava o consulado, residência do casal, atendia os afazeres domésticos e, dado a proximidade entre o lar e a parte digamos administrativa facilitando convívio, exercia acesso direto a tudo o mais, a ponto de, talvez por ser o moleque muito magro, sempre fazê-lo tomar lauto café da manhã, almoço e lanches nas oportunidades em que voltou ao trabalho, após ter ido à escola. Em suma, alimentava-o na tentativa de o tornar livre da subnutrição que, imaginava, ele possuir.
Também gostava do moleque, a secretária do Consulado, D. Maria, exímia datilógrafa que vendo o encanto dele perante a máquina de escrever, obteve, juntamente e com o entusiasmado auxílio de D. Marília, ilustre professora de desenho e secretária do nobre Colégio Estadual D. Hermeto onde o moleque recém ingressara cursando a primeira série ginasial, junto a D. Nair de Castro, proprietária da Natro - Escola de Datilografia de Uruguaiana, uma bolsa de estudos para que o mesmo, gratuitamente, aprendesse os caminhos e mistérios da datilografia.
O moleque foi apresentado ao “Manual de datilografia: Mecanografia, datilografia, princípios de correspondência comercial / de Ernani Macedo de Carvalho”, da Editora Globo S.A., edição de 1940, que simplificava o aprendizado pelo “Método Manet”, sob o qual, aos dez anos de idade, ele apreendeu a datilografar com todos os dedos das mãos (talvez tenha sido a de datilógrafo, a melhor e de mais qualidade das profissões que exerceria no curso de sua vida). Em pouco tempo, pelo domínio adquirido, o moleque arranjou um “bico” e, sempre que a mestra e dona da escola, D. Nair de Castro necessitava de substituto se socorria dele para representá-la mediante pequena quantia que o moleque não cobrava mas sempre recebia de bom grado e, claro, agradecia.
O próprio Consul Juan Miguel demonstrava muito afeto e paciência para com o moleque que falhava no cumprimento de horários, principalmente chegando sempre atrasado pela manhã. Para correção dessa falha, o Sr. Consul determinou ao moleque que, antes de chegar ao Consulado, visitasse às Casa de Câmbio de Uruguaiana, anotando as cotações das moedas Dólares, Pesos (uruguaio e argentino), com relação à moeda nacional, o Cruzeiro, além de, no mínimo duas vezes por semana, adquirir “botejas” do whisky “White Horse” (Cavalinho Branco) ou, na falta deste, que viesse o não menos famoso “Jack Daniel” (qualidade decantada no belíssimo filme “Perfume de Mulher”); também, levava o moleque em viagens pela Argentina e Uruguai, sempre comentando seu desejo, junto com D. Helena, de um dia proporcionar-lhe os estudos em classes avançadas, inclusive universitária, em Montevideo. A proximidade e o tratamento carinhoso dado ao moleque pelo casal o fazia se sentir em casa, podendo inquirir o Consul sobre seu costume de tomar água gelada logo após ingerir um “tecito caliente” (cafezinho bem quente); a sucinta explicação não deixava dúvidas, era de que a temperatura do café condizia com a temperatura interna do corpo e a ingestão da água gelada aumentava geometricamente o apetitoso gosto do café, sem impor sequenciais choques de temperaturas prejudiciais ao corpo, mais especificamente ao aparelho digestivo, mormente esôfago e estômago.
Infelizmente, o que o moleque não sabia, era de que o Sr. Juan Miguel, então, já estava acometido pelo câncer que consumia seu aparelho digestivo e viria causar seu falecimento quando em tratamento médico, no Rio de Janeiro (ressalte-se que, à época, o câncer era considerado mortal flagelo e castigo dos céus). Ao falecimento daquele amigo sobreveio à substituição dele com um novo Consul, rígido, agindo contra o moleque com severidade e rispidez e dele recebendo desaforos em instante de rebeldia e volta as origens de quem tinha língua solta e um dicionário de nomes feios bilingüe, em espanhol e português, expressos como se fosse uma saraivada de metralhadora; não deu outra, o moleque foi despedido.
Ao agora encerrado ciclo da profissão “Mandalete”, sobreveio a busca de outras tentativas para cumprir o fado desenhado pelo pai de que, “...quem tem um ofício...”. Então veio a possibilidade de se fazer aprendiz de sapateiro na Oficina da Casa Mutti do tio do amigo Nilto Mutti Guirland que o moleque abraçou até com um certo entusiasmo desde que lá eram produzidas chuteiras para futebol de uma qualidade que, segundo diziam, rivalizava com as nacionalmente famosas Chuteiras Gaetas, usadas pelos astros do futebol nacional, dos clubes Palmeiras, Santos, Corinthians, São Paulo, Portuguesa de Desportos, Botafogo, Vasco da Gama, Fluminense, Flamengo, Bangu e América. Talvez, trabalhando lá, ele pudesse comprar aquela chuteira, genérica das Gaetas, porque não?...
E lá se foi o moleque para uma terceira ou quarta tentativa de “dar certo” na visão do pai e do sempre repetido jargão dos ofícios... Tinha sido engraxate de relativa competência, péssimo aprendiz de barbeiro, atestado pelas “barbeiragens” praticadas na cabeça de terceiros e, como “Mandalete”, fora assim, assim. Revelara-se com rara habilidade no manejo da máquina de escrever, apto inclusive a produzir correspondências não apenas comercial como as de outros objetivos, como as de meros cumprimentos ou votos. Pelo menos, isso...
Na fábrica/oficina se entrosou com renomados oficiais de sapateiros como Domício, Victor Hugo, Pepe “Aparador”, Murcilião, Djalma e sua esposa, Lourdes, balconista junto com D. Célia (esposa de Evaristo Mutti, patrões, donos da Casa) e outros, assim iniciando o aprendizado na profissão de sapateiro junto com outro aprendiz, o Virgílio (filho da D. Amélia, irmão da Dulce que depois casaria como Adão Camurra). Começou realizando o que já sabia, isto é, engraxando, dando brilho aos sapatos e botas, recém fabricados, produtos que logo ali estariam sendo vendidos na loja situada à frente da fábrica/oficina. Pouco tempo depois, adquiriu certa habilidade no manejo da “ponteadeira”, um tipo de máquina própria para perfurar couro e sola, ponteando pequenos orifícios, de tamanho, profundidade e distância regulares entre si, dando condições para que se efetuasse costura entre um e outro, com barbante previamente “encerado” (o que o tornava mais resistente e impermeável) servindo de linha; a costura era feita manualmente com o barbante preso à grossa agulha metálica. Dito método de produzir calçado era especialmente usado à produção de chuteiras de futebol que, por isso, podiam ser “torcidas”, dobradas, pela insuperável maleabilidade que possuíam, adequadas aos pés de jogadores de futebol que com elas praticavam o esporte bretão.
O moleque estava evoluindo e lhe foi apresentada a afiada faca de sapateiro com a recomendação de tomar muito cuidado ao usá-la; alguns dias depois, já com um certo traquejo e tendo cortado couros, inclusive de solas, palmilhas, etc., aconteceu o descuido com a faca que ao cortar couro assentado sobre uma forma (peça de madeira com o feitio de um pé usada na fabricação de sapatos) acompanhando o desenho da curva da forma (parte interna do pé), a faca encontrou resistência no couro exigindo mais força para realização do contorno respectivo, escapulindo do entrave, alojando-se direto na parte externa do polegar esquerdo do moleque, rasgando a pele, cravando-se diretamente no osso onde ficou alojada.
Todos correram para socorrer o aprendiz, enquanto Domício buscava um “remédio” chamado álcool puro, Murcilião o segurava e Victor Hugo retirava a faca e Pepe “Aparador” já estava junto com Domício com as mãos cheias de papel de embrulho; Murcilião então agarrou mais forte o moleque, imobilizando-o, Victor Hugo pegou a mão e o dedo ensanguentados e reabriu o ferimento, Domícilio nele derramou quase um litro de álcool, Pepe literalmente embrulhou o polegar, junto com toda mão. O pão-duro Djalma, deu ao moleque Cr$ 5,00 (cinco Cruzeiros), hoje equivalentes a quarenta ou cinquenta Reais e, todos, o mandaram passar na farmácia ali perto, comprar um band-aid, ir para casa lavar o ferimento e colocar o band-aid, devendo voltar somente na outra semana. Tudo isso fez o moleque, chegando em casa, sua avó colheu e macerou n'água, folhas de cinamomo enquanto outras colocou a secar na chapa quente do fogão; feito isso, veio a parte pior, ou seja mais dor para o moleque, pois a avó, sem dó nem piedade e dizendo-lhe que por ser homem não devia chorar (“homem só chora quando a mulher vai embora”) reabriu a ferida dando um forte puxão àquele maço de papel que envolvia dedo polegar e mão esquerda e mantendo o ferimento aberto pacientemente o lavou com a verde água onde macerara as folhas de cinamomo. Depois disso, ainda mantendo o ferimento exposto, sobre o mesmo espargiu o pó gerado pelas folhas de cinamomo secadas na chapa quente do fogão; finalmente, após o suplício, pegou o band-aid, não sem um ar de enfado, e o utilizou, dizendo que devia servir pelo menos para proteger o ferimento. Registre-se, o corte não foi suturado e ao cabo de quatro dias o ferimento estava cicatrizado.
A “outra semana...”, nunca veio, a afiada faca de sapateiro não apenas cortara o polegar esquerdo do moleque, como somada ao tratamento do ferimento, arrefeceu nele qualquer entusiasmo que quem sabe chegou a ter sobre a profissão. Sequer adiantou as cantilenas do Murcilião ou do Domício de que não fora maldade deles ao derramar aquele litro de álcool no ferimento, apenas que assim sabiam com certeza que eliminariam o veneno inoculado no couro quando da curtição (o que realmente existe) sendo o maior perigo à infecção que jamais haveria ou houve... Para a avó do moleque, o que resolvera a questão toda foram as folhas de cinamomo... o moleque por sua vez hoje sabe que não foram apenas as folhas e tudo o mais dito e repetido, também o afeto daqueles ilustres profissionais sapateiros, e, principalmente, o conhecimento e amor nunca negado por sua amada avó … foi tudo isso, mas ... sapateiro ... nunca mais!
O moleque de novo foi ser aprendiz de outro ofício. Ocorre que seu amigo e cunhado, Gelci, esposo da amada mana Oca, era o brilhante Mestre Padeiro da Padaria Rosa, ofertou-lhe a oportunidade de ser aprendiz de Padeiro... Embora a profissão tenha até agradado ao moleque, os horários é que não fechavam muito com ele. Enquanto passar a noite, como sábado para domingo, não era problema para ele, acordar e levantar cedo, muito cedo aliás, durante a semana, por volta das cinco horas, isso sim era um enorme e insuperável problema. Conseguiu ir driblando por algum tempo, especialmente porque na madrugada de domingo tinha algo que o atraía pela quase ou total, sabe-se lá, safadeza...
Principalmente aos sábados, por volta das 22:30 ou 23:00H, os padeiros iniciavam o preparo da massa do pão nosso de cada dia que, pela manhã bem cedinho, era procurado pelos madrugadores clientes da Padaria. Em maioria de vezes as massas (pão francês, vovó sentada, biscoitos, etc, para cada um tipo, a massa respectiva tinha uma forma e corte, uma receita e um ponto de cozimento, dentre outros cuidados profissionais), eram preparadas em tempo quase recorde, no máximo em três horas (para o pão “francês”, por exemplo, sair moreninho, crocante, quentinho. recém saído do forno para alegria e comoção dos clientes madrugadores) entravam no forno em tempos distintos, todavia não antes das 05:00H da manhã.
Das 23:30, ou 24:00 às 04:00H era folga, alguns ou quase todos iam dormir mas sofriam o perigo de serem acordados pelo “mosquitinho” que funcionava assim: um gaiato acendia um palito de fósforo deixando-o queimar até ficar no carvãozinho que aguardava esfriar rapidamente e, com todo o cuidado, colocava na testa do dorminhoco; antes disso, durante ou depois, com ou sem a ajuda de um outro colega, amarrava uma das mãos da vítima imobilizando-a e a outra, que era deixada livre, amarrava o tamanco usado na “quadra” que é como chamam o local da padaria onde se faz o pão e estão o maquinário e forno; feito tudo isso, enquanto dormia a vítima, acontecia a parte final que era reacender o palito e ficar esperando que o filete de fogo chegasse ao poro base do carvãozinho... era tiro e queda, a vítima, com a mão livre “matava” o mosquito na testa, acordando depois na tamancada, enraivecido claro, entanto sem reagir pois “amanhã será outro dia...”. A brincadeira ficou tão corriqueira que ninguém dormia na folga...
Até que alguém, lembrando que perto dali tinha uma “bailanta”, teve a ideia de que todos podiam aproveitarem a folga dando uma escapadinha até a “Bailanta do Pedro Laçaço”, pelo menos até 03:00, 04:00H; ideia posta, ideia aceita, com o Mestre padeiro falando com o cunhado aprendiz, se tudo podia ficar entre eles... claro que podia! Assim as noites de sábado eram as melhores noites da semana, todos ao Pedro Laçaço, também o encantado moleque. Em uma daquelas idas, o moleque foi surpreendido por uma das bailarina, A Mosa, lavadeira de roupas “para fora” que algumas vezes fazia ditos serviços à mãe do moleque; Mosa, também era mãe de três filhos (Afonso, Francisco e Beta) que estavam sendo, como foram, criados como filhos pelos pais do moleque, que por sinal, generosos que sempre foram, criaram outras tantas crianças, quase uma dúzia, além dos oito filhos biológicos que tiveram.
No outro dia, não deu outra, Mosa foi direto à mãe do moleque relatando o que considerou como grave falta, inclusive e principalmente do Gelci. A mãe, com prudência e sensatez, não contou para a filha Oca, o que acontecera, livrando o genro daquela, porém, determinou encerrado o aprendizado do moleque da profissão de padeiro. O moleque não ficou contente com isso, mas nada podia fazer. Duas ou três semanas depois, em um sábado, Mosa fez uma entrega de roupa lavada e passada na casa do moleque; ele a convenceu de que tinha um creme facial contra rugas e suores, com espetacular perfume que aflorava após um bom tempo depois da massagem que o fazia desaparecer na cútis. Mosa adorou quando ele lhe disse que quem sabe ela podia usar naquela noite se é que iria na Bailanta e passasse lá para fazer tal “maquilagem”, tendo ele como maquilador; Mosa garantiu que iria fazer exatamente como ele prescrevera, deixaria ele massagear sua cútis até o desaparecimento do creme. Pouco depois do anoitecer, ele, com o mágico creme - o famoso Creme de Barbear Bozzano, o que ela não sabia - começou o processo, massageando o rosto todo da Mosa, incluindo queixo, nariz e testa, também orelhas e toda volta do pescoço...Mosa achou estranho mas foi convencida de que tudo servia a uniformidade performática requerida à maquilagem, coisa moderna, exigências do perfume que afloraria do creme...
No outro dia, nova queixa contra o moleque...Mosa, desta vez, dizia ter sido enganada por ele, com um tal de creme que ele passara em quase toda cabeça dela e até em toda a volta do pescoço mas que devia estar estragado pois, após alguns rodopios no salão de danças, o suor de seu rosto e tudo o mais por onde fora untada de creme, começou a formar pequenas bolhas de sabão, pior parecendo ser sabão mesmo...
De verdade o melhor dos aprendizados tinha sido a datilografia que aprendera e lhe renderia, adiante, empregos na condição de auxiliar de escritório, antes disso, entretanto, ao chegar em Porto Alegre, vindo para nela ficar, foi o primeiro empregado da Cooperativa dos Empregados de Forjas Taurus S.A., mas isso é outra história ocorrida aos primórdios de sua adolescência ou puberdade em que acreditou ter superado a condição ou estágio de moleque - será? … até hoje não saberia dizer com certeza... - o que tem plena certeza é que não aprendeu nenhuma das demais nobres profissões que tentou aprender com denodo fruto dos axiomas propalados e ardorosamente defendidos pelo seu pai que, aliás, tinha razão em tudo!

segunda-feira, 13 de janeiro de 2020

CETICISMO



Vou morrendo à espera de amanhãs que nunca chegam, breve.
Esqueço-me de viver intensamente o hoje que passa célere
e vivo com corpo e alma cavalgando um amanhã inumerável
enquanto a magia teima em se despir no meu irrealizável.
Os milhares de amanhãs passado, pouco ou nada trouxeram
desse supremo beijo, ensejo, sopro do milagre de sorrir,
exceto, pela vida que por si se basta e sou agradecido.
Disso resta a certeza da inexistente incerteza do acaso,
nada o é, tudo cabe no indizível supérfluo do meu caso,
frustrações que coleciono e delas tento fugir sem conseguir.

Passagens, danças, passos marcados são produtos externos
das insondáveis fontes desse quase sempre, quase eterno!
E se nada posso mudar, mais fraco sou por saber-me assim,
um tanto enfado ou indiferente de todos e também de mim.
Se todo o caminho está designado como acusar sem perdoar
o acusado, tão ou mais fraco que também segue fado escrito?
Então, melhor lutar contra a acomodação do tudo prescrito,
ensarilhar armas e desculpas esfarrapadas do oprimido
e, quem sabe, possa dobrar às esquinas do meu infinito
sendo ou vivendo o ser que em mim adormece, entorpecido!

A preguiça de me saber vivo e só por isso viver, apenas,
sem nunca ter tentado construir meu próprio caminho
quem sabe tirou-me a força e o afã de me tornar capaz.
E se tudo isso for a salvação pela verdade extrema?
E se tudo isso for a forma para que alcancemos paz?
E se tudo isso for a luz que falta para nós, falenas?
Tudo terá valido a pena neste esperar, vis passagens,
e os amanhãs estarão prenhes do quanto os consagre
explodindo vida, explodindo amor, relvas, miragens,
realizando-se, enfim, na magia plena dos milagres!

sábado, 4 de janeiro de 2020

"MÃE MOCITA"



“Mãe Mocita” era uma negra velha, que morreu, segundo consta, com 114 anos de idade. O moleque a reverenciava, respeitava e a amava por sua bondade e placidez; sempre estava ali, à mão como diziam, disposta a ajudá-lo e, até, quantas vezes, aplacar a sisudez da mãe dele e aquela sanha de “corrigi-lo” através de uma, merecida é verdade, surra. Em suma, ela gostava muito do moleque e não disfarçava isso.

“Mãe Mocita” como o moleque a chamava, era esposa, depois viúva de “Seu” Adão que foi assassinado, por facada, tendo o moleque ido ao velório e enterro do mesmo levado por sua avó, Nãna, mãe de sua mãe. Foi a primeira experiência do moleque em evento fúnebre, isto é, velório com o falecido ali, deitado na mesa da sala da residência, imóvel, de mãos cruzadas sobre o peito – não estavam visíveis o ferimento ou sangue, cobertos pela roupa que vestia o cadáver e também pelo pranto de seus parentes e amigos. “Mãe” Mocita, com o semblante espelhando toda a dor do mundo, todavia com um olhar cândido, plácido e resoluto, sabia que a partir de agora se tornava a única coluna, ineiramente voltada à direção e sustento de sua família, com todos sabendo que daria conta disso, tal a sua coragem e força, tantas vezes demonstrada, próprias de seres humano, como ela, pobres somente de bens materiais.

“Mãe Mocita” tinha duas filhas; a primogênita, Alzira que casaria com “Seu” Tivico que gostava de fritar os “muçuns” pescados pelo moleque no açude. A propósito, tem uma história engraçada: “Seu” Tivico untava os “muçuns” com banha de porco, sal e, às vezes, farinha de mandioca, fritando-os após deixá-lo em descanso, como dizia, tornando-os “crocante” e a seguir os cortava em rodelas, disso sempre dando “provas” para o moleque que comia tal cozido achando-o bom, muito bom, até. Pois bem um dia, sabe-se lá quando, o moleque pescou dois ou três “muçuns” e, de imediato os entregou para “Seu” Tivico que, também imediatamente os “limpou” (preparo usual concernente, com faca, água quente, muito quente e outros temperos – cebola, alho, etc) mantendo animada conversa com o moleque que foi ficando por ali; “Seu” Tivico, não esqueceu de colocar os “muçuns” no descanso, se bem que, desta vez, foi por muito pouco tempo, mais ou menos enquanto acendia o fogo no fogão à lenha; quando a temperatura ficou elevada trouxe a frigideira untada de banha e, após alguns poucos minutos, nela introduziu o primeiro dos “muçuns” que apanhara do local do descanso, iniciando processo de fritura. Então, para espanto do moleque, aquele muçum, aberto e cheio de tempero, untado de banha de porco como a frigideira, começou a se mexer freneticamente... depois, mesmo cortado em rodelas estas taambéémm se mexiam agitadas pelo calor do fogo... ao moleque, tudo parecia mágico, parecia que o “muçum” estava vivo, tudo era estranho, muito estranho... desde aquele dia, o moleque nunca mais comeu as “crocantes” rodelas de “muçum” e o “Seu” Tivico perdeu seu principal fornecedor do referido pescado...

A outra filha de “Mãe Mocita”, mais moça, Bila, adiante casaria com Dula, homem de afazeres sazonais: como esquilador, tosava a lã das ovelhas – a época das ditas “tosquias” situava-se, mais ou menos, a partir do segundo mês da primavera – e cada ovelha tosada gerava uma “Lata” ao tosador que correspondia a um valor em Cruzeiros (Cr$) moeda brasileira da época, pago ao mesmo na forma e condições pré contratada; outro dos afazeres realizados por Dula, era o de cortar cana-de-açúcar à facão em Bello Union (cidade do Uruguai que faz fronteira, agora, com o município de Barra do Quaraí, antigo distrito de Uruguaiana da qual se emancipou), quando da colheita da açucarada gramínea, mãe do açúcar e da cachaça, sobremodo cuidando-se da temida e mortal serpente “Cruzeira”, sendo pago em Peso, moeda uruguaia, que logo adiante trocava por Cruzeiro, na Casa de Câmbio, no centro de Uruguaiana; outra atividade, era a de plantar e colher arroz, respectivamente em setembro e em maio do ano seguinte e, dependendo das condições, vontade e comando do patrão, ficar todo esse período envolvido com a plantação como taipeiro, controlando taipa, bomba e volume d'água.

Uma das atividades que Dula mais se orgulhava era a de domador de xucros ou baguais (cavalos bravios ainda não ou, recém domados), alardeando aos quatro ventos, sua grande, invencível, espetacular performance nessas lides campeiras e que (fazendo eco ao maior mentirosos daquelas plagas, Candinho bicharedo), nunca existira ou existiria redomão (cavalo agressivo) que sustentasse ou exercesse sua rebeldia perante ele tal a sua capacidade como ginete (domador´, ótimo cavaleiro).

Dula, era um “bacudo” (aquele que trabalha como peão nas estâncias da Campanha, “grosso”, sem cultura) duro na queda e tomava com desenvoltura uma “canha” (aperitivo, cachaça) que poucos se atreveriam a beber e continuar em pé; ele não só se atrevia como continuava em pé, sem se importar com a quantidade ingerida; às vezes, porém, após inúmeros “talagaços” (esvaziar o copo ou "liso", de uma só vez) no percurso de sua casa, levava alguns tombos o que entendia como percalços de “macho” que "aguenta o tranco, sem choro nem vela". Não era violento, embora não fugisse da briga... em casa era muito bom marido, calmo, amoroso com Bila, sua bela morena dos cabelos cacheados e olhos coloridos como início de madrugadas enluaradas.

Dula, como “Seu” Tivico, gostava de charlar com o moleque talvez porque este sabia ler e escrever e conhecia algumas histórias dos livros lidos, coisa que eles, quem sabe, jamais teriam acesso ou entendiam não lhes ser necessárias. Um dia Dula chegou no moleque, com ares de surpresa e espanto misturados, perguntou-lhe se era verdade que ele teria brigado a socos com o “Nego Mano” um guri bem mais forte e maior do que ele. O moleque contou-lhe a história sem floreios; o fato é que, discutia com o “Nego Mano” quando chegou o Quico e, praticamente, desafiou a ambos resolverem a questão “no braço”; com medo o moleque quis argumentar que não era p'rá aquilo tudo, etc, mas o outro guri, caiu na esparrela de Quico e foi se tornando mais bravo, chegando ao ponto do Quico, vendo a possibilidade de uma boa briga, cuspir no chão e proclamar o célebre desafio: “Quem pisar aqui será o vencedor e se o outro não reagir será um covarde perdedor tendo corrido da briga”; dito isso, Quico cuspiu no chão entre os dois contendores... Como sempre o fizera nas poucas brigas em que se envolveu, o moleque não pisou, demonstrando não apenas não ter aceitado o repto, muito mais que isso, sabendo que para pisar no cuspe era preciso baixar a cabeça e os olhos para visualizá-lo... não deu outra, “Nego Mano” pisou no cuspe e não tinha mais salvação, a briga estava posta, simultaneamente levou uma “bomba” (soco) na junção do nariz com os olhos... foi o único soco que o moleque conseguiu dar, no resto do tempo de duração da briga, só apanhou, a ponto de passar alguns dias cheio de dores nos braços, ombros, torax, em tudo quanto é lugar do corpo, levando uma surra do “Nego Mano”, esta é que era a verdade nua e crua. Só que o único soco que o moleque dera, digamos à traição, acertara em lugar de fácil e visível inchaço e os milhares de outros que tomara não acertaram seu rosto, parecendo a quem não viu a briga, que o moleque fora o vencedor, como foi o caso de Dula que disse mas eu vi a cara do “Nego Mano” toda inchada pensei que tu tinhas ganhado a briga... Aparências, aparências... o certo é que quem deveria ter apanhado era o gaiato do Quico (amigo do moleque e do “Nego Mano” que também eram amigos antes, amizade que continuariam não muito tempo depois da briga, mera “coisa” de guris).

Alzira e Tivico geraram duas filhas; o moleque não sabe dizer se Dula e Bila tiveram filhos. “Mãe Mocita” viveu por muitos anos, sempre no convívio de todos seus familiares, também seus vizinhos, como a mãe e familiares do moleque, e era muito amada e respeitada; faleceu com quase 115 anos, com a mente sadia, memória preservada a ponto de sempre contar e recontar histórias e, quem sabe, "estórias" dele, destacando o amor maternal que lhe dedicava e que, sempre soube, lhe era retribuído com igual ou maior intensidade. “Mãe Mocita” vive na memória afetiva do moleque como a adorável, terna e pura pessoa que ele teve o privilégio de conhecer, sentir e usufruir de sua benevolência e afeto. Que todas essas pessoas, como todas as demais amadas pelo moleque e nele continuam vivas, estejam sob a Graça de Deus, que um dia todos esperam conhecer.

quinta-feira, 2 de janeiro de 2020

ONÍRICO


Passeava inteiro em Uruguaiana // em meio ao que fui, aos meus apegos // ou mais certo, nem fui, os desapegos // ante essa longa andança cigana. // Tudo névoa, embaçado, tudo aparente // n'um passeio lúdico, transparente... // // Sete de Setembro, Quatorze de Julho, // (na que era) Vinte e Sete de Outubro, // ruas e datas com sentidos e alcunha // juntando-se a rua Flores da Cunha // formando meu quarteto de emoção, // tatuando n'alma primoroso quarteirão... // // Bailavam tangos em minhas mãos, // também bolitas, fundas, pandorgas // e tanto mais que o sonho outorga // para um claro e belo dia de verão... // Ali eu nasci, ali morei, ali cresci // e, por magia, agora volto ser guri! // // Na viagem onírica para Uruguaiana // montado em pealos e lides araganas, // nos galopes destravados, incultos, // dançam os risos da vida que segue. // Não mais guri, quem sabe adulto, // eu acordei feliz em Porto Alegre!

PORQUE O SONHO ACABOU


Porque o sonho acabou, tudo é deserto,
Nem se presume, nem se refaz o incerto
O sonho acabou esquecido em um retrato
E o abstrato dele vertido sequer voga
É a versão que vale, é a versão que joga
Valendo muito mais do que o fato...
Frase soltas do pensamento enquanto o corpo, inerte,
Vê o passar das horas, ou passa pelas horas
Todos presas do engarrafamento...
Dentro e sob, o asfalto geme à luz do flerte
Com as calçadas, pela extensão a fora,
Que se espreguiçam imóveis no cimento...
Por que o sonho acabou, no pára-vento
De uma embarcação presa, sem vento,
Esturricada de silêncio e calmaria
É o abstrato que em tudo regurgita
É a versão que vale, é a versão que fica
Valendo muito mais do que se faz só dia!

DEIXEM-SE


Deixem-se cantar enquanto tenham voz, ainda que rouca
Deixem-se chorar, quando das vitórias ou dos danos;
Ainda que eles possam te sido esmagados pelo cotidiano
Os sonhos sobrevivem, engravidam vida de magia louca.

Não se cobrem o que não têm e por isso não podem dar,
Nem se alimentem só de esperanças, há que realizar,
Não busquem em outros olhos o brilho de aluguel
Da futilidade da escorregadia sedução de jogos de papel.

Eis que somos humanos e somos como todo o mundo,
Eis que somos todos os erros e acertos e tudo, juntos,
Eis que somos um não se sabe o quê de vindas e idas
Na contramão de todas passagens tidas ou sofridas.

Deixem-se, enfim, fazer ou mesmo pensar bobagens
Amanhã, quem sabe, uma delas iniciará a viagem
Sem volta, de algum sonho de durar, quase eterno,
No etéreo momento deste agora que se carrega terno.

Então deixem-se sonhar enquanto levando consigo
O sabor de um até logo ali que de ti em mim abrigo
Ao cantarmos a canção que teima reforçar a crença
Do esperado amanhã que valerá por sua presença.

Por ele, deixem-se cantar enquanto tenham voz
Deixem-se chorar e apenas por chorar se baste
Ainda que se do vosso reino venha também o nós,
Muito mais há de ser venha a nós o quanto baste!