segunda-feira, 9 de outubro de 2017

OUTRA DO MOLEQUE: LEDA, UMA HISTÓRIA DE AMOR



Distraído mas de passos apressados o moleque, de 10 (dez) anos, não mais que isso, descia a Rua General Câmara, na querida cidade de Uruguaiana, na fronteira do Brasil com a Argentina e com o Uruguai (por isso denominada de “Sentinela da Pátria”), dirigindo-se ao campo do “Duque” onde outros guris já estavam jogando bola; ao passar na frente de uma casa, dela saiu uma guriazinha, de não mais do que 9 (nove) anos, com carinha de sete, que lhe perguntou de sopetão: “Tá* indo p’ro* Duque?” - Sim! - afirmou, “Conhece* o meu irmão, Baltazar?”, “Sim, conheço o Balta!” ao que ela emendou, “Então, diz que a mãe tá *chamando ele, agora!”.

Missão recebida, assim, e daquela belíssima fonte, claro que tinha que ser cumprida e o foi. A única dúvida do moleque que persistia era com relação a guria que achou ‘muito mais nova’ que ele (que se achava, no mínimo, ‘quase’ um adulto) e certamente não valeria a pena ‘bater asas’ por ela...mas que a guria era linda, muito linda, isso era... e como!
(* sic)

A guria era encantadora, tinha a voz aveludada como um sussurro de prece, os olhos claros da cor do mel, os cabelos compridos abaixo dos ombros, da mesma cor dos olhos, castanhos claros como um raio de sol que chega por entre nuvens brancas pardacentas e a pele clara envolvida em luzes etéreas que mostravam sua própria alma onde resplandeciam inocência, candura, meiguice e ternura, fontes de seu inexcedível e natural perfume...

Embora fosse criança, uma linda mulher em formação, sabe-se lá como (com a devida licença poética, requerida pelo contador dessa história), certamente foi ou seria a mulher/deusa, inspiradora do grande ‘Poetinha’ Vinicius de Moraes que como um prestidigitador, ilusionista, no verso romântico a anteviu como adulta, antes de sê-lo, desnudando-a inteiramente no belíssimo Poema “Receita de Mulher”...**

(** poema reproduzido, in fine)

A guria se chamava Julieta, nome dado em homenagem a avó materna e, certamente por ser muito alegre e sorridente, a apelidaram de Leda; o guri, todavia, não se chamava Romeu, embora, desde aquele fortuito e precoce encontro viessem a escrever uma bela história amorosa, vivida intensamente e sempre durante toda a vida e, quem sabe além dela, ainda que as vicissitudes, percalços e desacertos tenham impostos caminhos diversos para que cada um os percorressem, levando o outro dentro de si, na lembrança, na saudade, no limbo, avessos e cruezas dos cotidianos solitariamente tidos, vicissitudes e tristezas de serem tão próximos e fisicamente estarem quase sempre, tão longe, também e mesmo assim levando consigo bons, serenos e mágicos momentos que juntos comungaram e vivenciaram...

Dois dias depois, quase a mesma hora daquela tarde em que fora interpelado, o guri descia a mesma rua e igual objetivo ou destino, quando passava pela mesma casa e dela sai a guria de imediato se dizendo agradecida pelo guri ter atendido ao pedido que fizera. Também portador da inocência própria das crianças, o guri timidamente balbuciou um “não tem de quê” e já estava reiniciando a trajetória quando a guria lhe perguntou se, de novo, estava indo “p’ro* Duque?”. À resposta afirmativa, ela engatou outra pergunta, agora mais pessoal, “Como é teu nome?” Dada a resposta, ela emendou, agora uma constatação “Ah, sei, tu mora* perto da casa da vó* e é de lá que eu te conheço... tu brinca* ali no açude com todos os guris e gurias de lá... não sei se tu te lembra* eu sou aquela guria que brincava, com os pé* dentro d’água sentada na barranca do açude**, no verão passado quando tu chegou* com teu cachorro e outros guris...”. O guri meio sem jeito, respondeu que não se lembrava disso até porque praticamente todos os dias brincava no açude... “É, mas naquele dia tu primeiro trepou* na figueira, depois foi no pessegueiro, comeu figo e pêssego verde e ainda arrematou com laranja, verde também, sem medo de que te fizesse* mal...Porque tu come* fruta verde e não espera ela amadurecê?*... ah! como é mesmo o nome do teu cachorro escutei tu chama* ele e gostei do nome só que esqueci?”, O guri falando um pouco mais alto, respondeu às perguntas com exemplar sinceridade “Eu como frutas, verdes, porque ninguém espera elas amadurecê* e as comem logo, logo, então... meu cachorro se chama Flopes e eu também gosto muito desse nome pois foi minha vó quem deu p’rá* ele e até o amestrou para mim... E o teu nome, qual é?...” A guria disse-o e o guri completou que agora lembrava-se dela, daquele dia, brincando com os pés na água do açude** o que jamais esqueceria, e que a conhecia por Leda e embora ambos nomes fossem bonitos este era mais e era assim que iria sempre chama-la, pondo fim a conversa pois uma pessoa adulta deles se aproximava, seguindo para o campo do Duque.
(* sic) – (** do poema “Estática”, reproduzido in fine)

O guri era encarregado de buscar o leite da mamadeira de sua irmã no “tambo” de leite do “Seu” Madeira cuja localização era mais ou menos a um quilômetro de sua casa e cumprir a tarefa lhe custava o tremendo sacrifício de se levantar cedo, o que diariamente lhe trazia problemas com sua nem sempre pacienciosa mãe. A partir do evento referente a guria dos olhos de mel, para surpresa de sua mãe, ele começou a se levantar mais cedo e sem que ninguém o acordasse, para ir ao “tambo”...a única coisa, intrigante, era o fato de que agora, saía mais cedo e demorava mais tempo para voltar. Ocorre que o guri, tanto na ida ao “tambo”, quanto na volta, realizava uma espécie de cotovelo no trajeto, passando na frente da casa da guria querendo vê-la e, com isso, aumentado o trajeto em mais 1,5Km (um quilômetros e meio).

Duas vezes o fez sem que a visse até que, à tarde, seguindo para o campo do Duque, lá estava ela, como se o aguardasse... em meio a rápida conversa mantida por ambos, ele informou suas idas pela manhã ao “tambo” e passagem à frente da casa dela, sem vê-la... com aquela carinha de anjo que sempre apresentaria para ele, informou-lhe que certamente estava dormindo quando, pois não gostava de se levantar cedo, mas se ele dissesse a hora, ela esperaria sua passagem.

N’outro dia, lá estava ela à frente da casa e ambos saíram, em passos lentos, a caminhar por entre as árvores daquela rua que, para ambos, se tornaria uma alameda encantada, que se localizava, como divisa, entre a área conhecida e denominada como “Chácara do Dr. Sérgio” e os fundos do Seminário. Dita rua ou alameda era ladeada por inúmeras árvores cujas copas, no alto se entrelaçavam formando uma espécie de túnel verde deveras bonito.

O tango “Caminito”*** magistralmente interpretado pelo grande e maior cantor argentino, Carlos Gardel, viria a ser considerado por ambos, mais tarde, como premonitório pois falava de um caminho encantado, como a alameda em que tantas vezes passearam, que o tempo passando e passando sem parar ou perguntar se devia ou podia, se encarregara de apagar, de “borrar”, de...
(*** letra do tango em espanhol e com tradução literal para o português, in fine)
A partir de então o moleque não deu mais trabalho para ir ao “tambo” de leite, levantando-se de pronto ao primeiro chamado de sua mãe que não apenas isso estranhava, também a demora do moleque para voltar com o leite à mamadeira da mana menor; até que sua comadre, Dona Delcira, a “fofoqueira” que morava em frente à alameda encantada, divisa entre os fundos do Seminário e um dos lados da “Chácara do Dr. Sérgio”, acabou com o mistério contando que o moleque tinha uma namoradinha que abraçada nele passeava na alameda, pela manhã de quase todos os dias e, embora inocentes crianças, demonstravam muito afeto. A Dona “fofoqueira” adiantou ainda que assistira, pela iniciativa da guria que de surpresa avançara por sobre o moleque, quem sabe o primeiro beijo entre ambos.

Na verdade ocorrera o beijo e na forma narrada pela comadre “fofoqueira” e por isso quase que o leite se derrama pelo chão repetindo o caso em que o Jura Gato, tendo trato de “tapufe” com o moleque, tentara “tapufiar” a “funda” ou “atiradeira” dele e este, na tentativa de defesa, se esquecendo do tarro de leite que tinha à mão derramou todo o conteúdo, tendo de ir ao “Seu” Madeira, dono do “Tambo”, para enchê-lo de volta, sem dinheiro, no “fiado”, e aceitando a proposta do leiteiro, fez o “trato” de não mais atirar pedras nos cachorros dele (historinha já contada)... Desta feita, porém, pouco importaria se o leite fosse derramado porque aquele beijo valera a pena e seria recordado e repetido inúmeras vezes e por toda a vida de ambos!

O pai da guria era trabalhador sazonal, comum naquela Uruguaiana rural de então, sendo no mesmo ano, às vezes taipeiro* ou coisa que o valha, cuidando taipas*, controlando o nível d’água em plantações de arroz, outras vezes na época das tosquias, era esquilador, tosquiando ovelhas, tudo pelo interior do município; e, em outras, ainda, trabalhando em Bello Union, no Uruguai, na fronteira com Barra do Quaraí, então distrito de Uruguaiana, para cortar cana de açúcar e, dizem, cuidando-se muito para não ser picado pela Cruzeira – serpente das mais perigosas cujo potente veneno era fatal – comuns em meio ao canavial (aliás, contavam uma lenda para provar a maior letalidade de uma em relação a outra serpente, que dizia: A Cruzeira e a Cascavel conversavam sobre seus ‘feitos’ e atitudes selvagens, tendo a Cascavel dito que quando mordia uma vítima ficava observando-a para ver onde a mesma cairia morta; ao que a Cruzeira respondeu dizendo que, ao contrário, ela não ficava observando a vítima coisa nenhuma, porquanto, após picá-la saía correndo de perto, com medo de que sua vítima caísse morta em cima dela... estórias, estórias...).
(*Taipeiro, trabalhador que cuidava de taipa e do nível da água na plantação de arroz; taipa, obstáculo que impedia a fuga d’água e que junto com a ‘bomba d‘água’, a mantinha no nível requerido pelo arroz).

A mãe da guria, uma mulher muito bonita, enquanto isso, seguia a saga de tantas outras uruguaianenses de então realizando o comércio “formiga”, atravessando todos os dias a ponte internacional que do lado brasileiro se chama Getúlio Vargas e, do argentino, General Agustin Justus, para comprar produtos alimentícios em Passo de Los Libres e revendê-los em Uruguaiana (chamavam esse comércio de “chibo” – que em português é cabrito – e seus praticantes de “chibeiros” ou “cabriteiros”). Enquanto D. Santa andava pela Argentina, o moleque frequentava sua casa visitando sua namoradinha. E assim passaram-se vários e felizes anos para ambos.
Na esquina da casa da guria, em frente ao Bolicho (armazém) Olinda, aquele de propriedade do “Seu” Araci Castelhano, pai da bela Nair, paixão do amigo/irmão do moleque, o Guirland (cuja história, de ambos, já foi contada no continho que tratava de futebol), tinha o Colégio Leão XIII de propriedade do Professor Elpídio de Moraes Gomes, o Leão XIII, em cujo pátio, a noite e a céu aberto, funcionava um cinema que tinha como operador dos projetores o Toninho “Faniquito”, conhecido operador de cinema (que trabalhara no antigo Cinema Ideal que ficava perto do Engenho de arroz, também do Moinho de trigo, na altura da Rua Vinte e Oito, hoje Dr. Maia) que tinha um cacoete nervoso, o de levantar sobrancelhas e o músculo facial repetidas vezes, no mesmo movimento, para o alto, como se estivesse incitando, intimando ou perguntando “O que que há?” para fictício interlocutor, enquanto seu braço direito tremia, em estranho êxtase com movimentos circulares ... Vez por outra pela precariedade da película ou do equipamento ocorriam cortes na projeção e todos creditavam tais fatos ao cacoete do Toninho... algumas vezes quem sabe o cacoete influenciara ou provocara tais cortes, mas hoje se sabe que quase a totalidade das vezes eles se deviam ao equipamento, a troca ou desenrolar dos rolos de celulose que, por ser frágil, se grudava internamente (isso é história que não sei, nem como, contar... nem o moleque saberia, acho!).
Em uma quarta-feira, à noite, a namoradinha junto com suas amadas e confidentes tias Almerinda e Morena (também mulheres muito bonitas, parecendo ser próprio da família tanta beleza) foi ver um filme no tal cinema e disse ao moleque que queria ver a “fita” com ele e guardaria lugar ao seu lado e o esperaria lá dentro; o moleque, como sempre, sem dinheiro para qualquer coisa, muito menos para pagar a entrada do “Cine” tinha de dar um jeito para nele ingressar e não tendo outra saída, fez o mesmo ato, do que era campeão, quando ia aos estádios de futebol da cidade, decidiu pular o muro, aos fundos do pátio, à beira da estrada de ferro que ia de Uruguaiana à Barra do Quaraí na fronteira com o Uruguai, no escurinho, onde a luz do “Cine” não chegava e de lá viria por entre a vegetação até que como por encanto surgisse em meio ao pessoal que se preparava para assistir a “fita”. Assim pensou e executou; ao pular o muro, incialmente por azar e depois viu que foi por sorte, caiu aos pés de Jacutinga, amigo de serenatas de seu pai e que ali estava fazendo um “bico” como vigia do cinema e o moleque não sabia... “Tu, moleque, sempre tu...” disse desconsolado “... E agora? Vou contar para o teu pai, não tem jeito não” – “Ah, Jacu...” ( com perdão do trocadilho chulo, sempre e jocosamente utilizado pelo moleque quando encontrava o Jacutinga que ficava enraivecido com isso) “...não faz isso não... eu só pulei por causa da minha namorada que ‘tá aí dentro me esperando e eu não tenho dinheiro para entrar... faz de conta que tu não me viu e eu nunca mais vou te encher o saco lá na SAMDU - Serviço de Assistência Médica de Urgência* ou nas serenatas, te chamando e berrando o ‘Ah Jacu’, o que eu sei que tu não gosta...”
(* Espécie de SAMU da época, onde Jacutinga era guarda ou porteiro, o moleque não sabia direito o que ele era lá, para o qual havia levado seu amigo Quico com doença venérea, em outra historinha já contada).
Como funcionara com o “Seu” Madeira, na vez do leite derramado pelo “tapufe” do Jura Gato, também “Ah, Jacu” se rendeu ao pacto proposto pelo moleque, não sem antes adverti-lo que, caso viesse a chamá-lo como rotineiramente fazia e que para ele Jacutinga não tinha graça nenhuma, ele contaria tudo para seu pai. E lá se foi o moleque por entre a vegetação e no limiar do escuro viu onde estava sentada sua querida namorada e esperou que as luzes fossem apagadas ao início da projeção que começou com um noticioso, jornal filmado do tipo documentário, contando ocorrências do Brasil, em especial, claro, da Capital Nacional de então, a belíssima cidade do Rio de Janeiro, e se dirigiu para onde ela estava, sentando-se ao seu lado; à pergunta do porquê da demora respondeu dando uma desculpa qualquer pois isso agora, realmente, não importava e, na verdade, exceto por estar com ela, ali, naquele lugar, naquele momento, nada mais importava.

Muito tempo depois, pouco antes de viajar para morar em Porto Alegre onde iria trabalhar e continuar a estudar, então com quatorze anos, na mesma esquina do Colégio Leão XIII, quando esperava sua namorada, foi interpelado pela mãe da mesma que de forma ríspida perguntou “O que tu faz*, aqui, moleque?” obtendo como resposta “Estou esperando minha namorada”, “E quem é tua namorada?”, “A tua filha!”. Aparentemente surpreendida pela resposta dada, a mãe rilhando os dentes “Quem tu pensa* que é para pensar que minha filha é tua namorada... Ela não é p’rá* teus beiços... Eu não gosto de ti, pé rachado...” e o moleque “Pouco me importa se tu gosta ou não de mim, eu gosto da tua filha e ela de mim e é isso que importa e por isso tu nada pode* fazê*”; outras ofensas saíram aos trambolhões da boca daquela senhora que se sentira ultrajada pelo moleque desaforado, afastando-se dali, esbaforida, partejando ira, raios e trovões que, chegando em casa e tendo sido tudo confirmado, desabaram por sobre a filha, na qual deu uma surra e quebrou as bonecas de louça compradas na Argentina, aplicando-lhe ainda um grande castigo, proibindo-a de se encontrar com aquele moleque imprestável, desaforado, desbocado e sem futuro, e a condenando ficar presa em casa de onde somente podia sair acompanhada por ela, a mãe.
(* sic)

Poucos dias antes da viagem do moleque, que a três ou quatro meses não via a namoradinha, aconteceu algo muito triste; “Seu” José, o pai do Sérgio “da Porca” (também personagem de outro continho), estava muitíssimo doente sendo na prática “velado” vivo pois que todos os vizinhos, em seu último dia, compareceram para confortarem D. Nena do inevitável que se aproximava à galope. Também a mãe do moleque para lá se dirigiu, levando-o. Em lá chegando o moleque viu ao longe, vindo da extremidade da área, pelo campo, a namoradinha, acompanhada pela mãe. Rapidamente o moleque se esgueirou por entre o vão da casa à horta e encoberto por uma árvore postou-se no oitão da casa principal. Ela também percebera seu movimento e quando sua mãe ingressou na casa pelos fundos, pela cozinha, ela escorregou para o oitão, onde ambos, sussurrando, quase mudos, se encontraram, se abraçaram, se beijaram. Ela então narrou as peripécias que sofrera, quase chorou ao relatar a quebra de suas bonecas enquanto ele comunicou que estava deixando Uruguaiana por decisão de seus pais, indo para Porto Alegre, para trabalhar e continuar a estudar. Ali, ambos adolescentes, fizeram um pacto, infelizmente jamais cumprido pois o destino, os dados da sorte ou sabe-se lá o que, não permitiram, de que ela o esperaria até o dia em que ele voltaria para levá-la e juntos ficariam para sempre, confirmando para ambos que a vida não tem nada ou quase nada de contos de fadas sobejando em seus meandros toda a sorte de inquietudes, desencontros, imprevistos, sem quimeras ou ternuras.

Porém, naquele momento, ambos estão iniciando suas respectivas adolescências e, nelas, quase tudo é ou foi permitido, inclusive os pueris e inofensivos sonhos naquele outono quase findo... Preocupados, ambos foram à frente da casa para olhar se podiam ficar mais um pouco juntos e o que aconteceu dali em diante foi algo que devia ser entendido como presságio ou aviso das peças que a vida prega para todos os seres humanos. Para quem da frente olhasse a casa, à esquerda ficava a sala, com porta de acesso; à direita ficava o quarto do casal, que tinha uma janela à altura não mais do que um metro, a cama, onde “Seu” José dava seus estertores, estava colocada logo abaixo dessa janela; pois bem, no exato momento em que o moleque colocou sua cabeça para dentro do quarto, sentiu no seu rosto o hálito quente e ruidoso do “Seu” José dando seu último suspiro... Custou alguns segundos para que o moleque se desse conta do que presenciara e até sentira e aquele último sopro de vida lhe assombraria por muito tempo e adiante... seus ouvidos carregariam o som rouco, seu olfato um hálito e calor vindo das entranhas de um nunca mais individual e exclusivo, na face e nos cabelos o gélido vento trazido pela morte que ali se revelara inteira. Concomitantemente, D. Nena jogou-se por sobre o corpo, ainda quente, de “Seu” José, inundando-o com o convulsivo pranto trazido pela inevitável perda... Então e por isso, o moleque afastou Leda protegendo-a, poupando-a e não permitindo que presenciasse ou sofresse o impacto decorrente da rudeza do triste fim do vizinho...

O moleque passaria alguns anos em Porto Alegre e somente voltaria para Uruguaiana para servir ao Exército, transferido da 3ª Cia. DAM localizada em Porto Alegre, para o glorioso Quartel General da 2ª Divisão de Cavalaria de Uruguaiana onde prestou os serviços militares durante dez meses...

...Entretanto, como já se disse em tantas outras vezes, isso já é uma outra história, também com relação ao moleque e sua namoradinha que, como tudo na vida, passaram, tornaram-se adultos, e não sendo mais as crianças, tiveram suas trajetórias sempre próximas, ainda que, quem sabe nem tanto paralelas pois que por diversas vezes convergiram e se encontraram em pontos infinitos e viveram toda a grandeza e plenitude do que deveria ter sido inteiro, pela vida inteira e, sabe-se, não foi assim... ou foi?... bem se acreditarmos que o momento é a unidade do tempo incalculável para nós vis mortais (dizem os doutos que só Deus consegue calculá-lo) e pode transformar um segundo em eternidade, então é possível que o moleque e sua namoradinha tenham alcançado essa prometida eternidade, bela como a saudade (que só se tem das coisas boas vivenciadas, por isso, infeliz de quem não tem saudade), terna como um sopro de nostalgia, pura e inocente como uma criança dormindo, e que um dia poderá vir a ser contada para que todos entendam que tudo foi e continuará sendo apenas pela força do sentimento que os uniu, sem que, por ele e por isso, em tempo algum tenham prejudicado pessoas que junto com eles ou através deles, fizeram-se seus companheiros, amigos, amantes e passageiros de um mesmo veículo nessa maravilhosa aventura chamada vida!...

...Mas, como contado, tudo isso se passou no alvorecer das vidas desses personagens e quem sabe, um dia, se venha contar o que, depois e enquanto adultos, lhes teria acontecido...



* (sic).
** - Letras dos poemas citados:

- Receita de Mulher -
Vinicius de Moraes
As muito feias que me perdoem
mas beleza é fundamental. É preciso
que haja qualquer coisa de flor em tudo isto
qualquer coisa de dança, qualquer coisa de “huate couture”
em tudo isto (ou então
que a mulher se socialize elegantemente em azul como na República Popular Chinesa).
Não há meio termo possível. É preciso
que tudo isto seja belo. É preciso que súbito
tenha a impressão de ver uma garça apenas pousada e que um rosto
adquira de vez em quando essa cor só encontrável no terceiro minuto da aurora.
É preciso que tudo seja sem ser, mas que se reflita e desabroche
no olhor dos homens. É preciso, absolutamente preciso
que tudo seja belo e inesperado. É preciso que umas pálpebras cerradas
lembrem um verso de Eluard e que se acaricie nuns braços
alguma coisa além da carne: que se os toque
como ao âmbar de uma tarde. Ah, deixa-me dizer-vos
que é preciso que a mulher que ali está como a corola ante o pássaro
seja bela ou tenha pelo menos um rosto que lembre um templo e
seja leve como um resto de nuvem: mas que seja uma nuvem
com olhos e nádegas. Nádegas é importantíssimo. Olhos então
nem se fala, que olhem com certa maldade inocente. Uma boca
fresca (nunca úmida) é também de extrema pertinência.
É preciso que as extremidades sejam magras; que uns ossos
Despontem, sobretudo a rótula no cruzar das pernas, e as pontas pélvicas
no enlaçar de uma cintura semovente.
Gravíssimo é, porém, o problema das saboneteiras; uma mulher sem saboneteiras
é como um rio sem pontes. Indispensável
que haja uma hipótese de barriguinha, e em seguida
a mulher se alteie em cálice, e que seus seios
sejam uma expressão grego-romana, mais que gótica ou barroca
e possam iluminar o escuro com uma capacidade mínima de 5 velas.
Sobremodo pertinaz é estarem a caveira e a coluna vertebral
levemente à mostra; e que exista um grande latifúndio dorsal!
Os membros que terminem como hastes, mas bem haja um certo volume de coxas
e que elas sejam lisas, lisas como a pétala e coberta com suavíssima penugem
no entanto, sensível à carícia em sentido contrário.
É aconselhável na axila uma doce relva com aroma próprio
apenas sensível (um mínimo de produtos farmacêuticos!).
Preferíveis sem dúvida os pescoços longos
de forma que a cabeça dê por vezes a impressão
de nada ter a ver com o corpo, e a mulher não lembre
flôres sem mistérios. Pés e mãos devem conter elementos góticos.
Discretos. A pele deve ser fresca nas mãos, nos braços, no dorso e na face
mas que as concavidades e reentrâncias tenham uma temperatura nunca inferior
a 37º centígrados, podendo eventualmente provocar queimaduras
do 1º grau. Os olhos que sejam de preferência grandes
e de rotação pelo menos tão lenta quanto a da terra; e
que se coloquem sempre para lá de um invisível muro de paixão
que é preciso ultrapassar. Que a mulher seja em princípio alta
ou, caso baixa, que tenha a atitude mental dos altos píncaros.
Ah, que a mulher dê sempre a impressão de que, se se fechar os olhos
ao abri-los ela não mais estará presente
com seus sorriso e suas tramas. Que ela surja, não venha; parta, não vá
e que possua uma certa capacidade de emudecer subitamente e nos fazer beber
o fel da dúvida. Oh, sobretudo
que ela não perca nunca, não importa em que mundo
não importa em que circunstâncias, a sua infinita volubilidade
de pássaro; e que acariciada no fundo de si mesma
transforme-se em fera sem perder sua graça de ave; e que exale sempre
o impossível perfume; e destile sempre
o embriagante mel; e cante sempre o inaudível canto
de sua combustão; e não deixe de ser nunca a eterna dançarina
do efêmero; e em sua incalculável imperfeição
constitua a coisa mais bela e mais perfeita de toda a criação inumerável.


Estática

Itagiba José

Molhava os pés, distraída,
nas águas doces do açude
enquanto nelas, refletida
na mansidão, na quietude,
a inocência saltitava
Que visão! Que encanto dava
aos meus sonhos de guri...
Agora, de volta, aqui,
às águas do mesmo açude
não mais são cristalinas...
Nem a vida, que não pude
evitar de poluí-la...
Resta a imagem da menina
que nunca mais esqueci...

*** Letra da canção citada:

(1) “Caminito”, tango de Gabino Coria Peñaloza(letra) e Juan de Dios Filiberto (Música)

CAMINITO CAMINHOZINHO (versão literal)

Caminito que el tiempo ha borrado Caminhozinho que o tempo apagou
que juntos un dia nos viste pasar, que juntos um dia nos viste passar he venido por última vez, venho pela última vez,
he venido a contarte mi mal. venho contar-te meu mal
Caminito que entonces estabas Caminhozinho que então estavas
bordeado de trébol y juncos en flor bordado de plantas e juncos em flor
una sombra ya pronto serás, uma sombra prontamente serás
una sombra lo mismo que yo. uma sombra o mesmo que eu.
Desde que se fue, Desde que se foi
triste vivo yo, triste vivo eu
caminito amigo caminhozinho amigo
yo también me voy. eu também me vou.
Desde que se fue Desde que se foi
nunca más volvió, nunca mais voltou.
Seguiré sus pasos, Seguirei seus passos,
caminito, adiós. Caminhozinho, adeus.
Caminito cubierto de cardos, Caminhozinho coberto de espinhos la mano del tiempo tu huella borró; a mão do tempo teu sinal apagou yo a tu lado quisiera caer eu a teu lado quisera tombar
y que el tiempo nos mate a los dos... e que o tempo nos mate aos dois...