O pai do moleque era um barbeiro iluminado;
barbeiro, pela profissão (que hoje chamam de Cabeleireiro, o que ele detestava)
e, iluminado, porque aproveitava todos os momentos de folga para ler livros, os
mais diversos (tomados emprestados à Biblioteca Municipal de Uruguaiana, Rs, que
naquela época tinha um alentado acervo literário e emprestava livros àqueles
nela inscritos) e assim tornou-se uma espécie de autodidata eis que reuniu, e
distribui aos que com ele conviviam, tudo de bom que amealhara em
conhecimentos. Era dono de alterar ditados consagrados pelo uso popular, como
por exemplo: (a) No provérbio que declara que “...a ocasião faz o
ladrão...” ele trocava o verbo do mesmo dizendo que “... a ocasião revela
o ladrão ...” que existe nessa pessoa e que, não sabe, ainda, ser ladrão, pois
que, se a pessoa não é portadora desse defeito, mesmo tendo ocasião de roubar
(ou furtar) não roubará (ou furtará); outro exemplo: (b) Em determinada
oportunidade o moleque seguia para a barbearia do pai, localizada no centro da
cidade, e desde a primeira esquina do subúrbio onde moravam (Sete de Setembro
com a 27 de Outubro), aproximou-se do mesmo um outro moleque, de “má-fama”,
conhecido pelos vizinhos como ladrãozinho de ovos e galinhas, acompanhando o
moleque até perto do local onde ficava a Barbearia (Domingos de Almeida, quase
esquina da Bento Martins); lá chegando o moleque temeroso do resultado daquela
companhia, possivelmente nefasto para si, relatou ao pai o ocorrido, que tinha
vindo com o Beltrano que o acompanhara, contra a sua vontade, desde o início da
caminhada, ao que o pai o interrompendo, disse: Estás me contando isso pensando
que irei te repreender ou coisa assim, pela pretensa má companhia desse guri,
certamente pensando válido o ditado que diz “... dize-me com quem andas e eu te
direi quem és...”, pois bem, filho, fica tranqüilo pois eu e tu sabemos
profundamente quem tu és, ou seja, tu és o que tu és, o que recebes de
ensinamentos em teu lar, em tua casa, dos que te amam, de teus mestres em tua
escola, enfim é isso tudo que forma o teu caráter e a tua própria estatura como
ser humano em evolução; não acredites neste ditado, porque em verdade, tu bem
sabes quem tu és e, quem sabe, tens muito mais a dar de bem ao pobre guri que te acompanhou até aqui, conduzindo-o ao caminho certo, do que de ruim dele
em relação a ti eis que inexiste a possibilidade de copiá-lo mesmo que seja
verdade os delitos que lhe imputam; os preconceitos que lhe assacam
impiedosamente esquecem que, como tu, também ele é ainda uma criança e
provavelmente não sabe o mal que faz e, muito menos, o mal que reverte à sua
tortuosa formação. Tomara seus familiares possam corrigi-lo indicando-lhe o
caminho correto a percorrer.
Ainda o pai ensinava ao moleque
que, quando estivesse falando com ele,respondendo suas indagações ou
ponderações e mesmo quando estivesse sendo repreendido deveria fazê-lo
olhando-o diretamente nos olhos, pois é assim que se deve proceder com o homem;
com as mulheres, todavia, deveria diretamente se olhar a boca (A explicação é
que os homens se traem pelo olhar e as mulheres, com grande capacidade de
dissimulação ou convencimento pela lágrima, se traem pela boca – verdade ou
não, o moleque sempre acreditou nisso e mesmo adulto jamais deixou de realizar
tanto).
Um tempo mais tarde, o fato dessa
crença inserida no moleque, iria se revelar de forma intensa. Ocorrera que,
desde o início do curso primário (de cinco anos de duração que antecedia ao
curso ginasial, de quatro anos de duração que, por sua vez, antecedia o curso
do II grau, de três anos de duração, que era sucedido pelo curso superior) até
o quarto ano, o moleque fora o primeiro colocado e todos os anos sua mãe
comparecia ao glorioso Grupo Escolar Maria Moritz para receber pequenos brindes
ofertados ao filho pela participação que tivera em cada ano; não foi diferente
o procedimento da mãe, ao finalizar o 5º ano primário, só que sua surpresa e
decepção foi muito grande. Ocorre que a partir daquele ano o moleque
“descobrira” o inusitado, para si, costume de “matar” ou “gazetear” as aulas e,
não fora por seu histórico anterior, sequer teria possibilidade de realizar
exames tal a sua (des)freqüência, suas tantas faltas, porém lhe foi permitido
participar dos exames e, no cômputo geral, obteve a média 52, tendo sido o
último classificado, passando de ano, completando assim sua trajetória no curso
primário. A mãe do moleque ficou “fula” da vida com ele disso deixando bem
claro ao pai do mesmo com o agravante de peremptoriamente desqualificá-lo ao
ato colegial que sucederia àquilo, declarando-o sem condições para tanto com o
que deveriam endereçá-lo aos ensinamentos prestados por um professor
particular, pena de vê-lo naufragar como já quase recém ocorrera no 5º ano,
empacando seu crescimento escolar.
O próximo passo seria a
realização da “pedreira” chamada Exames de Admissão ao Ginásio, realizado pelo
Colégio Estadual Dom Hermeto, o único gratuito da cidade e por isso
concorridíssimo, com muitíssimos interessados em número muitíssimo superior às
vagas oferecidas (perdão pelos superlativos, mas era assim e muito mais,
então). Abraçando a opinião da mãe do moleque, o pai o comunicou que
contrataria o professor Tal para prepará-lo, eis que o entendia muito fraco e
sem perspectiva de êxito, dado o mau resultado que obtivera recentemente,
penalizando sua mãe desproporcionalmente. O tal professor Tal era homossexual
sabia-o o moleque, talvez seu pai não soubesse e em uma terra machista como
Uruguaiana (cujo maior expoente da homossexualidade, o generoso e grande
marqueteiro Ivo Rodrigues – do qual esperamos contar um pouco de sua rica
história, quem sabe à frente – viera d’outras “plagas” não era nascido na
cidade) entre a gurizada, seus alunos eram motivos de “chacotas e gozações” e
tal epíteto, sem preconceito, o moleque não queria para si... O moleque, então,
olhando firme nos olhos do pai, disse-lhe que não concordava com aquilo e não
queria ser aluno do professor Tal achando-se suficientemente preparado para
vencer a barreira do exame de Admissão; diante do que o pai, decidiu deixar de
lado a contratação do professor Tal adiando-a para a 2ª Época, caso o moleque
não conseguisse passar no exame de 1ª Época, todavia, não mexeria n’uma palha à
inscrição do moleque que deveria “se virar” sozinho... foi o que acabou
acontecendo, tendo o moleque tratado de todos os procedimentos referentes a
inscrição, realizando até exame de sangue no posto de saúde pública onde o
atendente, para si enfermeiro, coletou seu sangue, não sem antes perfurar seu
braço diversas vezes para finalmente obtê-lo. Sozinho, tratando da documentação
perante o Colégio, foi o moleque agraciado pela simpatia e benevolência de D. Marília,
a secretária que nunca mais o abandonou mesmo quando das inúmeras, infinitas
vezes, em que ele “aprontou”.
Chegou a 1ª Época dos Exames e lá
foi o moleque realizá-los junto com muitos dos seus amigos moleques (José Nilto,
Wilson Coco, Pedrinho Sabugo, Arlindo, Gago, Boca, Sérgio Caveira, Jair,
Enízio, etc.), tendo as provas de Português (iniciando-a a Redação), Estudos
Sociais e Naturais, Matemática, e outra, sendo ministrada uma prova em cada
manhã (duração, de segunda a quinta-feira quando se encerraram os Exames de
Admissão de 1ª Época. O resultado foi marcado para algum tempo depois, na
semana seguinte, parece. Na data aprazada lá compareceram todos os
participantes concorrentes tendo sido chamados os que haviam sido aprovados, um
a um, observada rigorosamente a ordem alfabética... Ao aproximar-se de seu nome
foi grande a expectativa do moleque e muitíssimo maior, muitíssimo mesmo sua
frustração ao ver passarem por cima de seu nome sem chamá-lo... e agora, teria
que ir às aulas ministradas pelo Professor Tal, aquilo era o caos, o abismo, a
inominável dor da vexatória derrota que já acreditava ter merecido pelos
deslizes das “gazetas” que, exageradamente, cometera por nada, sim por nada,
porque ou fizera para ver manobras dos “milicos” do 8º RC montados em cavalos,
pulando sangas e córregos da Vila Júlia, ou dos “milicos” do 4º GA75 CAV em
manobras lá pelas bandas do Cacaréo, ou para se lambuzar de prazer jogando
“peladas” no campo do Ferro Carril, com outros tantos moleques gazeteiros como
ele...
Somente não se retirara indo para
casa abatido e derrotado como estava, por coleguismo e amizade ao Pedro Sabugo
e ao Wilson Coco que não haviam sido ainda alcançados pela ordem alfabética e
ali permaneciam cheios de expectativa e muito mais pela insistência e grande
preocupação do dileto amigo, irmão até, José Nilto que se dizia perplexo e não
podia acreditar que o moleque não tivesse alcançado a aprovação... Não era
verdade... não podia... mas desde logo se colocava junto com o moleque para
ambos, embora ele não necessitasse pois fora aprovado, estudarem com o moleque
enfrentando a 2ª Época, certamente quando a fatalidade ou azar deste agora não
se repetiria...
Finalmente chamado Wilson Coco,
aprovado, o moleque cabisbaixo, acompanhado pelo fiel amigo José Nilto,
lentamente se dirigia ao portão de saída do Colégio, distante quinze ou vinte
metros de onde literalmente gritava a Secretária, D. Marília, o nome do
moleque... O primeiro a escutar foi José Nilto, quase simultaneamente ao
moleque, ambos voltando-se para trás quando o som reverberou em seus ouvidos...
alucinante é o termo mais definidor do que sentiu o moleque ao ser chamado,
mais ainda quando lhe foi comunicado que tinha obtido o primeiro lugar nos
Exames prestados... nunca mais, talvez, o moleque viria a sentir em momentos
tão próximos, o fundo do poço e o auge da ostentação, da terrível frustração ao
febril enlevo da vitória...
Ao chegar à casa, aprisionado
pelas sensações tão díspares, paradoxais, intensamente vivenciadas e estampadas
em sua face, encontrou o pai almoçando que perguntou-lhe como havia sido; antes
de dar a resposta, ainda embasbacado, quase travado, foi apartado por sua mãe
que declarou do alto de sua veemência e ainda sentida pelos acontecimentos do
último lugar no 5º ano primário, bradou “Não estás vendo, rodou... olha para a
cara dele...”. O silêncio do moleque deu veracidade à conclusão dada...
Durante a tarde compareceu na
Barbearia o Professor de Ciências do Colégio Estadual D. Hermeto, Sr. José
Gomes de Souza, cliente do pai do moleque, para fazer a barba. Em meio a
execução à barba que magistralmente o pai do moleque fazia, o Professor que era
um Pernambucano “da gema” perdido nos confins da Pampa, naquela Sentinela do
Brasil do final dos anos cinqüenta do Século XX, parabenizou-o pelo ocorrido
surpreendendo o pai do moleque que disse desconhecer o porquê do cumprimento ao
que o nobre professor, que posteriormente foi Prefeito de Uruguaiana dizia, em seu
inefável chiado “pernambuquês” repetia “Modéstio, meu amigo, modéstio, todos
sabem do teu filho aprovado em 1º lugar... modéstio”... Logo após terminada a
barba, o pai do moleque foi para sua casa e lá chegando procurou o moleque que,
ainda calado, sem nada dizer a ninguém, estava à beira do açude. Mansamente
abraçou o filho e quase em lágrimas, lhe disse pausadamente, hoje aprendi
contigo a lição que pensava tivesse eu te ensinado, ou seja, tu és o que tu és,
acreditaste firmemente em ti, mesmo quando e durante todo o tempo ninguém, nem
teu pai, nem tua mãe, acreditaram-te capaz, por isso sei que estás bem
encaminhado para logo adiante ser um homem forte o suficiente para receberes e
enfrentares com determinação, persistência e fé os bônus, obstáculos e ônus que
a vida teima em nos oferecer e que por certo acontecerão contigo.
E a vida do moleque seguiu seu
curso tendo outras histórias e estórias desse tudo ido...