segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015

... OUTRAS, DO MOLEQUE ...

 ...OUTRAS HISTÓRIAS DO MOLEQUE...
                                                                                                                 Itagiba José

Naquela manhã, que não era um 29 de junho qualquer, ainda que como todos os demais estivesse muito frio, o moleque fora acordado e obrigado a levantar da cama muito antes do que gostava, por volta das 07:00 ou 08:00hs da manhã, “um crime”, acreditava... mas à força de gritos e xingamento, logo ali o relho trançado de oito, fez com que ponderasse sobre a questão e o melhor caminho a seguir, isto é, ir ao “tambo” de leite buscar o leite à mamadeira da irmã menor...e já, conforme sua mãe mandara enfatizando o “jááá!”, triplicando o “á” em muitos “ás”... Lá fora o ainda sonolento moleque berrou sua inconformidade verbalizada à altura da desobediência, teimosia e imprecações...

Adiante-se que o moleque fizera, com vários outros moleques, (con)“tratos” que tinham de ser cumpridos sob pena de pagamento de “multas” também previamente estipuladas; ditos (con)“tratos” eram, por exemplo, o do “verdinho” que consistia em portar, sempre, no bolso da calça ou da camisa, uma folha verde, arrancada de plantas e ao se encontrarem, os (con)“tratantes” desafiavam um ao outro com o repto: “verdinho aí, não pago arrancar...’ quem tinha o verde consigo apresentava de imediato, azar do que não tivesse pois lhe era exigido pagar a “multa” estipulada; dentre outros, também se sobressaía o “trato do tapufe!” que consistia em, sem aviso, de surpresa, à traição ou à socapa, bater com a mão espalmada sobre qualquer coisa que o (con)”tratante” portasse em suas mãos, adjudicando para si o produto recolhido do chão, sendo excetuados com sobras de razões e em natural convenção de valores, os livros e cadernos do colégio, os produtos comprados nos “bolichos” (armazéns) a mando da mãe e, mais raramente, a mando do pai, etc... “Gibis” eram os mais procurados e quando se portava em mãos algum ou alguns deles, a atenção, o zelo, o cuidado, eram quintuplicados...; tinha também o “trato” do “paralisa” (ou “mandrake” como diziam em Porto Alegre) que tornava paralisado o (con)”tratante” quando não estava com os dedos cruzados (normalmente o indicador e o médio) ao comando do outro que berrara “paralisa” e o “paralisado” somente voltava ao normal após o outro liberá-lo através do comando “livre!”. A propósito, engraçado era quando os ditos (co)”tratantes” tinham entre si, concomitantes, (con)“tratos” de “tapufe” e “paralisa”, dando para imaginar as possibilidades sem conta da cena entre o “tapufiado” e o “paralisado” ou vice-versa ou ainda, versa-vice, um para o outro e/ou o outro para o um, etc...

Após a breve digressão, voltemos ao moleque e seu “tenebroso” problema, quase acordando às portas do “tambo” de leite, tendo que cuidar-se das peripécias que o martirizavam devido aos “n” (con)“tratos” que tinha com todo o mundo conhecido (por si, claro); sabia que não bateriam na vasilha de leite pois estava a mando de sua mãe, mas quem daria garantias à parafernália que portava nos bolsos, à cintura dependurados às calças em sacos de estopa ou lona rústica, como a “funda” (“bodoque” ou “atiradeira”, para alguns), o pião, as “bolitas” (“bolinhas de vidro”), os “bois” de osso integrantes da manada de gado de sua “estância” (fazenda) de brinquedo... Era precioso todo o cuidado e mais um pouco porque àquela hora era muito, muito, mas muito cedo para o moleque e sempre tem alguém que está muito, mas muito mais desperto que ele... Não deu outra, em meio do caminho de volta encontrou o Jura (Jurandir), o Quico (Saul Adair) e o Zote (Luiz Alberto, cujo apelido ao início era Gurizote), com o primeiro, ao descuido do moleque “tapufiando” a “funda” que estava (esquecida pelo mesmo, é verdade) pendendo do bolso esquerdo traseiro das calças... ao tentar defender sua “funda” o moleque não apenas a perdeu para o “tapufiador” como também escapando-lhe das mãos a vasilha de leite, este foi sugado pela terra de “chão batido” confundindo-se com a geada que recém começava a “levantar”... Quase desesperado o moleque não sabia como se safar dessa... não podia “aparecer” em casa sem o leite... O que fazer?... Sem outra idéia melhor, voltou ao tambo contou ao Sr. Madeira tudo o que ocorrera, ocultando o “tapufe” de Jura e pediu, implorou, rogou ao velho que repusesse o leite derramado... O bom homem, ainda que relutante pois conhecia aquele moleque p’rá lá de arteiro, desaforado, moleque, enfim, o socorreu todavia exigindo uma contrapartida: nunca mais o moleque atiraria pedras nos cachorros dele... evidentemente, o moleque aceitou o encargo e, para ficar bem esclarecido, nunca mais atirou pedras nos cachorros do “Seu” Madeira (não fosse o plural nos cachorros, quase que cometo uma frase de duplo sentido, o que não seria justo ao então e muito agradecido moleque...).

Tais passagens, idas e vindas de uma manhã de muito frio (e sono, pelo moleque) demandaram grande atraso ao cumprimento da tarefa simples de ir ao “tambo” trazer o leite com o que sua irmãzinha estrebuchava de fome, aos berros, enervando ainda mais a mãe, transformando um reles minuto em portentosa hora e em efeito geométrico, à pena que merecia, por isso, o moleque. E como ele era muito fujão, a mãe fechou todas as aberturas da casa, deixando apenas aberta a da cozinha por onde ele fatalmente entraria e tão logo o fizesse se fecharia às suas costas... E assim foi feito, lá vem o moleque aliviado pela recuperação do leite restou esquecido do seu comportamento quando ganhara à rua ao sair para o “tambo” e sem pressentir o temporal armado, ingressou na cozinha, nem se dando conta de que estava tudo fechado, depositou a vasilha de leite por sobre a mesa e logo sentiu o hálito quente de sua mãe verbalizando o temido “... agora vamos ‘conversar’ sobre o que disseste lá fora, ao sair e, também o porquê desse atraso”... de relance (ou “relancina” como costumava dizer) viu o “trançado de oito”, rebenque, nas mãos da mãe e aquela visão foi o suficiente para lançá-lo ao interior da casa em busca de uma abertura que, naquele momento, não existia... corre p’rá cá e p’rá lá estava sendo encurralado quando sua irmã, um pouco mais velha que ele (três anos), Ezolda Catarina, a Zôzô (por erro do Cartório de Registro o nome saiu com essa grafia equivocada – o nome deveria ser idêntico ao da Isolda, de Tristão) vem em seu socorro, agarrando-se às pernas da mãe que dela tenta desvencilhar-se dando chances ao moleque pela única saída que tinha, isto é, pela porta da cozinha por onde entrara... Daí a rua, o campo, o mundo e a linha férrea que por ali passava tendo o moleque optado por esta, dirigindo-se para os lados dos quartéis, à Ponte do Sapo... Enquanto isso a pobrezinha da Zôzô tomou uns “sacalões” da mãe e, juntas saíram atrás do moleque que tomara uma distância relativamente grande de uns 200 ou 300m à frente., gritando que iria se “matar” em flagrante e distorcida, infantil também, pressão/coação psicológica sentimentaloide, chantagem emocional melhor dizendo, que fez efeito na querida mana e, acreditou, na própria mãe... Ninguém me ama, ninguém me quer, vou me matar e vocês vão chorar... Por sobre os trilhos e dormentes o moleque parou ao início da estrutura da ponte que apresentava uma depressão há mais ou menos um metro abaixo da linha férrea, onde formava uma base exposta de mais ou menos um metro quadrado dali partindo descida sinuosa até a linha d’água... Pois bem, o moleque deu uma olhada para trás e vendo a mãe e a irmã a uma distância razoável, por mera intuição considerou que de onde estavam não o veriam saltar nessa base, que não enxergavam e, em canhestra atuação teatral, se “jogou” à base, “desaparecendo” aos olhos das duas, saindo abaixadinho (imaginem, ele que não era tão grande assim) pela vereda até a linha d’água, contornando-a e seguindo às escondidas até definitivamente se afastar dali, decidindo a partir de então se dirigir à casa da irmã mais velha que já estava casada e tivera seu filho, o Antônio Jualci, de apelido “Tunico”, o primeiro sobrinho do moleque. E assim foi feito...
Gelci, o cunhado do moleque, o “Farinha” como fora apelidado, recém chegara da padaria onde trabalhara a noite inteira e foi informado pelo moleque que este viera ali para “escutar” o jogo do Brasil contra a Suécia, grande final da Copa do Mundo de 1958... É hoje? Perguntara, sim é hoje, informara, às 03:00hs (15:00hs)... Bem então vou “tirar um cochilo” disse “Farinha”, me acorda quando começar... tá bem, tá bem... disse o moleque e ficou nisso o papo... O moleque “adonou-se” do rádio Standar Eletric e, impaciente, logo, logo, “sintonizou” a emissora paulista, a Bandeirantes onde gostava de “escutar” os jogos do campeonato Paulista sobressaindo o grande Palmeiras, seu time, e os outros como o Corinthians, campeão do quarto centenário, grande rival que foi depois substituído pelo Santos Futebol Clube, da Era Pelé, com aquele ataque demolidor – Dorval, Mengálvio, Pagão (Coutinho) Pelé e Pepe; saliente-se que as emissoras de Porto Alegre, exceto a Radio Farroupilha, não eram acessadas quer em ondas curtas, quer em ondas médias (transmissões em AM) pelos aparelhos de rádios em Uruguaiana, por isso a preferência quase automática pelas emissoras do Rio de Janeiro e de São Paulo (Rádios Nacional, Tamoio, Mayrink Veiga, Tupi, Relógio, Mundial, dentre outras) cujo som entrava em excelentes condições, rivalizando com as rádios argentinas como a Belgrano e El Mundo, de Buenos Aires). Na Bandeirantes destacavam-se os grandes locutores (speakers, à época), narradores de futebol, como os fenomenais Edson Leite e Pedro Luís e, como comentarista esportivo, Mário Moraes, todos preferidos e ídolos do moleque.

Para surpresa do moleque homiziado na casa da irmã, do som alto e claro da rádio Bandeirantes ouviu-se a voz inconfundível de Edson Leite, falando, diretamente do Estádio Rasunda, em Estocolmo informando o início do jogo para daqui a pouco... mas o jogo era as 03:00 hs, será que mudaram tudo, como era possível... o moleque não sabia do tal de “fuso horário”, nem que a hora assinalada para o de início do jogo era a hora sueca... Correu então para avisar “Farinha” que o jogo estava prestes a iniciar, trazendo-o meio cambaleante de sono para escutar consigo... E começa o jogo, nervos à flor da pele... É Gilmar o goleiro que tem de pegar tudo, é Djalma Santos o melhor lateral Direito que se recuperara e, finalmente, estrearia no mundial em substituição ao De Sordi que jogara todas até aquele dia, tem Belini e Orlando os zagueiros central e o quarto e a Enciclopédia do Futebol, Nilton Santos, na lateral esquerda... No meio campo está lá o grande protetor da zaga, Zito como centromédio e Didi, o Príncipe Etíope e sua folha seca, também Zagalo, o Formiguinha, ponta esquerda que “fechava” o meio, à frente, no ataque, o endiabrado Mané Garrincha, o Anjo das Pernas Tortas, Alegria do Povo que transformava todo marcador em “Joãos” através dos dribles desconcertantes que dava (incrível, invariavelmente para o mesmo lado) e também Vavá o centroavante goleador, guerreiro, oportunista, tanque, peito de aço... Mas tinha também Pelé, gênio de 17 anos que encantou a todos, tornando-se o “Rei” do futebol, merecidamente a partir de então e para todo o sempre, claro, reconhecido como o melhor jogador de futebol de todos os tempos... Deixa-se de falar sobre os jogadores suecos pois o moleque não conseguiu guardar entre eles um nome que fosse, nem mesmo os nomes dos autores dos gols da Suécia... Ah, o jogo, convém falar sobre o jogo na ótica do moleque, influenciado pela narração emotiva de Edson Leite e nos comentários abalizados de Mário Moraes... O início foi duro... logo, logo, por volta dos 10 minutos de jogo a Suécia fez seu primeiro gol e, tanto o garoto quanto o ”Farinha” sentiram descer a nuvem negra da final de 1950, contra o Uruguai (o moleque era muito pequeno, então, mas se lembrava perfeitamente do choro de seu pai, dos vizinhos e outros tantos naquele fatídico dia – mas isso é outra história), também deu para sentir na pele o ferro e fogo da campanha de 1954 ( quando o Brasil perdeu para a Hungria n’um baile que nem Humberto Tozzi, grande ponta de lança do Palmeiras conseguiu evitar, o que também é outra história...)... Aleluia, Em menos do que dez minutos depois, Vavá, o centroavante tanque e goleador empata a partida e, logo adiante, desempata e o Brasil faz 3 a 1, gol de Pelé, faz 4 a 1, gol de Zagalo e a Suécia, faltando 10 minutos para acabar o jogo fez seu segundo gol, perigando o primeiro título mundial de futebol do Brasil a esta altura já festejado por todos... no finalzinho Pelé faria seu segundo gol, o quinto e último gol do Brasil, campeão do mundo pela primeira vez... A imensa alegria de todos é indescritível, basta dizer que foram explodidas tantas bombas que quase todos os moradores da cidade vizinha, Passo de Los Libres, na Argentina, ficaram surdos pelo som e asmáticos pela fumaça... (é exagero, perdoem-me os amigos argentinos, é só uma figura de linguagem, nada mais que isso...).

O moleque e sua irmã Rita, a “Oca”, seu cunhado Gelci, o “Farinha”, saíram à frente da casa, acompanhando os demais vizinhos da sempre querida Sete de Setembro, a rua em que nascera... E tudo foi festa em um dia de festa, pois não, eis que era 29 de junho de 1958, dia de São Pedro, à noite com muitas fogueiras para serem realizadas, muita batata doce americana (a da cor amarela que, parece, só tem naquelas plagas) para assar nas fogueiras, muitos rojões e busca-pés, brincadeiras, quadrilhas juninas, e tanto mais que, naquele tempo, acontecia a respeito... Com a cidade toda em festa como todo o Brasil, aliás, quase ao anoitecer, empurrado obstinadamente pela irmã, o moleque trilhou o caminho de casa, contando com a presença do pai o que evitaria tomar uma bela e merecida surra... Jamais soube como e em que hora sua mãe e a mana “Zôzô” souberam que ele estava homiziado na casa da mana “Oca”, com a mãe aguardando-o para dar fecho àquela prometida e não cumprida “conversa” matinal... A felicidade geral pela vitória do Brasil, porém, amenizara todo e qualquer dissabor ou rancor e nem mesmo ao pai do moleque fora comunicado pela mãe o ocorrido...

Cientificando-se da presença do pai, o moleque ingressou meio que sorrateiramente à casa... interpelado pelos pais, disse que esteve visitando a mana “Oca”, ouvira pelo rádio a vitória do Brasil, agora e finalmente campeão do mundo de futebol, ao que o pai, entusiasmado, disse ao moleque, citando o grande Nelson Rodrigues, derrubou-se para sempre o nosso sentimento de inferioridade, deixamos de ser vira-latas, agora somos a Pátria de chuteiras, campeã de futebol do mundo...

Porém o pai, logo a seguir ao tomar conhecimento do que “aprontara” o moleque naquela manhã fria e, para o moleque, cheia de sono e desconforto, baixou-lhe o espírito do conselheiro-educador, aquele que fazia o moleque ficar seriamente pensando, em dúvidas, se não teria sido melhor levar umas “lambadas” do trançado de oito da mãe e tudo já teria passado, do que, como agora, ter de olhar no fundo dos olhos de seu pai que pausada, delicada e amorosamente lhe obrigava a pensar sobre o certo e o errado de suas atitudes e a justificá-las com argumentos razoáveis, acaso tivesse e fosse possível...


Enquanto isso, lá fora, as fogueiras estavam sendo acendidas, os rojões e busca-pés explodiam, e alguns corajosos e, quem duvida, inexpugnáveis às dores ou queimaduras, passavam correndo de pés descalços por sobre brasas, comiam batatas doces americanas, pulavam as fogueiras, dançavam quadrilhas e “pericons”, nos folguedos juninos... Embora tentasse o moleque não conseguiu reduzir o “sermão” do pai... mesmo assim e ao final, chegou a tempo de se divertir bastante enquanto crepitavam as fogueiras e as brincadeiras...