sábado, 30 de janeiro de 2021

O PULGA MACHO E O CACHORRO

Naquele tempo os animais irracionais falavam e se socorriam uns dos outros. Egoísmo era artigo de imprestável luxo que ninguém tinha; também e como continuaria sendo, ninguém desses personagens então falantes tinham consciência da possibilidade de morrer e, quem sabe por essa ignorância, eram um tanto quanto mais felizes, ainda que não soubessem sorrir (ou se escondessem para fazê-lo pois entendiam o sorriso como fraqueza que, como a lágrima, não devia ser exposto...).

Um Pulga Macho e nem por isso menos cândido ou gentil, era tido e havido como grande orientador, indicador e lapidador de virtudes, das alheias até, e principalmente dessas, pelos conhecimentos que tinha sobre as coisas da vida, embalados e expressados nos estudos e sapiência que lhe reconheciam como possuidor; ainda, obtivera reconhecimento inclusive à capacidade filosófica e postulatória que disso tudo advinha, principalmente o último, por ter concluído os ingentes, árduos, estudos da advocacia, neles transitando com louvor desde àquela faculdade pública (o que depois veria, era a parte mais fácil), até o cotidiano que enfrentava com abnegação em busca das melhores soluções aos problemas daqueles que o procuravam.

Assentado sobre essas condições, somadas às afabilidade, generosidade e gentileza que o marcavam, era requisitado por àqueles que de tanto necessitavam no enfrentamento de seu dia a dia e dos confrontos à ação de fazer o melhor possível no ato de trilhar caminhos, resolver conflitos, buscar, pelo direito e pelo bom senso, a realização da justiça que todos pretendiam para o todo em primeira instância e, mais particularmente, para si próprios. O Pulga Macho advogava o Saber Masdeístico(*) sob a égide da inscrição-mandamento, do frontispício do Oráculo de Delfos, “Conhece-te a ti mesmo”, a partir do que, transitava pelos tortuosos caminhos do ser e âmago de cada um, conduzindo-os à luz (que todos têm e, em maioria de vezes, se sonegam ou, pior, ignoram), ao peso, uso e exercício da máxima “Dumasiana” escancarada para o mundo todo, na célebre obra-prima de “Os Três Mosqueteiros”, qual seja, “Um por todos! Todos por um!”.

Dentre tantos que ajudara, talvez o mais difícil momento enfrentado no mister que abraçara e fizera sua própria condição de viver e distribuir para outros a paz que carregava, foi com aquele milionário Cachorro que, além de alimentá-lo lhe servia de abrigo e que, embora sua ávida disposição de apreender, por teimosia ou falta de melhor preparo eis que apreendera perambular pelas ruas, solitário e desassistido desde tenra idade, por isso sem sentimentos nem princípios, sejam de respeito, amor, perdão, carinho, amizade, comiseração ou indulgência para com aqueles que, ao seu ponto de vista ou cegueira, lhe pareciam meros interesseiros, afastando de si, muitas vezes, terceiros de elevado caráter, leais, pelo erro de enfoque e por não conseguir livrar-se da visão caolha produzida pelo apego à materialidade das coisas que obtivera no curso da vida, no apego do “mais”, sempre “mais”, “quero mais”, no insensato medo de que em um amanhã, cada vez mais distante considerado o que amealhara e continuava amealhando em fanático frenesi, viesse faltar um mínimo que fosse à sobrevivência confortável, segura, luxuosa, agora desfrutada e voltasse a sofrer a miséria tristemente vivida no alvorecer da vida quando abandonado à própria sorte, que bem conhecera e muito, do que, ao conseguir livrar-se sabe-se lá como e com que dose de sofrimento e luta, fizera mantra e juramento de que jamais voltaria a sofrê-la fazendo questão de, cotidiana e rotineiramente, lembrar para si e para quem o ouvisse, um nunca mais nunca mais de quem sabia jamais voltaria a passar!

Mais do que a determinação, o medo o empurrava para os labirintos do nunca, caminhos que solitariamente assim trilhava sem o conforto de um afago sequer, de um amigo que, quem sabe fosse ou poderia ser aquele Pulga Macho que hospedara e, como um inço ou parasita, dele se alimentava. A noite em que vivia já estava se esvaindo nas luzes que deixara de percorrer e sua vida se destinava, cada vez mais célere, ao que se reserva a todas às vidas, isto é, à morte.

Caiu-lhe à mão um poema trazido pelo Pulga Macho, então, e de sua leitura entendeu que retratava a quase totalidade do vazio alcançado pelo comportamento um tanto quanto hostil e belicoso mantido no curso de toda sua trajetória; dizia o belíssimo poema de Francisco Otaviano de Almeida Rosa (1825-1889) in verbis: 

                             “ILUSÕES DA VIDA
                       
            Quem passou pela vida em branca nuvem, 
            E em plácido repouso adormeceu;
            Quem não sentiu o frio da desgraça, 
            Quem passou pela vida e não sofreu;
            Foi espectro de homem, não foi homem,
            Só passou pela vida, não viveu.”

 Aqueles versos, em especial os que diziam “Quem passou pela vida em branca nuvem / E em plácido repouso adormeceu...” pois que dos outros tudo vivenciara e sabia-se muito mais vivo enquanto, explodiram no fundo de sua alma e, como se fossem chaves, mágicas chaves, abriram seus enigmas, demonstrando-lhe que se a luta da sobrevivência valera a pena eis que não se entregara à má sorte nem ficara como barco à deriva no revolto mar de sua existência, transformado naquele ser forte, gigante e insensível, também o afastara e para muito longe. do porto de sua própria condição de animal gregário, transformando-o naquele iate luxuoso pleno das coisas boas que o dinheiro pode comprar, mas cheio da escuridão da solidão que só o amor, tão simples e gratuito, inatingível para ele porque invendável, pode vencer, expulsar, transformar em céu e luz.

Como bem fora demonstrado pelo Pulga Macho em sua oralidade tranquila, serena, o Cachorro Milionário adorou tomar conhecimento mesmo através dele, Pulga Macho que até contra a sua vontade, hospedara e agora adotara que interpretara o poema e sentindo o genuíno e humilde interesse do Cachorro na descoberta desse outro lado de seu próprio ser, portanto a sua mais importante descoberta, a partir disso tudo, iniciou professoralmente o relato, a interpretação, o significado de cada uma dessas pérolas à formação do colar, ou corolário, no aprendizado maiúsculo de si mesmo que todos podem e devem alcançar, dando-lhe a conhecer outros tantos poemas e versos que lhe parecera apropriado ao despertar do hospedeiro amigo e à sequência dessa descoberta, quem sabe e finalmente o Cachorro pudesse finalmente ser feliz, como nunca fora ou se sentira antes... Pelo menos e disso tinha certeza o Cachorro tornar-se-ia mais humano (ops) ou melhor, um bom e excepcional animal irracional daí para a frente.

O Cachorro Milionário que até ali atravessara ruas e avenidas até com sinal fechado, detentor do poder que emana das condições financeiras, econômicas e bens materiais que dilapidaram sua parte espiritual onde se depositariam todos os bons fluídos necessários à criação de uma personalidade forte, centrada, plena de afeto e reciprocidade pelos seus semelhantes e de tal ordem partícipe à realização do todo em holocausto ao egoísmo que o mantivera distante do que se tornou: um Cachorro feliz e muito mais Milionário, não só das coisas materiais que o conduzia e o revelava nada além do que um nada, um infeliz nada, mas pleno em si mesmo de paz, solidariedade e encantamento de e por todos.

Como conselho derradeiro e final nesta nova fase o Cachorro, agora Milionário também imaterialmente, recebeu do Pulga Macho uma advertência ao cruzamento entre o amigo desinteresseiro que por ser realmente amigo muitas vezes viria lhe chamar a atenção para rever comportamentos, procedimentos, às vezes até de forma dura todavia sempre amorosa, bem intencionada e àquele pretenso amigo que o cumularia com aplausos imerecidos e mesmo vendo-o encaminhar-se para o abismo, o incentivaria a seguir em passo largo rumo a esse nefasto objetivo... e quantos de nós temos em nossa volta tal ou tais personagens?... Neste caso, é bom portar como advertência o vermelho do sinal no qual se deve parar; em descumprindo a regra, o Cachorro, seja ele quem e de que tamanho for poderá ser morto por atropelamento. E, se por acaso existente um hospedeiro do tipo Pulga, Macho ou Fêmea, ainda que conselheiro e amigo leal e sincero, quase que certamente e em cem por cento de chances, sobreviverá a tanto e, ainda que com muito pranto e saudade, buscará uma outra hospedaria...

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      GLOSSÁRIO (*) “MASDEÍSMO, s.m., Religião dos povos iranianos, na qual se admitiam dois             princípios – o Bem e o Mal – e se adorava o fogo; o mesmo que zoroastrismo. (Do zend. Masdão).          (“Dicionário Brasileiro Zero Hora, 1ª ed., Porto Alegre, 1984).

sábado, 16 de janeiro de 2021

DESPERTAR

Ao longe, muito longe, o céu e a pampa em mistura comum / Perderam a individualidade, únicos, como n'um dois em um. / Na visão que partia de um promontório difuso, imaginário, / Estampando o passado e dentro dele se visse um perdulário / De momentos, no personagem que até então alimentara. / Como pudera, se perguntava, como pudera ser tão cego / E sacrificara a verdade insculpida no fundo de seu ego / Pelos estertores e ânsia mortal de inválidas futilidades / Que tisnaram de fel o que realmente importa, a realidade / Dos sonhos e realizações eternas do quanto abandonara. / Assim e pela vez primeira, ao acordar percebeu revelado / O que sempre soube ser e ter da vida, seu próprio legado: / Viver, viver o mais possível no céu, mais alegre ou triste, / Pouco importa, sentindo-se vivo, neste viver que existe / Em cada átomo do ser que, enfim, descobrira e se tornara.

segunda-feira, 4 de janeiro de 2021

MAIS UMA DO MOLEQUE - OVNIs EM URUGUAIANA

Nuvens altas, lá em cima, no céu ou além dele quem sabe, naquela modorrenta, calorenta tarde, típica daqueles verões ferventes de Uruguaiana onde até o asfalto colabora no visual soltando ondas de “bafos quentes” que se tornam visíveis a olho nu a uma certa distância, subindo ao céu, parece, indo de volta ao sol que emoldura a cena, seguiam o moleque e seu quase inseparável amigo Guirland, rumo ao Estádio Felisberto Fagundes Filho onde deveriam participar do primeiro treino, para ambos, na então chamada equipe de juvenis. Lá adiante encontrariam Juarez Barbat, primo de Guirland e também amigo do moleque, para juntos seguirem até a Baixada (nome com que, também era conhecido o Estádio supra referido). 

 Mas era cedo e sabiam ainda daria tempo para jogar fora uns bons dez minutos; entretanto o calor era tanto que qualquer brincadeira lhes tiraria o fôlego além de produzir tanto suor desaconselhável segundo diziam para quem não tinha qualquer líquido, ali, para beber e nem dinheiro para comprar sequer uma Crush ou Cirilinha (a primeira, sabor de uva, a segunda de laranja e, pelo seu tamanho, conhecida como laranjinha). O que fazer que pudesse proporcionar algum divertimento? ...

De repente Guirland estancou o passo e se quedou como uma estaca em meio à calçada, olhando fixamente para um ponto perdido no escaldante céu daquela tarde! Vendo isso, o moleque também elevou o olhar até onde pensou estar o amigo olhando e, meio embasbacado, ficou procurando sem saber o que, num nada absoluto daquele céu tão claro de nuvens tão altas. Ambos, assim, pareciam possuídos de uma paralisia contagiante feito àquela proveniente do “trato” “paralisa” ou “mandraque”, com Guirland “parecendo” enxergar alguma coisa e o moleque “buscando” enxergar essa tal de alguma coisa... Saliente-se que esse tipo de procedimento adotado por Guirland certamente não era original e já devia ter sido intentado por outros personagens e nem deveria ter tido o impacto que teve então, pois, a partir dele não só o moleque estancou e olhou para o céu, logo em seguida outros transeuntes e, logo seguir e aos “borbotões”, também estancaram o passo e começaram a olhar para o céu em busca dessa inatingível imagem que se acreditava estivesse Guirland olhando fixamente. 

Então o moleque, aleatoriamente e, como tudo o mais daquela ocorrência inocorrente, sem nenhum sentido, disse que o que saía do rabo daquela imagem, que parecia um foguete em fuga, parecia ser uma espécie de “bosta” de cabrito ou de ovelha incandescente e que se aquilo atingisse a terra tudo ficaria uma bela porcaria e pior seria se atingisse apenas o Rio Uruguai e, em qualquer hipótese tudo estaria emporcalhado... Guirland, ainda parecendo absorto, abduzido pela imagem inexistente que sequer vira, ponderou sobre a salvação da lavoura eis que, segundo diziam, merda era o melhor adubo que existia, com o que concordou o moleque, afinal, até mesmo disso e quem sabe somente depois disso, em qualquer circunstância, episódio, ou evento o renascer parece que vinha cheio de luz, em maioria de vezes pelo menos, como ensina a história das “n” merdas que o povo se repete em produzir até que, um dia, daquele lodaçal surgia a flor que poderia ser a de lis (Taylor de preferência) ou, mais humildemente, de maricá ou uma rosa cor de rosa ou vermelha, ou branca, ou amarela que se juntaria a cor preta e se fixaria na camiseta jalde-negra do Esporte Clube Uruguaiana, onde aliás não deveria demorar para iniciar o treino, o primeiro treino de ambos que e ainda, estavam um tanto quanto longe da Baixada e era uma “puxadinha” para chegar lá desde a Praça Barão do Rio Branco.

Foi o que bastou, tal lembrança, para retirá-los daquele transe sem se darem conta de que por um momento, um momentinho insignificante, pararam o centro de Uruguaiana, ou melhor e menos exagerado, alguns transeuntes da Bento Martins, e até, talvez, do entorno da Praça e sobre o que então lhes pareceu bobagem, nunca mais falaram ou registraram, sequer para Juarez que já impaciente lhes esperava um pouco mais adiante...

De verdade, nem mesmo o moleque jamais perguntou ao seu amigo o que ele teria visto, se é que teria visto alguma coisa, nem este perguntou ao moleque se teria visto, de verdade, nave espacial sobrevoando o céu de Uruguaiana e de Passo de Los Libres eis que pela elevada distância o alvo poderia ser tudo aquilo ou só o Rio Uruguai, tendo como combustível bosta de cabrito ou de ovelha com isso tudo comprovado por rastro deixado pela merda incandescente, adubo de inferior qualidade se comparado ao que tem origem, base e núcleo em titicas de galinha.

Tudo isso não quer dizer que a fértil Pampa necessitasse de adubo, porém nunca é demais repetir que não se sabe se disso tudo, além das gramíneas que a adornam, surgissem inumeráveis plantações e colheitas de arroz e outras tantas leguminosas, ombreando com a pecuária ovina, equina e vacum que destacam e preenchem à querida Pampa e suas coxilhas. Mas, vamos apenas considerar que tudo não passou de um daqueles transes que a mormacenta tarde de um inclemente verão, como quase todos típicos de Uruguaiana, produzira nos sentidos de dois moleques nada diferentes de outros tantos que, independentemente dos tempos, por lá e ainda proliferam!

Enquanto isso, o esperado treino da gurizada no Esporte Clube Uruguaiana, no grandioso, majestoso estádio da Baixada (o iluminado Felisberto Fagundes Filho, quer pelas feéricas luzes de seus refletores, quer pela incandescente luz originária dos raios de sul refletidos pelo amado espelho do Mar de Água Doce, o tão pertinho, Rio Uruguai) sequer começara e, para aqueles moleques, JAMAIS findaria, vivo que se estabeleceu eterno na lembrança e saudade de cada um deles.

sexta-feira, 1 de janeiro de 2021

APENAS UM SER HUMANO

Um ser humano, meramente um ser humano, / Só um ser humano, apenas, que em mim vive. / Não tive todas as mulheres que quis / porém quis, e muito, todas as que tive; / não fiz o que poderia ter feito para ser feliz, / mas o que foi feito, inclusive o não resolvido, / foi bem além do que poderia ter sido; / não exerci plenamente o que me foi destinado, / titubeando em indecisos passos desconfiados, / todavia, cumpri o que me foi possível / indo além e quem sabe até ao impossível. / Assim vivi, vivo e continuarei vivendo / eis que sou um ser humano apenas sendo / pleno de sonhos, de perguntas e dilemas / não um não ou sim absolutos, nos teoremas / do ontem que não volta, do hoje que passa, / desse amanhã sem chegar, tão pleno de graças. / / Um ser humano, meramente um ser humano, / Só um ser humano, apenas, que em mim vive. / Um ser humano, meramente um ser humano, / Só um ser humano, como o que em ti vive. /