Um Pulga Macho e nem por isso menos cândido ou gentil, era tido e havido como grande orientador, indicador e lapidador de virtudes, das alheias até, e principalmente dessas, pelos conhecimentos que tinha sobre as coisas da vida, embalados e expressados nos estudos e sapiência que lhe reconheciam como possuidor; ainda, obtivera reconhecimento inclusive à capacidade filosófica e postulatória que disso tudo advinha, principalmente o último, por ter concluído os ingentes, árduos, estudos da advocacia, neles transitando com louvor desde àquela faculdade pública (o que depois veria, era a parte mais fácil), até o cotidiano que enfrentava com abnegação em busca das melhores soluções aos problemas daqueles que o procuravam.
Assentado sobre essas condições, somadas às afabilidade, generosidade e gentileza que o marcavam, era requisitado por àqueles que de tanto necessitavam no enfrentamento de seu dia a dia e dos confrontos à ação de fazer o melhor possível no ato de trilhar caminhos, resolver conflitos, buscar, pelo direito e pelo bom senso, a realização da justiça que todos pretendiam para o todo em primeira instância e, mais particularmente, para si próprios.
O Pulga Macho advogava o Saber Masdeístico(*) sob a égide da inscrição-mandamento, do frontispício do Oráculo de Delfos, “Conhece-te a ti mesmo”, a partir do que, transitava pelos tortuosos caminhos do ser e âmago de cada um, conduzindo-os à luz (que todos têm e, em maioria de vezes, se sonegam ou, pior, ignoram), ao peso, uso e exercício da máxima “Dumasiana” escancarada para o mundo todo, na célebre obra-prima de “Os Três Mosqueteiros”, qual seja, “Um por todos! Todos por um!”.
Dentre tantos que ajudara, talvez o mais difícil momento enfrentado no mister que abraçara e fizera sua própria condição de viver e distribuir para outros a paz que carregava, foi com aquele milionário Cachorro que, além de alimentá-lo lhe servia de abrigo e que, embora sua ávida disposição de apreender, por teimosia ou falta de melhor preparo eis que apreendera perambular pelas ruas, solitário e desassistido desde tenra idade, por isso sem sentimentos nem princípios, sejam de respeito, amor, perdão, carinho, amizade, comiseração ou indulgência para com aqueles que, ao seu ponto de vista ou cegueira, lhe pareciam meros interesseiros, afastando de si, muitas vezes, terceiros de elevado caráter, leais, pelo erro de enfoque e por não conseguir livrar-se da visão caolha produzida pelo apego à materialidade das coisas que obtivera no curso da vida, no apego do “mais”, sempre “mais”, “quero mais”, no insensato medo de que em um amanhã, cada vez mais distante considerado o que amealhara e continuava amealhando em fanático frenesi, viesse faltar um mínimo que fosse à sobrevivência confortável, segura, luxuosa, agora desfrutada e voltasse a sofrer a miséria tristemente vivida no alvorecer da vida quando abandonado à própria sorte, que bem conhecera e muito, do que, ao conseguir livrar-se sabe-se lá como e com que dose de sofrimento e luta, fizera mantra e juramento de que jamais voltaria a sofrê-la fazendo questão de, cotidiana e rotineiramente, lembrar para si e para quem o ouvisse, um nunca mais nunca mais de quem sabia jamais voltaria a passar!
Mais do que a determinação, o medo o empurrava para os labirintos do nunca, caminhos que solitariamente assim trilhava sem o conforto de um afago sequer, de um amigo que, quem sabe fosse ou poderia ser aquele Pulga Macho que hospedara e, como um inço ou parasita, dele se alimentava. A noite em que vivia já estava se esvaindo nas luzes que deixara de percorrer e sua vida se destinava, cada vez mais célere, ao que se reserva a todas às vidas, isto é, à morte.
Caiu-lhe à mão um poema trazido pelo Pulga Macho, então, e de sua leitura entendeu que retratava a quase totalidade do vazio alcançado pelo comportamento um tanto quanto hostil e belicoso mantido no curso de toda sua trajetória; dizia o belíssimo poema de Francisco Otaviano de Almeida Rosa (1825-1889) in verbis:
“ILUSÕES DA VIDA
Quem passou pela vida em branca nuvem,
E em plácido repouso adormeceu;
Quem não sentiu o frio da desgraça,
Quem passou pela vida e não sofreu;
Foi espectro de homem, não foi homem,
Só passou pela vida, não viveu.”
Aqueles versos, em especial os que diziam “Quem passou pela vida em branca nuvem / E em plácido repouso adormeceu...” pois que dos outros tudo vivenciara e sabia-se muito mais vivo enquanto, explodiram no fundo de sua alma e, como se fossem chaves, mágicas chaves, abriram seus enigmas, demonstrando-lhe que se a luta da sobrevivência valera a pena eis que não se entregara à má sorte nem ficara como barco à deriva no revolto mar de sua existência, transformado naquele ser forte, gigante e insensível, também o afastara e para muito longe. do porto de sua própria condição de animal gregário, transformando-o naquele iate luxuoso pleno das coisas boas que o dinheiro pode comprar, mas cheio da escuridão da solidão que só o amor, tão simples e gratuito, inatingível para ele porque invendável, pode vencer, expulsar, transformar em céu e luz.
Como bem fora demonstrado pelo Pulga Macho em sua oralidade tranquila, serena, o Cachorro Milionário adorou tomar conhecimento mesmo através dele, Pulga Macho que até contra a sua vontade, hospedara e agora adotara que interpretara o poema e sentindo o genuíno e humilde interesse do Cachorro na descoberta desse outro lado de seu próprio ser, portanto a sua mais importante descoberta, a partir disso tudo, iniciou professoralmente o relato, a interpretação, o significado de cada uma dessas pérolas à formação do colar, ou corolário, no aprendizado maiúsculo de si mesmo que todos podem e devem alcançar, dando-lhe a conhecer outros tantos poemas e versos que lhe parecera apropriado ao despertar do hospedeiro amigo e à sequência dessa descoberta, quem sabe e finalmente o Cachorro pudesse finalmente ser feliz, como nunca fora ou se sentira antes... Pelo menos e disso tinha certeza o Cachorro tornar-se-ia mais humano (ops) ou melhor, um bom e excepcional animal irracional daí para a frente.
O Cachorro Milionário que até ali atravessara ruas e avenidas até com sinal fechado, detentor do poder que emana das condições financeiras, econômicas e bens materiais que dilapidaram sua parte espiritual onde se depositariam todos os bons fluídos necessários à criação de uma personalidade forte, centrada, plena de afeto e reciprocidade pelos seus semelhantes e de tal ordem partícipe à realização do todo em holocausto ao egoísmo que o mantivera distante do que se tornou: um Cachorro feliz e muito mais Milionário, não só das coisas materiais que o conduzia e o revelava nada além do que um nada, um infeliz nada, mas pleno em si mesmo de paz, solidariedade e encantamento de e por todos.
Como conselho derradeiro e final nesta nova fase o Cachorro, agora Milionário também imaterialmente, recebeu do Pulga Macho uma advertência ao cruzamento entre o amigo desinteresseiro que por ser realmente amigo muitas vezes viria lhe chamar a atenção para rever comportamentos, procedimentos, às vezes até de forma dura todavia sempre amorosa, bem intencionada e àquele pretenso amigo que o cumularia com aplausos imerecidos e mesmo vendo-o encaminhar-se para o abismo, o incentivaria a seguir em passo largo rumo a esse nefasto objetivo... e quantos de nós temos em nossa volta tal ou tais personagens?... Neste caso, é bom portar como advertência o vermelho do sinal no qual se deve parar; em descumprindo a regra, o Cachorro, seja ele quem e de que tamanho for poderá ser morto por atropelamento. E, se por acaso existente um hospedeiro do tipo Pulga, Macho ou Fêmea, ainda que conselheiro e amigo leal e sincero, quase que certamente e em cem por cento de chances, sobreviverá a tanto e, ainda que com muito pranto e saudade, buscará uma outra hospedaria...
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GLOSSÁRIO
(*) “MASDEÍSMO, s.m., Religião dos povos iranianos, na qual se admitiam dois princípios – o Bem e o Mal – e se adorava o fogo; o mesmo que zoroastrismo. (Do zend. Masdão). (“Dicionário Brasileiro Zero Hora, 1ª ed., Porto Alegre, 1984).