domingo, 27 de janeiro de 2013

OS RATOS (e o GATO) - (Continho)


Os ratos (e o gato!)

Então o gato se ausentou por algum tempo de seu habitat deixando os ratos à vontade. Livres da presença do gato, os milhares de ratos oprimidos resolveram se reunir para analisar uma saída que, obrigatoriamente, afastasse em definitivo o gato e os oprimidos ratos pudessem viver sua vida sem servirem com suas próprias vidas, banquete ao gato.

Daí os ratos fizeram uma assembleia geral e ao som da Marselhesa ou da marchinha “Me dá um dinheiro aí”, começaram-na para decidirem suas vidas... e para presidi-la elegeram um Rato Filósofo.
Um rato velho, de cara pachorrenta, enrugada  e tímida foi o primeiro a falar convencido que a idade lhe dava tal primazia; e disse que dentre os jovens deveriam ser eleitos representantes que seriam liderados por ele, afinal, era o mais velho, mais experiente, etc., etc. Excluindo a si próprio, defendia a igualdade dentre todos os demais. Ele por tudo o que representava, era um igual, mais igual do que os outros, indiscutivelmente... À formação do Estado necessário eleições dos iguais via voto sufragado em urna, com a plebe sendo votante e tais iguais votando e sendo votados. As premissas básicas do Estado seriam a ordem, o progresso na defesa do rato, pelo povo. Ao líder máximo, o comando máximo, aos iguais votados um bocado de poder suficiente para o locupletamento justo e, vez que outra, muito raramente é verdade e nunca no mais igual dos iguais, as moscas poderiam ser substituídas.

Alguns visando ingresso e aptidão para ser um dos iguais votados, aplaudiram a ideia, outros, poucos como sempre nestes casos, já se sentido na condição de votante e executor na prática da defesa contra o gato, vaiaram estrepitosamente; a maioria dos participantes da Assembleia, como sempre, aliás, quedou-se silenciosa...

Nesse pequeno intervalo, um outro rato levantou-se e berrou seu ponto de vista que consistia, basicamente, em comportarem-se os ratos, como o gato e o mais forte, ágil, hábil e inteligente dentre eles, seria eleito o líder, o mais igual, chamassem-no como o chamassem e ocuparia o posto maior de comandante, na defesa do rato, e sob tal liderança todos marchariam contra o Gato, dominando-o, expulsando-o, devorando-o até..

Em cima da fala deste, outro rato anunciou aos berros sua contrariedade pelo que chamou de imposição natural, isto é, a igualdade pretendida não existia quer com relação ao gato, quer com relação aos ratos, entre si; que tal trololó havia varado séculos e custado muito sangue à humanidade ou de todos os insensatos que acreditaram naquela balela. A única igualdade concebível e factível de existir entre os homens derivava, sempre de suas próprias desigualdade. Tentando ser mais claro, vociferou: Nos somos iguais em nossas desigualdades, somente e em tal paradoxo está contida toda a verdade que os enganadores dos sonhos e ingenuidade alheia prezam excluir. A igualdade pretendida era tão fictícia quanto fictícia seria a defesa contra o gato. Defendeu com ardor que era preciso criar-se algo mais concreto que fosse superior a qualquer rato individualmente e a soma de todos os ratos, enfim um consenso mundial entre todos os ratos para marcharem contra os gatos, capaz de enfrentá-los obrigando-os a aceitar a convivência pacífica ou então destruí-los, invertendo a história... Da mesma forma como antes o fizera o velho rato que primeiro falara, este habilmente colocou-se no ponto mais alto da pirâmide social que tentara erigir...

Como das vezes anteriores à reação imediata elevou-se o tom do vozerio infernal, prós e contra vociferavam, pela igualdade, pela liderança, outros ainda, pela força, enfim a assembleia era o caos verdadeiro, a Babel dos ratos.

Por sobre o som da algaravia, ouviu-se o alerta voz de um rato gozador:

“Aí vem o Gato!”

Foi uma confusão geral, gritos, atropelos, fugas, desmaios, prantos, uma tristeza que prostrou até o próprio presidente da assembleia, o Rato Filósofo, que constatou tristemente que a igualdade apenas se cristalizara no medo, concluindo fatalisticamente que para cada milhão ou bilhão de ratos, bastava um gato apenas; pior ainda, a simples lembrança ou menção do nome dele, bastava...

Dissipada a Assembleia pelo corre-corre das aflições e quimeras, o Rato Filósofo que, pasmo, a tudo assistira e se quedara perdido em divagações ficando absorto, solitário, inerte, bem mais fraco do que antes sabia que o era, permaneceu de olhos fechados...

Enquanto isso, o gato que enfim chegara de improviso e faminto, devorou o Rato Filósofo e concluiu, com sólidas razões que os ratos, filósofos ou não eram iguais no sabor pelo menos...
E para o Gato, isso era tudo quanto bastava saber...

domingo, 13 de janeiro de 2013

Pequenas histórias de um moleque qualquer(Continhos)


Pequenas histórias de um moleque qualquer

Nascera nos confins do Brasil, lá onde todos os dias se faz necessário realçar sua brasilidade, porquanto, de outro lado, está a Argentina, país vizinho, com sua maioria de habitantes (entre aqueles que o menino conheceu e conviveu) pretensiosamente imponentes, inflamados, passionais e eternamente grávidos de tangos e tragédias. Enquanto feto lutara contra e sobrevivera, à tentativa de aborto que, parcialmente mal sucedida, lhe obrigara a saltar fora do ventre materno nem bem chegado o oitavo mês de gravidez da mãe. Foram sete meses e alguns dias, depois de ter sido segurado no ventre materno, desde os cinco meses de gestação quando rompera a membrana ou copo do útero, por algodão e gazes trocados quase que diariamente. Finalmente, não teve mais jeito ou maneira de o segurarem no ventre materno e definitivamente e sem aviso ou alarme irrompeu para a vida externa quase matando a mãe, quase se matando...

A consequência disso é que nasceu tão fraco que de imediato foi considerado em estado terminal, vaticinando-se que não duraria mais do algumas horas, por isso foi deixado de lado, com as atenções e esforços de todos, neste início, voltadas  para salvar sua mãe. Ultrapassou tal indiferença e, bem após, iniciou a receber as atenções devidas. Para se ter uma remota ideia de sua fraqueza, dois dias depois de seu nascimento, descobriram que ele não tinha forças para sugar o seio da mãe; esta, por sua vez, não tinha senão um arremedo de leite a oferecer, envenenado e inservível. Recorrida a vizinhança toda, sobraram peitos e mães para amamentá-lo, ao início através de conta-gotas até que aquele projeto de gente viesse a ter forças para sugar o leite diretamente na fonte de plantão.

Aos quatro anos foi acometido de doença renal, sendo comprometidos e inflamados ambos os rins. Seis meses deitado em uma mesma posição, pois que qualquer movimento desfolhava-se em dores atrozes, como se facas afiadas estivessem sendo enfiadas em sua carne.

Desse limão, decorreu a limonada que o equiparia para a vida. Enquanto ali, inerte na cama, com todas as dores se reafirmando a cada gesto seu, sua avó manteve-se, durante todo o tempo de duração da doença que o acometia, à sua cabeceira e, com habilidade e paciência, o fez usar a única parte que não lhe doía, e que permanecia, até ali, escondida ou, no mínimo, intacta, sem uso: a imaginação plena e imensurável que toda criança possui. Fazendo-o viajar com tais asas indestrutíveis, por caminhos insondáveis, desde os contos de fadas até a utopia sem fim, o ensinou a, primeiro, identificar as letras, consoantes e vogais dançando ao som do inimaginável, depois juntá-las (ou acolherá-las como dizia) tornando-as equipes aptas a expressar, com a volúpia dos iniciados, desde a gráfica até a imaterialidade do sonho, tudo o que se passava na mente sadia e esperta daquele menino. Os ensinamentos consistiam em focar na imaginação do guri elementos da natureza como a lua e a partir disso registrar as letras que por certo continuam formando. Assim, o "c" era o que a lua nova escrevia no céu, o "d", a lua minguante, o "o", a lua cheia ou o sol, o "a" era uma porta de "carpa" (barraca de "camping", triangular) com um moirão (o que sustenta o alambrado) horizontalmente atravessado no meio, etc., etc... E, muito importante, enquanto isso a dor em seus rins era atenuada, afastada,  trocada pelo sorriso, pela alegria das descobertas e encontros. Enfim o guri voltava à vida, a cor ao seu rosto pálido e não havia, então, distâncias ou lamentos que não pudessem ser vencidos.

Jamais esqueceria o que aprendeu nesse curto tempo de dores e descobertas, pelas mãos e ensinamentos que lhe foram passados pela avó. Com quatro anos aprendera a ler e também o significado da dor e da doença. E desde o dia em que, mambembe e trôpego, agarrando-se à guarda de sua cama que estava encostada na parede e recostando seu magérrimo corpo às paredes (no ponto de junção de uma e outra, onde se forma um ângulo reto), com tudo rodando feito um redemoinho, descobriu que nada é mais importante do que estar em pé, sem sentir dor alguma, sadio, o quanto de doce e maravilhoso detém o milagre chamado vida. Entendeu então e continuou acreditando pelo resto de sua existência que, como todos os demais, não nascera para sofrer! Que cada um recebe, gratuitamente, o sopro de vida que os mantém plenos na graça. Que cada ser vivo é um vencedor. Cada um, sem saber, participa de uma disputa inimaginável e a vence! Por isso é vencedor desde sempre! Todos somos! Antes, durante e, quem sabe, depois dessa viagem fantástica chamada vida onde, por nossas ações e virtudes, erros e acertos, plantamos para colher no infinito de um amanhã que, um dia, haverá de chegar, seja neste ou no outro lado...

A disputa, no caso do ser humano, é aquela em que milhões de espermatozoides são lançados no fundo de uma mulher e, somente um, aquele que carrega em si as características que definem o embrião que afinal resulta em uma pessoa, fecunda o óvulo. Segundo cientistas, disso participam, em média e salvo melhor juízo, cento e vinte milhões e só um consegue chegar à frente dos demais, vencendo os outros. Fosse qualquer outro espermatozoide a fecundar o óvulo, ambos compondo com seus genes o embrião do que resulta o feto e finalmente na pessoa que somos, o milagre e graça da vida se faria e resultaria em qualquer outra pessoa, menos tu, eu ou nós.

Nenhuma vitória supera esta. A vida quase ou totalmente de graça. Este é o primeiro dentre tantos outros milagres da vida que temos e que pululam cotidiana e rotineiramente em nós, no nosso ser, como um todo, processando-se uma quantidade enorme de fenômenos que não dominamos e muitas vezes nem sabemos existentes, mas que mantém o sopro de vida que recebemos e devemos cultivar.

Por isso o ser humano nasce para ser feliz. A felicidade está nele que muitas vezes se equivoca e a busca fora de si. Cada pessoa é um universo e todos, paradoxalmente, são iguais em suas desigualdades. Em algum ponto, “A” é melhor ou pior que “B” que, por sua vez, em outro será melhor ou pior que “A” e assim, sucessivamente, ocorre com todos... Reconhecer tanto é um dos caminhos para alcançar a harmonia interior que logo adiante resulta na adequação do “eu” com o “nós”, busca que todos devem realizar, afirmando-se como ser humano útil, iluminado. Muitos se confundem e, ao contrário de projetar à estrada a luz que detém, mostrando o caminho, preferem focá-la nos olhos dos outros, cegando-os.

Uma pessoa feliz, no mínimo é um problema a menos neste mundo conturbado por nossa própria culpa. Uma pessoa feliz não espera que outros façam por ela, ao contrário, busca fazer pelos outros; aprende que o mesmo esforço negativo que traz a inveja em seu bojo, pode e deve ser transformado, positivamente, em admiração e aplauso. Uma pessoa feliz, em si se basta, plena de amor e fraternidade e logo descobre que tais sentimentos somente se realizam e se multiplicam infinitamente, em todo seu esplendor e eficácia, quando ofertados aos outros. Guardados, minguam, fenecem; ofertados sem limites, vicejam e se reproduzem em quantidade e velocidade ilimitadas...

Saliente-se que o valor de uma pessoa não está condicionado, para maior ou menor, pelo quantum que materialmente detém em contas bancárias, propriedades ou finitos bens que possua. Sob o prisma de olhos argentários é certo que são importantes, pretensiosamente definitivos, todavia a moeda do outro lado (se é que existe um outro lado, a grande maioria da humanidade assim acredita) não é o vil metal, lá a moeda é traduzida pelo que realmente deixamos à posteridade, nas ações desenvolvidas pela alma e coração sem máculas, movidas apenas pelo simples prazer, o maior deles creiam, de servir, de se dar sem pretender troca ou vantagens. A dádiva provoca maior regozijo em quem a oferta do que naquela pessoa que a recebe; isso, todos os que assim agiram, bem o sabem e consagram.

-         II –

Voltemos ao moleque, após o desandar dessas boas intenções. Todas as manhãs era encarregado de comprar carne no açougue perto de sua casa. À frente dele, açougue, sempre se reuniam diversos outros guris, brincando com  o brinquedo da vez, da temporada que naquele tempo da pré-história da eletrônica existiam. Sobre eles falaremos no próximo capítulo, adiante.

            Pois bem , o “seu” Souza, açougueiro dono do açougue era surdo como uma porta e como a grande maioria dos portadores de deficiência auditiva, não gostava que gritassem para ele, mesmo se, e era quase sempre, seu estabelecimento estivesse “apinhado” de gente com o barulho decorrente disso tudo. Um dia o moleque que nem gostava de acordar cedo, foi chamado no raiar das 08:00 horas para ir ao açougue comprar um quilo de carne de ovelha (ou carneiro, como chamam em outros lugares); desde às 07:00 horas, seu quarto a mãe do guri iniciou a chamada, gritando: “fulaninho, te levanta que tens de ir ao açougue comprar carne e depois ir ao "tambo” buscar o leite p’rá mamadeira da beltraninha...”; o guri, disse que já estava se levantando p’rá ir... e foi ficando, “queimando pestana”, como se dizia quando a pessoa “cochilava”; grito daqui, cochilo dali, até que a mãe decidida avisou “eu vou até aí se tu não te levantar agora e não vai ser bom p’rá ti...”. o guri, então, arrastando com as mãos as alpargatas (o calçado que usava, confeccionado com lona e sola de cordas)  no assoalho, disse que já estava em pé e voltou ao preguiçoso cochilo de antes... dele saindo debaixo do mau tempo, com sua mãe portando e lhe batendo com um relho de couro trançado, o temido trançado de oito (oito tiras de couro cru, em forma de trança que, no galpão era banhado de calor do fogo e do sol, também da umidade da chuva, geada, orvalho e tudo mais que o deixava duro e dolorido). Em verdade se acordou às portas do açougue que, como sempre, tinha uma multidão se espremendo diante da balança de dois pratos onde se pesava a carne e um só dedo do açougueiro fazia uma diferença que sempre o favorecia. Esgueirando-se por entre aquela multidão, o moleque se postou bem a frente da balança  e sendo pequeno e franzino como era, passou fácil por toda àquela gente, porém sua cabeça sequer alcançava o balcão, parecendo-lhe o açougueiro muito maior do que era, um quase gigante (mais tarde isso lhe daria condições de entender que depende muito mais do ângulo com que se olha para se ter consciência da grandeza de qualquer problema, mas isso é outra história). E quando o açougueiro trouxe um "naco" de carne, atendendo um freguês, o moleque, gritou: “seu" Souza, me dá um quilo de carne de ovelha”; de pronto, “seu” Souza, respondeu: “Quem gritar vai ser o último a ser atendido!”. Entendendo o aviso como um desafio, o moleque não desanimou e gritou a manhã inteira para “seu" Souza: "me dá um quilo de carne de ovelha”, tendo, naquele dia, sido o último a ser atendido, como o açougueiro avisara.

No outro dia, após mais uma novela para se levantar para comprar carne e, após deixá-la em casa, ir ao "tambo" para comprar leite à mamadeira da beltraninha, novela essa que não chegou a via de fatos, de novo, por que atendera o ultimato da mãe “eu vou até aí se tu não levantar agora e não vai ser bom p’rá ti!” chegou à porta do açougue, sempre apinhado de gente e berrou “seu" Souza, me dá um quilo de carne de ovelha!”. E o açougueiro, que o castigara no dia anterior atendendo-o por último (aparentemente o castigara porque, devido a demora e a partir de então, acabou não tendo de ir ao "tambo" de leite, substituído por outro irmão que foi encarregado de fazê-lo, entendendo sua mãe que tal demora justificava-se pelo fato do açougue estar sempre cheio de gente) gritou para que todos ouvissem “Vou atender este demônio para me livrar dele”. A partir desse dia, ao moleque bastava gritar para ser imediatamente atendido e "seu" Souza se tornar menos ranzinza para com os outros fregueses, livrando-se do "demônio" que para ele era o guri...

Em casa ninguém sabia disso, e o moleque, atendido de imediato pelo açougueiro, todos os dias, ficava brincando na frente do açougue até perto do meio-dia, dando desculpa à mãe pela demora, dizendo que o açougue estava, como sempre, cheio de gente, tinha que esperar para ser atendido, etc., etc... Ao comprar a carne, e nem sempre era um quilo, às vezes eram 900 gramas não pelo dedo do açougueiro ou porque o dinheiro era "curto" e não daria para comprar um quilo de carne, mas sim porque o moleque assim pedia, para com o troco comprar bugigangas (bolitas, papel para pandorga também conhecida como pipa ou papagaio, etc.), acondicionava a mesma em uma espécie de gancho de ferro para levá-la para casa; prendia o gancho, em forma de “s”, na cintura e participava dos brinquedos. Um dia, na temporada dos jogos de bolitas, estava ele agachado para realizar a jogada, quando um cusco, guaipeca qualquer, assim eram chamados os cachorros vira-latas, os sem dono, de rua enfim, abocanhou a carne e saiu em disparada pela rua de chão batido onde se localizava o açougue (como também era de chão batido a rua onde morava o moleque), correndo campo à fora com o moleque em seu encalço; no meio do descambado, perto de uma sanga, finalmente o vira-lata largou a carne e o moleque conseguiu recuperá-la, toda suja de pó, grama e outros aparatos da rua e campo por onde ela havia sido arrastada. Com a carne na mão foi até a sanga lavando a carne, fazendo o melhor que podia. Nessa altura se esquecera do “bolão” da “joga” que ficara lá no brinquedo, mais preocupado, preocupadíssimo até, de que sua mão não fosse notar na carne de ovelha, todo o estrago que o guaipeca provocara. Que nada, ao pegar a carne a mãe logo constatou que alguma coisa acontecera, porque ainda restara latifúndios de sujeira na carne. Nem precisa dizer que o velho relho trançado de oito, iria cantar mais uma vez, se a mãe conseguisse pegar o moleque, se conseguisse pegar o moleque fujão...

                                                           - III -

Os brinquedos de então, ditos da pré-história dos eletrônicos, eram vários, a maioria artesanais, alguns mais modernosos de “corda”, uma espécie de mola enrodilhada e que se desprendia lentamente dando movimento ao brinquedo, que eram muito caro para os padrões e nível da família do moleque. Certamente quem viveu sua infância nessa época, lembra do bilboque, do ioio, dos jogos de futebol nos campos e campinhos  da vida (o moleque, particularmente lembra de sua Uruguaiana, do campinho da Antena da Radio Charrua - residência de seu  grande e estimado amigo José Nilto Mutti Guirland, do "Campo do Duque", do "Municipal", do "Bangu", do "Esperança", do "Bonsucesso", do "Ipiranga", do "Universal no Prado das Bicicletas", dos "Colégios Dom Hermeto, União e Sant'Ana" e tantos outros... Dos banhos  e pescarias em açudes, sangas, arroios, Salso, no Riacho e no Rio Uruguai... 
A maioria dos brinquedos que o moleque teve foram de fabricação própria, como por exemplo o trator, que era feito de um carretel de linha vazio, com suas bordas falquejadas por faca, em intervalos regulares, para aderência, um toco de vela colocado junto a uma das extremidades do carretel, dois palitos de fósforos – um em cada extremidade do carretel, e um elástico que preso a um dos palitos, atravessando o carretel e o toco de vela ficava fixado ao outro palito, como mostra a ilustração. Para fazer “andar” esse trator, bastava girar várias vezes e em só sentido o palito colocado junto ao toco de vela depois descansá-lo em qualquer superfície, e lá ia o trator em passo de tartaruga, enquanto se desenrolava o elástico...

 Também tinha a pandorga ou pipa ou papagaio, da mais simples que era a quadrada com apenas duas varetas cruzadas em forma de “x”, até as mais “sofisticadas” como a “caixa” que com seu formato, corpo retangular e quatro aletas, se assemelhava a uma nave espacial, pelo menos como se pretendia fossem as naves espaciais, então; ou o “barco”, de três varetas, uma colocada no sentido horizontal e duas verticais dispostas na mesma distância entre uma e outra e a extremidades da vareta horizontal; ou a “bomba” de formato redondo, com a variante denominada “bomba estrela”, ambas de seis varetas de um mesmo tamanho, esta porém com três das varetas, alternadas, falquejadas em altura proporcional para a composição e formato de uma estrela de seis pontas, ou o “boneco”, de várias varetas, diferentes tamanhos, pois que o corpo exigia duas compridas para nele se juntar as pernas e o pescoço, sendo que numa das varetas horizontais se esculpia os braços com os cotovelos à amostra descansando na cintura n'outra vareta horizontal e a cabeça com cinco varetinhas no formato redondo.



 pipa-pandorgas-e-papagaios 

 pandorgas-papagaios-e-pipas

Ainda tinha o “marimbondo” que era um "barrilete" – este formado por três varetas, duas diagonais e uma horizontal, por isso dito simples – com uma vareta fininha, normalmente uma lasca de taquara, vergada, em curva, colocada na parte superior da pandorga, nas extremidades das varetas diagonais, sendo que nessa vareta fininha era colado o papel, deixando livre a parte do barbante que unia as duas diagonais, onde se colava um papel dobrado em forma de meia-lua que, pela ação do vento “roncava” ou vibrava como se fosse um marimbondo. Papel, grude (feito com farinha de trigo e água quente) ou cola e barbante eram os materiais utilizados à confecção de uma pandorga, que   as ilustrações mostram. Não dá para esquecer, porque importantíssimo e o que realmente definia se a pandorga ia ou não voar com precisão ou sutileza, a função dos tirantes, nada mais do que outros barbantes que formavam um triângulo invertido, com uma ponta no meio onde se juntavam as varetas e as outras duas nas extremidades superiores das varetas diagonais (no caso do “boneco”, por exemplo, nos “ombros” deste, com o centro onde se localizava o “umbigo”). Na parte inferior, de quase todas as pandorgas (exceto algumas como por exemplo a “caixa”, a “bomba”, esta uma pandorga redonda com franjas de papel do tamanho de seu raio – se menor entrava na vala comum das demais) um barbante unia as duas extremidades das varetas diagonais, formando um triângulo igual ao da extremidade superior, para nele ser fixada a cola ou cauda que dava equilíbrio no ar à pandorga.


(A primeira pipa do mundo  surgiu na China, há cerca de 200 anos a.C. criada por um general chamado Han Hsin, com o objetivo de medir a distância de um túnel a ser escavado no castelo imperial. Com o passar do tempo estas pipas logo que sugiram eram utilizadas para fins militares, tornaram-se uma arte popular naquele pais. No Brasil, estima-se que as pipas tenham chegado pelas mãos dos portugueses na época da colonização. Hoje, elas são conhecidas por diversos nomes, dependendo da região do País: arraia (Bahia), pipa (Rio de Janeiro), papagaio e pipa (São Paulo), pandorga (Paraná, Rio Grande do Sul e Santa Catarina), quadrado, tapioca, balde (Nordeste) e Maranhão.) - (Extraído do site denominado " Brasil Cultura - O portal da cultura brasileira").

Outros tantos brinquedos eram também de fabricação própria, como os “carros” ou automóveis feitos a partir de latas de azeite, com rodas de latas, tudo recortado às escondidas, cegando a tesoura da mãe. Também de ossos, até aqueles roídos por cachorro, logo se montava uma fazenda de mentirinha, com gado descarnados e cavalos baios, zainos, cuscos, ovelhas e sabe-se lá quanto a imaginação alcançava
.

Mas, como antes se anunciara, na frente do açougue do “seu" Moura, os brinquedos da temporada eram o pião e a bolita ou bolinha de vidro. Embora a pandorga fosse também um brinquedo de temporada, dos ventos, da primavera, não era na frente do açougue que fazia sucesso, mais para o campo livre e tantos existiam naquele tempo.


O pião era uma espécie de madeira torneada, como se fosse uma pêra, tendo em uma das pontas, a mais aguda, um terminal saliente de aço ou arame afiado e, na outra, arredondada (bem assim para formar uma espécie de triângulo e poder girar – vide gravura) com uma saliência por onde se prendia o barbante, em forma de presilha sem nó, que reta e retesada ia até a ponta de aço e dela vinha subindo, fortemente enrodilhada em redor do artefato de forma que, lançado o pião à frente e para baixo começava este a girar velozmente jogando-se para atingir outro pião, realizando o verdadeiro objetivo do jogo de pião que era atingir os outros com a ponta de aço, ou “pua” como a chamavam, por isso, a contagem do jogo se referia a “puaços” vencendo aquele que mais atingisse, dessa forma os outros. Dava cada peleia, bonita de ver e sempre tinha o mais hábil, nem sempre o mesmo é verdade e o grande orgulho era mostrar um pião velho, usado em muitas liças, sem marcas de puaços de outros piões, isso trazia o respeito dos desafiantes. Ao contrário, um pião novo, era a bola da vez para todos, cada um querendo “inaugurar” o dito, para depois se vangloriar do feito.






Normalmente do verão até o final do inverno, se mesclando com a do pião, chegava a temporada da bolinha de vidro, denominada então “bolita”, cujo jogo se processa de diversas maneiras, sendo as mais difundidas, então, a do “bôco” ou “bouco” e a do “triângulo”. O jogo do “bôco”, consistia em cavar um pequeno buraco no chão, que seria elevado a categoria de “bôco” e que era o foco primordial de todas as bolinhas pois que, aquela que nele ingressasse adquiria a licença de “matar” as outras. A uma distância de cinco ou dez passos do “bôco”, no máximo, se riscava uma linha reta no chão, chamada “raia” e a partir da lateral do “bôco” todos lançavam suas bolinhas à “raia” sendo que aquela que mais desta se aproximasse seria a primeira a ser lançada da “raia” ao “bôco”, praticamente assegurando-se da condição mais importante que era a de ingressar no “bôco” e a partir disso poder “matar” as demais bolinhas pois que, antes disso, se tocasse em outra bolinha não “matava”, sim dava “cátis”, isto é, sequência de batidas de no máximo três vezes que permitia ao jogador continuar jogando seguindo a ordem e direção do “bôco” (quanto mais próximo, mais fácil de acertar na tentativa de nele ingressar). A bolinha da “joga” de cada um, era chamada bolão e escolhida entre várias outras como “matadeira”. O jogo do triângulo, se estabelecia quando riscado um triângulo no chão, ali se colocava quantas bolinhas correspondia a aposta combinada pelos jogadores, uma, duas três ou mais de cada um deles; adiante se riscava no sentido horizontal para formar a “raia”, a bolita que chegasse mais próxima da “raia” era a primeira que iria se jogada em direção ao triângulo. O jogo propriamente dito, consistia em arremessar a bolita contra aquelas que estavam no triângulo, para tirá-las dali, cada uma ou várias retiradas passavam a ser do jogador que, enquanto tinha sucesso na empreitada continuava dando sequência a sua vez de jogar; todavia, acaso a bolita “bolão”, ao tentar retirar a bolita da aposta colocada no triângulo e nele ficasse, o jogador ficava afastado daquele jogo e perdia seu “bolão” para aquele que o retirasse do triângulo... sem choro, era uma derrota e tanto, acachapante...

O jogo de bolitas é jogado com as mãos, mais propriamente com os dedos polegar, indicador e médio, sendo que a bolita é segurada entre estes, na falangeta do polegar que a impulsiona, na ponta do indicador que a direciona e na extensão quase total do médio, dobrado, que a equilibra (embora inábeis usassem ou melhor gastassem a unha do polegar para impulsioná-la).


Ah, e tinha o melhor de todos os brinquedos, para o moleque e seu inseparável amigo Guirland, o jogo de botões; ambos tinham times diferentes para os quais torciam: o time de botão do moleque era a S. E. Palmeiras (do Julinho, Vavá, Zequinha, Chinesinho, Rodrigues, Romero, Humberto, Ademir da Guia, Dudu, Waldemar Carabina, Waldemar Fiúme, Djalma Santos, etc.,), a Academia do Parque, maior rival então do Santos F.C, do Guirland, o Peixe do Alçapão da Vila e do  incomparável Pelé (Edson Arantes do Nascimento) o maior e melhor jogador de futebol de todos os tempos (Dorval, Melgálvio, Coutinho, Pepe, Pagão, Laércio e Gilmar, Dalmo, Calvet, Mauro, Formiga, Zito, etc). Vários outros guris tinham times como a dupla Gre-Nal, Flamengo, Vasco da Gama, Fluminense, Botafogo, Corinthians, Portuguesa de Desportos, São Paulo, América do Rio, Bangu, etc., realizando-se grandes campeonatos e torneios entre todos os participantes e, por incrível que pareça, na sala que ficava ao pé da antena retransmissora e onde estava instalado um aparelho que o zeloso técnico ou engenheiro de som da Rádio Charrua, pai do Guirland, "seu" Antônio Guirland, chamava de "Controle" ou coisa que o valha, sendo essencial para manter a emissora no ar (comprovado pelo moleque que um dia experimentou desligar uma chave do "controle", momentaneamente "apagando" a rádio, "tirando-a do ar por alguns instantes" segundo o locutor que completou dizendo"... por falta de energia elétrica em nossa antena.". Para esclarecer, ainda, diga-se que tanto o moleque quanto Guirland e os outros, ainda que bairristas como todos os gaúchos (e até mais do que os outros, quem sabe)  tinham times de botões com nomes de clubes do centro do País, porquanto as emissoras paulistas e cariocas entravam melhor e eram melhores ouvidas ou sintonizadas em Uruguaiana do que as emissoras de Porto Alegre. Ainda assim quando o moleque e Guirland iniciaram nos jogos de futebol de mesa ou botões como queiram, os nomes de seus respectivos times, Internacional e Grêmio já estavam ocupados por outros piás jogadores, restando buscar fora do Estado os times para os quais, respectivamente, também torciam, Palmeiras e Santos. Ambos eram os grandes times de futebol de mesa, botões, de Uruguaiana e protagonizaram inúmeros embates assistidos por todos os demais moleques praticantes do esporte e brinquedo, eis que àqueles representavam o que tinha de melhor dentre todos os praticantes. O jogo de botão em si consistia em apenas um toque para cada lado sendo que o choque de um botão com outro, sem que a bola tivesse sido tocada, era considerado falta: a mão era quando o botão subia por cima da bola, sendo que a esta era um pequeno botão de camisa normalmente "surrupiado" da caixa de costuras da mãe; a bola era chutada à gol apenas quando estava no campo do adversário e mediante aviso de "vai a gol". O campo de jogo, consistia em uma folha de madeira ou mesa, com dimensões proporcionais às dimensões de um campo de futebol, com as mesmas marcações sendo que as regras variavam de cidade para cidade no sentido de quantos toques, quando e como se poderia mexer nos botões dispostos em campo, etc., todavia, basicamente eram respeitadas e seguidas regras gerais do futebol.


 IV  – Não foi só o “seu” Souza a “vítima” do demônio de guri, na palavra daquele. Muitos outros também o foram sendo que a grande maioria, por vontade própria desde que sabiam que o moleque não tinha papas na língua, que era ferina, solta de palavrões e desaforada. Sabiam que, quanto mais o provocavam, mais ele reagia e quase sempre de forma inusitada, desaforada, molecão sem fronteira, todavia, sem maldade, meramente um sapeca desrespeitoso e malandro.
        Um dia o moleque chegou no “bolicho” (como ele conhecia ou chamava o armazém ou venda) do “seu” Chico e observou que o velho e austero senhor, “seu” Chico, portava um grande relógio no pulso, Para o guri era um fato raro alguém ter um relógio, mais raro ainda, “de pulso”. A seu pedido e orgulhosamente, “seu” Chico mostrou o relógio dizendo ser um Omega legítimo, de “corda” de resistência quase eterna, relógio que marcava a hora certa com precisão suíça, não atrasava, nem adiantava, relógio de valor excepcional, muito superior aos “cebolões” (relógio ordinário) de pulso e de bolso que outros tinham... enfim, disse maravilhas, teceu loas, sobre o relógio, em inusitada e incomum verborragia, pelo menos para o moleque e partindo de quem partiu. Então, o guri, sem qualquer intenção que não a de saber o momento, perguntou que horas eram e o pobre do “seu” Chico, enrolou-se todo, ficou p’rá lá de mudo, enrubescido, meio gago, sem jeito, e não respondeu a pergunta. O moleque concluiu que o pobre velho não sabia “ver” as horas...
Narrou o que concluíra para todos os demais guris, seus conhecidos e pediu que, cada um, alternadamente, fosse perguntar as horas para o pobre do “seu” Chico” que logo, logo desconfiou de quem teria sido a ideia daquela conspiração armada e em andamento.

            Pois bem, ele pode não ter apreendido a “ver” as horas, porém deu uma belíssima e jamais esquecida lição ao moleque. Quando, no outro dia, este lhe perguntou as horas de novo, “seu” Chico, que havia girado o relógio no pulso em direção oposta a sua, quase o esfregou na “cara” do moleque, dizendo “te engana com teus próprios olhos!”... Acabou o insidioso movimento, desde então e nunca mais o guri viu o relógio voltado para o “seu” Chico.