Eram
por volta de 16 moleques brincando de “Padeirinho” naquela noite,
sempre ali, sob a luz do “foque”, única claridade vinda através
da lâmpada de não mais do que 100 watts que iluminava a esquina da
Sete (de Setembro) com a Vinte e Sete (de Outubro) emprestando brilho
ao letreiro pintado na cor vermelha que, em grandes letras,
identificava o bolicho (armazém) “Ferro Carril”, do Sargento
Camargo, depois herdado pelo Enio “Encrenca” e, bem depois
“tocado” pelo “Fulô”, ambos, somados a vários outros,
filhos e continuidade daquele, do Sargento. Aind sob o peso do luto
pelo falecimento de sua querida avó Nana, escancarado na camisa
preta que vestia, o Moleque participava da brincadeira que consistia
em vários personagens separados entre si por mais ou menos um metro
e distribuídos em forma de roda, com um deles, o “Padeirinho”,
no meio da roda, escolhendo um dos componentes desta, para o qual
perguntava “tem pão?”, enquanto isso, os demais eram obrigados a
trocar de lugar e, nesse troca-troca, sobrando um lugar o mesmo seria
ocupado pelo “Padeirinho” da vez desde que fosse suficientemente
rápido e aquele que ficara sem lugar na roda a partir daí era o
“Padeirinho”, até que...
A
brincadeira em si proporcionava muitos momentos hilários e
incontáveis confusões entre os participantes; ninguém queria ser o
“Padeirinho” e a cada pergunta deste (“Tem pão?”) todos se
movimentavam entre si, trocando de lugar, quase sempre, ocorrendo
congestionamentos diversos, quando vários se dirigiam ao mesmo tempo
para um único lugar, dando para imaginar e até ouvir os sons, ainda
agora, da algazarra desencadeada pela gurizada, toda balbúrdia e
algaravia daqueles folguedos...
Tudo
transcorria dentro dessa inesgotável energia destravada na
brincadeira quando surgiu um retardatário pretendendo dela
participar; a práxis era de que o retardatário ingressasse como
“Padeirinho” substituindo o da vez, enquanto que, para início, a
forma usual para a escolha do “Padeirinho” era aquela
corriqueira, a do “par ou ímpar”, jogo em que o moleque era um
péssimo praticante e por isso e quase sempre era o primeiro
“Padeirinho”.
Aranha,
o guri que chegara atrasado, quis burlar a regra e se posicionou
entre os Joãos Carlos, o Imbido e o Melena, que o expulsaram dali,
não sem antes Aranha, um gozador por excelência, enfiar as mãos no
traseiro de cada um, a direita no do Imbido e a esquerda no do
Melena; Imbido saiu em perseguição para dar uns peteleco no Aranha
que corria e gargalhava em volta da roda, Melena um tanto quanto
preguiçoso e mais belicoso, se agachara buscando munição achando
uma pedra e seguindo a trajetória em curva de Aranha, a arremessou
por sobre a roda para atingi-lo...
Neste
exato momento, postado em sentido diametralmente oposto a posição
onde se encontrava Melena, estava o Bia, irmão do Sérgio “Da
Porca”, guri alguns centímetros menor do que o Moleque e agora, na
roda, localizado ao lado deste, alheios aos acontecimentos
protagonizados pelos Joãos e Aranha, ao ouvirem o “Tem pão?” do
“Padeirinho” da vez, antecipadamente combinados, trocaram de
lugar... A troca foi fatal para o Moleque eis que a “viagem”
aérea da pedra jogada por Melena chegou a um destino imprevisto, a
órbita do olho direito do Moleque, provocando escoriações à
córnea, raspada, e abrindo dois cortes de meio a um centímetro, de
sentidos vertical um, à altura do supercílio, e horizontal o outro,
rente aos cílios inferiores... certamente o estrago não foi maior
graças a capacidade intuitiva que todos têm de automática e
involuntariamente fechar os olhos perante algo impreciso que ofereça
perigo iminente, um grande facho de luz dirigido de inopino aos olhos
mas e também, em decorrência da atuação dos músculos orbiculares
que, por contração, servem para fechar certos orifícios. Com o
sangue jorrando dos cortes, em fluxo continuado, parte dele inundou o
olho, contribuindo exponencialmente para dar ares de espanto e
tragédia a todos os guris, amigos do Moleque que o tentavam socorrer
e sem saberem o que de melhor fazer, alguns deles, correram à casa
do Moleque, há mais ou menos cem metros dali, para avisar aos
familiares enquanto outros, mais devagar, o acompanhavam no trajeto;
aquela procissão de olhos esbugalhados e sons inaudíveis (se
comparados à algaravia de antes) vestidos de ror, pensamentos de
terror, no meio do trajeto se encontrou com os desesperos da mãe do
Moleque, D. Mema como era conhecida por todos, da tia Dila, das Manas
Oca e Ezolda e do pai recém chegado da Barbearia, tendo o encontro
virado um insistente e desritmado fluxo de versões, ensaio de
falhas, inconstâncias de “não se saber o que fazer”, enfim
coisas e confusões que o sangue jorrado provoca. Um segundo depois
da estupefação porém o pai já tomava às rédeas da situação
decidindo levar o Moleque, imediatamente, ao único Oculista (hoje,
Oftalmologista, médico praticante da Oftalmologia) da cidade, o Dr.
Degrazzia; para tanto, foi em busca da bicicleta, sendo interrompido
pelo “Seu” Raul, marido da D. Anália, Carreiro de profissão que
já colocava os arreios na parelha de cavalos, o Solito e o Luar, que
levariam o Moleque ao médico oculista.
Enquanto
isso, o agressor acidental, João Carlos Melena, chorava, lamentava o
ocorrido, era amigo do Moleque e não tinha intenção de acertá-lo,
quisera acertar o Aranha, tampouco com a gravidade que, entendia,
tinha atingido o alvo involuntário. Acaso prestasse atenção, desde
cedo, aprenderia que são muitos os nefastos exemplos de boas
intenções resultando em graves problemas, independentes da vontade
do emissor e, quem sabe, haveria de fazer como tantos outros, cuidar
com responsabilidade para não cometer ações irresponsáveis,
todavia, criança ainda, quase certo, que pena, jamais aprenderia
isso.
O
Moleque, manheiro, sentia-se mal pelas dores advindas do impacto da
pedra sobre o globo ocular, os cortes na pele, o sangramento e até
mesmo pela até então desconhecida “raspada” na córnea, mais
ainda pelo martírio de estar agora, pensava, irremediavelmente
“torto”; para além da feiura que pensava possuir se somava
àquele defeito físico provocado pela pedrada, à falta do olho
direito; naquele momento, o Moleque se imaginava com um furo na
cavidade orbital e se acreditava um futuro pirata, sem olho de vidro
porque devia custar muito caro um olho de vidro mas, quem sabe e pelo
menos com um “tapa-olho” de couro de camurça ou pelica...
Cruzes!
Os
pais do Moleque, mais a tia Dila (que não o deixara em momento algum
desde o instante que tomara conhecimento do, digamos, acidente
sofrido) se acomodaram no Carro Rainha puxado pela parelha de cavalos
e dirigido pelo Seu Raul que, da boleia, tentava imprimir maior
velocidade àqueles e, ao mesmo tempo articulava palavras de conforto
e coragem ao Moleque que, como todos sabiam, infernizava sua vida
todos os dias, pegando “carona” na parte traseira do Carro,
alojando-se nas madeiras de sustentação das rodas e do corpo do
Carro como um todo posto que os unia por eixos horizontais,
perpendiculares entre si, também de madeira, à parte central e as
rodas da frente e traseira, observando-se que sendo estas de tamanho
quase o dobro das dianteiras e aquelas madeiras da sustentação
uniam as rodas pelo centro das mesmas por mais comprido que fosse o
relho (o relho do “Seu” Raul tinha mais de três metros) os
laçaços dados para afugentar o “carona” eram endereçados acima
das rodas, atingindo local bem superior onde o Moleque se alojava,
por isso não produzindo o efeito desejado, sequer molestando este
que, ao chegar onde pretendia, sempre agradecia ao irritado vizinho.
Parece
que todo mundo sabia onde morava o respeitado Dr. Degrazzia, pois foi
na sala da casa dele que foi atendido o paciente; com a paciência
própria de grandes profissionais no trato com crianças, o médico
limpou o ferimento passando algodão embebidos em água oxigenada e,
a seguir, com tintura de iodo e mercúrio e não vendo grande afronta
ao olho propriamente dito receitou para pingar no mesmo três ou
quatro gotas, quatro vezes ao dia, do famoso remédio de então, o
“Colírio Moura Brasil” e que cuidassem de o proteger com um
tapa-olho de algodão untado de soro fisiológico e, como medida
complementar, sendo possível, o uso de óculos escuros por alguns
dias. Tudo isso foi providenciado e o Moleque, pela primeira vez na
vida, usou óculos escuros, ainda que estes ocupassem quase a
totalidade do seu rosto, tão grandes que eram...
Tudo
passou e aquele acidente foi esquecido, vida que segue sem prejuízos
à visão do Moleque até que... Bem, chegada a época do alistamento
para o serviço obrigatório, o Moleque realizou sua inscrição e,
posteriormente, enfrentou os exames que o considerariam apto ou
inapto para “servir”, no caso, o exército. Chegado o dia dos
exames respectivos, segunda-feira, se apresentou com o joelho
esquerdo inchado devido a um pontapé recebido em jogo de futebol
praticado no domingo imediatamente anterior; era certo que pretendia
escapar do serviço militar, mas não tinha nenhuma desculpa para
tanto, todavia, imaginou iludir o médico examinador que batera no
músculo ou nervo situado na rótula do joelho direito tendo como
pronta resposta o movimento involuntário da perna suspensa e ao
tentar repetir o gesto no joelho esquerdo constatou o inchaço
perguntando a respeito tendo o Moleque declarado como possivelmente
proveniente da excessiva umidade daqueles recentes dias chuvosos já
que nesses dias o joelho sempre inchava. O Moleque observara que quem
saía pela porta direita da enfermaria iria “servir”, os da
esquerda, não, e ganhariam a Certidão de Reservista de 3ª
Categoria; diante do silêncio do médico examinador, pensou que a
“estória” que contara tinha “colado” ...nada disso, o médico
com um sádico sorriso escancarado no rosto, lhe comunicou que ele
iria “servir” e que saísse bem rápido e quietinho pela porta da
direita, senão o episódio poderia vir à tona logo adiante, no
primeiro dia do serviço militar e ele poderia iniciar pesando-lhe
uma punição que poderia ser detenção ou até, mais grave, uma
cadeia. Não houve exame ocular ou “de vista”.
Já
servindo, integrante do Quartel General da 2ª Divisão de Cavalaria,
então, no centro de Uruguaiana, Rs (prédio que ora abriga a
Fundação Cultural Uruguaianense Dr. Pedro Marini), lá no campus da
“linha de tiro”, fronteiro ao Cemitério Municipal, realizando o
primeiro treinamento e exercício de tiro, ao empunhar pela primeira
vez um “mosquetão” (fuzil antigo) e mirar o alvo a ser atingido
por tiros, no formato “agrupamento”, colocado a vinte ou trinta
metros a frente, o Moleque, destro, instruído a apertar arma contra
o corpo enquadrando-a no “cavado” (na altura da clavícula)
enfocou a “mosca” que cinco segundos depois desapareceu, o
próprio alvo como um todo também ia aos poucos desaparecendo
naquela névoa que embaçava seu olho direito; mais que depressa e
antes que tudo desaparecesse, puxou o gatilho conseguindo acertar o
alvo no alto, à direita, muito longe do centro, da mosca,
esquecendo-se da regra básica da instrução dada, afrouxara a
pressão do mosquetão contra o corpo tendo a coronha deslizado e
repousado na junção do ombro e do braço, direitos; o violento
“recuo”, cuja força e feitos seriam amenizados pelas corretas
posição da arma no “cavado” e intensa pressão causou muita dor
no Moleque cuja continuidade e persistência fez com que o mesmo
optasse por passar o mosquetão para o braço e mirar com o olho,
esquerdos. Os tiros dados pelo canhoto de ocasião foram excelentes a
ponto de transformar o soldado em atirador, tendo atirado com a
grande maioria das armas de então, por exemplo, mosquetão, revolver
(calibre 45), pistolas, metralhadoras com gatilhos automáticos e
carregadores que ficavam em brasa (pontos 35, 50, 51 e a metralhadora
Ina – portátil que apresentava incrível dificuldade para o
atirador obter rajadas de um ou de dois tiros) ...As histórias da
caserna, e são muitas, quem sabe, um dia serão contadas...
Foi
esse episódio ocorrido ao início da prestação do serviço militar
pelo Moleque que trouxe a verdade do real e efetivo “estrago”
daquela pedrada... sua córnea tinha sofrido um raspão que reduzira
sua capacidade e, quando fixado o olhar em algum ponto, ficava pleno
de névoas como um vidro embaçado por vapor... Soubesse dessa
deficiência quando do exame médico a que foi submetido o Moleque
não teria “servido”, o que teria sido uma enorme, grandiosa
lástima porquanto jamais saberia o quanto teria perdido à formação
do seu caráter, como homem e cidadão, o bem que lhe fizeram os
ensinamentos recebidos, a postura cívica, disciplina e tantos
valores e reconhecimentos pelo mérito, a igualdade, fraternidade
como artífices do salutar, atuante e benfazejo companheirismo.
A
parcial perda da visão do olho direito jamais pode ser reparada
embora tenha o Moleque tentado curá-la. A pedra que atingira o olho,
não rompera o tecido da córnea, todavia dele retirara uma parte
considerável a ponto de deixá-lo demasiadamente tênue, comparado a
uma folha de plástico que, esticada ao limite, jamais volta a
composição original, deixando marcas amarrotadas no tecido
correspondente. A falta de visão plena do olho direito do Moleque
nem dava para ser notada sendo compensada pela perfeita visão do
olho esquerdo, tampouco as cicatrizes dos cortes, cobertas pelo
supercílio, uma, e cílios, a outra... E, como disse o poeta, as
histórias do Moleque vêm e continuam vindo como tudo que passa!
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