segunda-feira, 13 de março de 2017

OUTRA DO MOLEQUE – O DIA QUE QUASE FUROU O OLHO


Eram por volta de 16 moleques brincando de “Padeirinho” naquela noite, sempre ali, sob a luz do “foque”, única claridade vinda através da lâmpada de não mais do que 100 watts que iluminava a esquina da Sete (de Setembro) com a Vinte e Sete (de Outubro) emprestando brilho ao letreiro pintado na cor vermelha que, em grandes letras, identificava o bolicho (armazém) “Ferro Carril”, do Sargento Camargo, depois herdado pelo Enio “Encrenca” e, bem depois “tocado” pelo “Fulô”, ambos, somados a vários outros, filhos e continuidade daquele, do Sargento. Aind sob o peso do luto pelo falecimento de sua querida avó Nana, escancarado na camisa preta que vestia, o Moleque participava da brincadeira que consistia em vários personagens separados entre si por mais ou menos um metro e distribuídos em forma de roda, com um deles, o “Padeirinho”, no meio da roda, escolhendo um dos componentes desta, para o qual perguntava “tem pão?”, enquanto isso, os demais eram obrigados a trocar de lugar e, nesse troca-troca, sobrando um lugar o mesmo seria ocupado pelo “Padeirinho” da vez desde que fosse suficientemente rápido e aquele que ficara sem lugar na roda a partir daí era o “Padeirinho”, até que...
A brincadeira em si proporcionava muitos momentos hilários e incontáveis confusões entre os participantes; ninguém queria ser o “Padeirinho” e a cada pergunta deste (“Tem pão?”) todos se movimentavam entre si, trocando de lugar, quase sempre, ocorrendo congestionamentos diversos, quando vários se dirigiam ao mesmo tempo para um único lugar, dando para imaginar e até ouvir os sons, ainda agora, da algazarra desencadeada pela gurizada, toda balbúrdia e algaravia daqueles folguedos...
Tudo transcorria dentro dessa inesgotável energia destravada na brincadeira quando surgiu um retardatário pretendendo dela participar; a práxis era de que o retardatário ingressasse como “Padeirinho” substituindo o da vez, enquanto que, para início, a forma usual para a escolha do “Padeirinho” era aquela corriqueira, a do “par ou ímpar”, jogo em que o moleque era um péssimo praticante e por isso e quase sempre era o primeiro “Padeirinho”.
Aranha, o guri que chegara atrasado, quis burlar a regra e se posicionou entre os Joãos Carlos, o Imbido e o Melena, que o expulsaram dali, não sem antes Aranha, um gozador por excelência, enfiar as mãos no traseiro de cada um, a direita no do Imbido e a esquerda no do Melena; Imbido saiu em perseguição para dar uns peteleco no Aranha que corria e gargalhava em volta da roda, Melena um tanto quanto preguiçoso e mais belicoso, se agachara buscando munição achando uma pedra e seguindo a trajetória em curva de Aranha, a arremessou por sobre a roda para atingi-lo...
Neste exato momento, postado em sentido diametralmente oposto a posição onde se encontrava Melena, estava o Bia, irmão do Sérgio “Da Porca”, guri alguns centímetros menor do que o Moleque e agora, na roda, localizado ao lado deste, alheios aos acontecimentos protagonizados pelos Joãos e Aranha, ao ouvirem o “Tem pão?” do “Padeirinho” da vez, antecipadamente combinados, trocaram de lugar... A troca foi fatal para o Moleque eis que a “viagem” aérea da pedra jogada por Melena chegou a um destino imprevisto, a órbita do olho direito do Moleque, provocando escoriações à córnea, raspada, e abrindo dois cortes de meio a um centímetro, de sentidos vertical um, à altura do supercílio, e horizontal o outro, rente aos cílios inferiores... certamente o estrago não foi maior graças a capacidade intuitiva que todos têm de automática e involuntariamente fechar os olhos perante algo impreciso que ofereça perigo iminente, um grande facho de luz dirigido de inopino aos olhos mas e também, em decorrência da atuação dos músculos orbiculares que, por contração, servem para fechar certos orifícios. Com o sangue jorrando dos cortes, em fluxo continuado, parte dele inundou o olho, contribuindo exponencialmente para dar ares de espanto e tragédia a todos os guris, amigos do Moleque que o tentavam socorrer e sem saberem o que de melhor fazer, alguns deles, correram à casa do Moleque, há mais ou menos cem metros dali, para avisar aos familiares enquanto outros, mais devagar, o acompanhavam no trajeto; aquela procissão de olhos esbugalhados e sons inaudíveis (se comparados à algaravia de antes) vestidos de ror, pensamentos de terror, no meio do trajeto se encontrou com os desesperos da mãe do Moleque, D. Mema como era conhecida por todos, da tia Dila, das Manas Oca e Ezolda e do pai recém chegado da Barbearia, tendo o encontro virado um insistente e desritmado fluxo de versões, ensaio de falhas, inconstâncias de “não se saber o que fazer”, enfim coisas e confusões que o sangue jorrado provoca. Um segundo depois da estupefação porém o pai já tomava às rédeas da situação decidindo levar o Moleque, imediatamente, ao único Oculista (hoje, Oftalmologista, médico praticante da Oftalmologia) da cidade, o Dr. Degrazzia; para tanto, foi em busca da bicicleta, sendo interrompido pelo “Seu” Raul, marido da D. Anália, Carreiro de profissão que já colocava os arreios na parelha de cavalos, o Solito e o Luar, que levariam o Moleque ao médico oculista.
Enquanto isso, o agressor acidental, João Carlos Melena, chorava, lamentava o ocorrido, era amigo do Moleque e não tinha intenção de acertá-lo, quisera acertar o Aranha, tampouco com a gravidade que, entendia, tinha atingido o alvo involuntário. Acaso prestasse atenção, desde cedo, aprenderia que são muitos os nefastos exemplos de boas intenções resultando em graves problemas, independentes da vontade do emissor e, quem sabe, haveria de fazer como tantos outros, cuidar com responsabilidade para não cometer ações irresponsáveis, todavia, criança ainda, quase certo, que pena, jamais aprenderia isso.
O Moleque, manheiro, sentia-se mal pelas dores advindas do impacto da pedra sobre o globo ocular, os cortes na pele, o sangramento e até mesmo pela até então desconhecida “raspada” na córnea, mais ainda pelo martírio de estar agora, pensava, irremediavelmente “torto”; para além da feiura que pensava possuir se somava àquele defeito físico provocado pela pedrada, à falta do olho direito; naquele momento, o Moleque se imaginava com um furo na cavidade orbital e se acreditava um futuro pirata, sem olho de vidro porque devia custar muito caro um olho de vidro mas, quem sabe e pelo menos com um “tapa-olho” de couro de camurça ou pelica... Cruzes!
Os pais do Moleque, mais a tia Dila (que não o deixara em momento algum desde o instante que tomara conhecimento do, digamos, acidente sofrido) se acomodaram no Carro Rainha puxado pela parelha de cavalos e dirigido pelo Seu Raul que, da boleia, tentava imprimir maior velocidade àqueles e, ao mesmo tempo articulava palavras de conforto e coragem ao Moleque que, como todos sabiam, infernizava sua vida todos os dias, pegando “carona” na parte traseira do Carro, alojando-se nas madeiras de sustentação das rodas e do corpo do Carro como um todo posto que os unia por eixos horizontais, perpendiculares entre si, também de madeira, à parte central e as rodas da frente e traseira, observando-se que sendo estas de tamanho quase o dobro das dianteiras e aquelas madeiras da sustentação uniam as rodas pelo centro das mesmas por mais comprido que fosse o relho (o relho do “Seu” Raul tinha mais de três metros) os laçaços dados para afugentar o “carona” eram endereçados acima das rodas, atingindo local bem superior onde o Moleque se alojava, por isso não produzindo o efeito desejado, sequer molestando este que, ao chegar onde pretendia, sempre agradecia ao irritado vizinho.
Parece que todo mundo sabia onde morava o respeitado Dr. Degrazzia, pois foi na sala da casa dele que foi atendido o paciente; com a paciência própria de grandes profissionais no trato com crianças, o médico limpou o ferimento passando algodão embebidos em água oxigenada e, a seguir, com tintura de iodo e mercúrio e não vendo grande afronta ao olho propriamente dito receitou para pingar no mesmo três ou quatro gotas, quatro vezes ao dia, do famoso remédio de então, o “Colírio Moura Brasil” e que cuidassem de o proteger com um tapa-olho de algodão untado de soro fisiológico e, como medida complementar, sendo possível, o uso de óculos escuros por alguns dias. Tudo isso foi providenciado e o Moleque, pela primeira vez na vida, usou óculos escuros, ainda que estes ocupassem quase a totalidade do seu rosto, tão grandes que eram...
Tudo passou e aquele acidente foi esquecido, vida que segue sem prejuízos à visão do Moleque até que... Bem, chegada a época do alistamento para o serviço obrigatório, o Moleque realizou sua inscrição e, posteriormente, enfrentou os exames que o considerariam apto ou inapto para “servir”, no caso, o exército. Chegado o dia dos exames respectivos, segunda-feira, se apresentou com o joelho esquerdo inchado devido a um pontapé recebido em jogo de futebol praticado no domingo imediatamente anterior; era certo que pretendia escapar do serviço militar, mas não tinha nenhuma desculpa para tanto, todavia, imaginou iludir o médico examinador que batera no músculo ou nervo situado na rótula do joelho direito tendo como pronta resposta o movimento involuntário da perna suspensa e ao tentar repetir o gesto no joelho esquerdo constatou o inchaço perguntando a respeito tendo o Moleque declarado como possivelmente proveniente da excessiva umidade daqueles recentes dias chuvosos já que nesses dias o joelho sempre inchava. O Moleque observara que quem saía pela porta direita da enfermaria iria “servir”, os da esquerda, não, e ganhariam a Certidão de Reservista de 3ª Categoria; diante do silêncio do médico examinador, pensou que a “estória” que contara tinha “colado” ...nada disso, o médico com um sádico sorriso escancarado no rosto, lhe comunicou que ele iria “servir” e que saísse bem rápido e quietinho pela porta da direita, senão o episódio poderia vir à tona logo adiante, no primeiro dia do serviço militar e ele poderia iniciar pesando-lhe uma punição que poderia ser detenção ou até, mais grave, uma cadeia. Não houve exame ocular ou “de vista”.
Já servindo, integrante do Quartel General da 2ª Divisão de Cavalaria, então, no centro de Uruguaiana, Rs (prédio que ora abriga a Fundação Cultural Uruguaianense Dr. Pedro Marini), lá no campus da “linha de tiro”, fronteiro ao Cemitério Municipal, realizando o primeiro treinamento e exercício de tiro, ao empunhar pela primeira vez um “mosquetão” (fuzil antigo) e mirar o alvo a ser atingido por tiros, no formato “agrupamento”, colocado a vinte ou trinta metros a frente, o Moleque, destro, instruído a apertar arma contra o corpo enquadrando-a no “cavado” (na altura da clavícula) enfocou a “mosca” que cinco segundos depois desapareceu, o próprio alvo como um todo também ia aos poucos desaparecendo naquela névoa que embaçava seu olho direito; mais que depressa e antes que tudo desaparecesse, puxou o gatilho conseguindo acertar o alvo no alto, à direita, muito longe do centro, da mosca, esquecendo-se da regra básica da instrução dada, afrouxara a pressão do mosquetão contra o corpo tendo a coronha deslizado e repousado na junção do ombro e do braço, direitos; o violento “recuo”, cuja força e feitos seriam amenizados pelas corretas posição da arma no “cavado” e intensa pressão causou muita dor no Moleque cuja continuidade e persistência fez com que o mesmo optasse por passar o mosquetão para o braço e mirar com o olho, esquerdos. Os tiros dados pelo canhoto de ocasião foram excelentes a ponto de transformar o soldado em atirador, tendo atirado com a grande maioria das armas de então, por exemplo, mosquetão, revolver (calibre 45), pistolas, metralhadoras com gatilhos automáticos e carregadores que ficavam em brasa (pontos 35, 50, 51 e a metralhadora Ina – portátil que apresentava incrível dificuldade para o atirador obter rajadas de um ou de dois tiros) ...As histórias da caserna, e são muitas, quem sabe, um dia serão contadas...
Foi esse episódio ocorrido ao início da prestação do serviço militar pelo Moleque que trouxe a verdade do real e efetivo “estrago” daquela pedrada... sua córnea tinha sofrido um raspão que reduzira sua capacidade e, quando fixado o olhar em algum ponto, ficava pleno de névoas como um vidro embaçado por vapor... Soubesse dessa deficiência quando do exame médico a que foi submetido o Moleque não teria “servido”, o que teria sido uma enorme, grandiosa lástima porquanto jamais saberia o quanto teria perdido à formação do seu caráter, como homem e cidadão, o bem que lhe fizeram os ensinamentos recebidos, a postura cívica, disciplina e tantos valores e reconhecimentos pelo mérito, a igualdade, fraternidade como artífices do salutar, atuante e benfazejo companheirismo.

A parcial perda da visão do olho direito jamais pode ser reparada embora tenha o Moleque tentado curá-la. A pedra que atingira o olho, não rompera o tecido da córnea, todavia dele retirara uma parte considerável a ponto de deixá-lo demasiadamente tênue, comparado a uma folha de plástico que, esticada ao limite, jamais volta a composição original, deixando marcas amarrotadas no tecido correspondente. A falta de visão plena do olho direito do Moleque nem dava para ser notada sendo compensada pela perfeita visão do olho esquerdo, tampouco as cicatrizes dos cortes, cobertas pelo supercílio, uma, e cílios, a outra... E, como disse o poeta, as histórias do Moleque vêm e continuam vindo como tudo que passa!

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