terça-feira, 16 de junho de 2020

OUTRA DO MOLEQUE - ACIDENTE DE FOGO E QUEIMADURA


O Moleque nem terminara de almoçar e estava sendo chamado na frente de sua casa pelos amigos Guirland e Luiz Chaves (Linguiça para os íntimos), este um bom centro-médio, àquele desnecessário dizer de suas decantadas qualidades futebolísticas difundidas, analisadas e discutidas em outros contos; ambos amigos e vizinhos do Moleque, além de companheiros de vários times das redondezas. Aquele dia teria um confronto com o time da “Baixadinha”, la no campo da “Fazendinha” de propriedade do goleiro aposentado, Garcia, que defendera o arco do Esporte Clube Ferro Carril e, agora, montava um time de guris para participar de diversos torneios futuros.

O Moleque quase engoliu o talher de tão apressado para finalizar a refeição e correu desasado ao quarto para pegar sua chuteira, meia, calção, e lá se foi chispando, porta afora, estancando diante da mãe que o fitava com um certo ar de repreensão ou preocupação por tudo aquilo, pela pressa... nada que não pudesse ser desfeito pelo beijo na face, dado, um tapinha no ombro, dado, um não demoro mãe, falado e para finalizar, vou jogar bola e já volto... E lá se foi o serelepe, mais serelepe ainda, correndo para encontrar os amigos que já estavam a uns cem metros de distância!

Foi um jogão e muito especial porque ao fim e ao cabo golearam o time da “Baixadinha” por quatro a um, tomando esse um porque o grande goleiro Deca, o Parrudo (que depois jogaria no Grêmio FBP.Alegrense), resolveu “aceitar” uma bola defensável justificando depois dizendo que o jogo estava tão enfadonho, a bola não chegava nele, seu fardamento nem precisava ser lavado e os companheiros nem se lembravam que ele estava lá, por isso, para aparecer, resolveu deixar aquela entrar. Parrudo além de grandão, era um “baita do gozador”, e tornou o “frango” em proposital, mera vingança contra os que não deixaram nunca o outro time sequer levar perigo a sua goleira e, ele, não aparecera positivamente, por isso...

No jogo propriamente dito, quem “comeu” a bola foi Luiz Chaves, jogando à lá Didi (Valdir Pereira), o Princípe Etíope, das Copas do Mundo de 1958 e 1962, quando nosso futebol brasileiro foi Bi-Campeão Mundial; Luiz naquele dia exagerou no direito de bater na bola “de trivela”, fazer lançamentos milimétricos de 50 jardas, desarmar sem falta todo e quem quisesse chegar perto do gol do Parrudo e, com tão esplendorosa atuação ofuscou até o grande nome do time, Guirland, referência técnica a que todos “batiam continência”. Foi pela exuberante atuação de Linguiça, reconhecida por todos que o Moleque o indicou, ao Parrudo. como culpado pelo seu “sofrimento” entendendo muito convincente e aceitável a estória que contara para se safar de ser chamado, pelo menos por aquele dia, de “frangueiro”, acrescido agora de “faroleiro”; foi uma gargalhada geral, com Parrudo gritando para o Moleque “só não te bato porque sou teu amigo!”o que não impediu continuasse a gozação.

Por volta das dezessetes horas o Moleque chega em casa encontrando sua mãe na tina, lavando roupas já tendo algumas estendidas no “quarador”; como lhe era comum fazê-lo, o Moleque chegou nela dando-lhe curto abraço seguido de um beijo, tendo ela perguntado se estava bem, como se divertira com os amigos, essas coisas e, ao final, se ele queria tomar café pois o Gelcy, compadre e cunhado dele esposo da Mana Oca, deixara bolachas quentinhas (espécie de biscoito que em Porto Alegre, chamam de “vovó sentada” de aproximadamente 40 ou 50 gramas) da cor de café com leite como ele gostava. Mas era claro que sim, ainda mais considerando o “bucho sem fundo” daquele glutão que recém se esfalfara correndo mais que a bola e tinha fome, uma enorme fome, sempre. Então vou preparar teu café, disse-lhe a mãe, deixando os afazeres para depois; o Moleque a impediu com outro abraço, não precisa, eu mesmo faço … pelo menos deixe-me aquecer a água e qualquer coisa que eu não saiba, pedirei ajuda. A mãe então aquiesceu, entretanto disse-lhe para ter cuidado ao acender a “espiriteira” (espécie de fogareiro rústico, de metal, com trempe de três ferros que formam a base de sustentação e equilíbrio do receptáculo - chaleira, panela, etc, do que será aquecido - cujo combustível é o álcool que fica em reservatório próprio, disposto logo abaixo da trempe).

Entre a tina e a cozinha, estava a irmã caçula do Moleque, Edna Roselaine, que o Moleque apelidara e chamava (como até hoje) de “Branca”, então com não mais do que três meses de vida, deitada em uma “cadeira preguiçosa” (ou espreguiçadeira, como queiram) com a frente voltada para a mãe e a traseira voltada à porta da cozinha; ao passar por ela o Moleque lhe deu um beijo na testa, sacudiu o chocalho fazendo barulho, tendo com isso chamado a atenção da Fátima Eliane, sua outra Mana e de um dos seus inúmeros irmãos de criação, o “Panchito” (o terceiro Francisco que sua mãe adotara de fato, o primeiro foi naturalmente apelidado Chico, o segundo ficara Francisco mesmo, para este aplicou-se a corruptela espanhola para distingui-lo dos demais) que estavam jogando “Cinco Marias” (*) no pátio, à sombra, sob a janela da cozinha. Fátima Eliane por volta dos seis anos de idade, ainda gostava de ouvir o Moleque cantar para ela, só para ela, “A volta do Boêmio”, de Adelino Moreira e Nelson Gonçalvez que, sabe-se lá o porque disso, a acalmava desde quando do tamanho da Branca, choramingava, chorona que era, só se calando quando o Moleque “assassinava” a citada música). Abra-se pequeno parênteses para dizer que os nomes de Fátima Eliane e Edna Roselaine (assim como o de Paulo Rubimar, um dos amados filhos da Mana Oca e do Gelcy) foram escolhidos pela Mana Ezolda.

Após dar um beijo na Mana Fátima Eliane, prometendo após o café cantar a música preferida e dizer, para ambos que um dia ia ensiná-los a jogar “Cinco Marias” pois para isso era portador de técnica muito apurada (mentiroso) o Moleque entrou na cozinha cantarolando em alto e bom som, claro, “A volta do Boêmio”; muniu-se de fósforo, garrafa, quase cheia, de um litro de álcool e lá foi “acender” a “espiriteira”; antes de fazê-lo, porém, com cuidado observou se tinha combustível no reservatório e acreditou ter visto que realmente no dito existia álcool por isso acendeu o fósforo e o aproximou da “boca” daquele. Surpreendentemente para si, não ocorreu qualquer combustão, visível pelo menos, e a “espiriteira” permaneceu quase um minuto sem dar sinal de vida, ou fogo, “apagada” e o fósforo antes aceso quase queimava os dedos do Moleque. Por conclusão óbvia, faltou álcool, por isso teria que “botar” o combustível no reservatório; o Moleque pegou a garrafa de álcool e pela mesma “boca” por onde colocara o fósforo aceso e que esperava tivesse saído a chama azulada do álcool em combustão, derramou o líquido empinando a garrafa.

Após esse ato, o que sucedeu é indizível. Ao primeiro fósforo aceso certamente e embora muito pouco, o álcool contido no reservatório inflamara e ficara escondido no fundo dele, imperceptível, à socapa, à espera do ato seguinte do incauto Moleque; não deu outra, este agindo em claro e insuportável, para si, erro de percepção, não atuou como lhe haviam ensinado, negligenciou ao não tomar mais precauções do que já tomara, afinal com fogo não se brinca; pelo menos deveria ter chamado a mãe muito mais apta a tratar do assunto do que ele... enfim tudo isso aportou em sua mente depois, bem depois do ocorrido...

Infelizmente não foi assim que agiu o imprudente Moleque, agora apavorado enquanto o fogo adentrara pela garrafa quase cheia de álcool agora em labaredas ardendo em suas mãos. O que fazer? o que fazer? Jogar fora antes que exploda em mim, pensou e agiu com rapidez indo à janela esquecido que sob ela brincavam Fátima Eliane e Panchito; dá meia volta, ainda com a garrafa soltando chamas coloridas cada vez maiores e flamejantes, alucinado e cada vez mais apavorado corre à porta e se pensando um grande arremessador de garrafas em chamas, calcula, mede a distância da cadeira preguiçosa onde dorme a Mana Edna Roselaine, a caçula Branca, olha para a tina à esquerda dela onde, de costas, sua mãe ainda lavava e, joga à direita e para o mais longe que pode aquela apavorante garrafa quase cheia de álcool que mesmo sem um pavio qualquer agora estava cheia de um fogo azulado que não era fátuo!

O arremesso da garrafa, bem distante de todos foi um sucesso, com a garrafa aterrissando bem distante da mãe e da Branca, feito um foguete mal sucedido da Nasa sem quebrar derramando-se em fogo azulado na área de aterrissagem, todavia, parte do seu conteúdo líquido na trajetória, em chamas, fizera um semi-círculo de fogo lindo de ver até que, como se fosse uma estrela cadente, sob os efeitos da lei da gravidade deixou-se cair feito um rastro ardente queimando tudo por onde passou, inclusive e principalmente vencendo a barreira do espaldar da “preguiçosa” se despencou por sobre a cacula, Branca, queimando-lhe cabelos, testa, sobrancelha e pestanas, ou supercílios e cílios, mais o dorso da mão esquerda com queimadura um tanto quanto mais profunda e somente não foi mais abrangente porque fraldas e cobertores que a cobriam defenderam-na queimando em seu lugar.

Não dá para descrever exatamente como se gostaria a sequência de ocorrências daí em diante, o alvoroço, a gritaria, tudo em alta voltagem, nervosismo a flor da pele e uma letargia ou inanição própria desses momentos... tudo isso provocando a reação dos vizinhos que de imediato acorreram ao local, inclusive D. Boneca uma das primeiras a chegar, seguida da D. Ramona, D. Eva, grande Evinha mulher do “seu” Ramão Bombeiro, todos parentes do Luiz Chaves (mãe, cunhada e irmão dele); providência imediata era levar a criança ao hospital, logo veio um “chauffeur de praça” (**) conhecido do pai do moleque e depois eleito vereador, Caetano Brum, levando mãe, filha queimada e mais D. Boneca, claro. Não deixaram o Moleque ir, tendo ele ficado sob os cuidados da Mana Ezolda que, junto com Eva, o consolava com palavras de esperança dando-lhe forças, entendendo não haver qualquer culpa de sua parte, etc, mas nada disso adiantava para o Moleque que, dentro de si já se havia julgado mais pesadamente ao ouvir D. Boneca, do alto de seu pseudo conhecimento, mas com razão naquela hora, dizer da preocupação de que o fogo tornasse a pequena Branca cega; todo o resto doía. mas isso, a possibilidade de ter sido o agente da cegueira daquele pequeno ser que era sua mimada maninha caçula, doía muito mais, muito mais mesmo...

Dentre as pessoas que acorreram naquele momento crítico de sua vida, talvez quem foi mais eloquente, contundente foi a “Mãe Mocita”, aquela grande mulher, Negra Velha de Cabelos Brancos, que não lhe disse uma palavra, não evocou nenhuma divindade, nenhum santo e, com seu silêncio, foi mais eloquente que um raio de sol, aconchegando o Moleque em seu colo chorou mansamente e, vendo-a, sentindo-a assim, o Moleque por sua vez verteu com idêntica placidez lágrimas retidas em sua alma pelo infortúnio que causara, pelo que se culpava, ferindo não apenas sua indefesa Branca, também e por extensão a sua família e a todos.

Entretanto, para não fugir de sua natureza nem mesmo neste momento de intensa emoção ele não deixou de pensar nos ditos da Laide, sua querida tia, irmã de sua vó que, ao vê-lo querendo chorar por qualquer coisa que fosse de pronto lembrava-lhe que “Homem não chora! Homem só chora quando a mulher vai embora e, assim mesmo, de faceiro por isso” ... parecendo-lhe que “Mãe Mocita” lhe demonstrara que não era bem assim, contentando-se com o fato de ser um guri ainda e de, ali, quem sabe, dar início ao adulto que seria e, em lá chegando descobriria que o homem chora sim e não apenas quando a mulher vai embora e não apenas por faceirice, mas porque é um ser humano, uma pessoa com suas fraquezas, sonhos desfeitos, virtudes, defeitos, fracassos e feitos e, para se tornar melhor, um verdadeiro homem deve lutar sem abandonar a dignidade e o respeito à vida, pois sua grandeza reside no que disse o poeta, reportando-se a pessoa humana, nos versos que se ousa destacar e repetir agora:

“... Ascende-te ao firmamento, / porém não tentes esquecer / que na horizontal viveste e viverás / teus melhores momentos. / Anda ordenada / na desordenada devassidão / do deus social / não esqueças o bem / não penses no mal. / prove o tempero da distância / ou a ânsia da volta, / não lastimes a espera, / mantenhas o otimismo / pois o sal usado no batismo / dá a pureza / o usado na vida, o mérito. / Delicia-te com a doçura / do reencontro / ou do descobrimento … … não mudes porque as coisas mudam / e sim pela necessidade / pela procura da autenticidade. / Não sejas poliédrica, mantenhas uma face! / Tente sempre a perfeição / embora ela seja também, imperfeita / por não dar nenhuma chance / a qualquer de nós alcançá-la / Busque o amor sem explicá-lo / o perdão sem defini-lo. Se possível / busque o prazer de viver / Sem a passividade dos fracos, / com a vitalidade dos fortes, / todavia evite exageros / - os extremos são perigosos. / Se acreditares siga para o norte / apesar de te apontarem sul. / Ajudar a quem sofre é uma forma / de evitar a própria dor / mas se ela teimar em conviver em ti / abriga-a como uma dádiva / ela será a chuva que regará / o teu jardim, revigorará tua crença / e reflorescerá tuas cinzas ...” (excertos do Poema “Adeus” - poema poster -, do autor).

A primeira notícia vinda do Hospital de Caridade que se localizava então perto do Colégio Sant'ana, do Estádio Felisberto Fagundes Filho do E. C. Uruguaiana, para onde tinham levado a Branca, foi trazida pelo Padre Wiro Rauber amigo da família e especialmente do moleque a quem, junto com Guirland, todas às terças-feira os levava para juntos assistirem o que chamava de “melhor programa humorístico”, que era a sessão da Câmara Municipal de Vereadores, então presidida pelo abalizado radialista Mario Dino Papaléo; disse o Padre Wiro que Edna estava se recuperando bem embora o fogo tivesse atingido cílios e supercílios, testa, os parcos cabelinhos que tinha e, com mais profundidade a mão esquerda, em ferimento ou “queimado” que atingiu o dorso em sentido longitudinal, como se fosse um extenso corte de mais ou menos três milímetros de largura por mais ou menos trinta de extensão. Medicada, não devia demorar muito para voltar para casa. E foi o que aconteceu, sem demora.

Edna e os pais foram trazidos por veículo do hospital, vindo com eles a Freira Diretora que era ou assim se entendeu fosse, versada em Psicologia eis que de imediato se dirigiu diretamente ao Moleque, realizando pequena entrevista da qual, disse-o, resultou mais tranquila com o que, temia, pudesse ter-lhe atingido com maior gravidade do que aquilo que sucedera com Edna, isto é a reação do moleque e a possibilidade de que tudo isso resultasse em traumas. De novo e mais agora passado um distanciamento oportuno e esclarecedor, acredita-se que às sentidas e silenciosas lágrimas de “Mãe Mocita” que deflagraram às do Moleque, tenha trazido luz à escuridão que o estava envolvendo devolvendo-lhe à condição de criança, liberto da cruz da culpa e do arrependimento. À salutar preocupação da Irmã de Caridade com o Moleque, que foi dispensado de comparecimento de outra ou qualquer entrevista com ela que se convencera de que ele não sofrera um abalo superior àquele entendido como normal ao caso, resultou um emocionado agradecimento dos pais dele àquela digna e atenciosa representante dos profissionais da saúde.

Registre-se, por oportuno, que Edna ainda tem cicatriz da queimadura somente que agora adulta, maior do que a bonequinha que era, a natureza se ocupou em quase extingui-la e mudá-la estando hoje localizada no antebraço, bem próxima do cotovelo; os cílios e supercílios, mais os cabelos, todos voltaram ao normal bem como, na testa não há marcas que lembrem que um dia foi queimada por seu irmão, o Moleque...

Para finalizar, também registre-se que “Seu” Ramão, bombeiro, marido da estimada Eva, irmão do Luiz Chaves se naquele dia estivesse em casa e não de plantão no quartel dos heróis do fogo, como estava, possivelmente não teria acontecido tal fato porque ensinaria ao Moleque que bastaria ter tampado a garrafa e o fogo se extinguiria eis que, no caso específico, o que causou a combustão foi o oxigênio que, se consumiria rapidamente se tampada a garrafa. Sem oxigênio, não há fogo... Ah soubesse disso o Moleque, embora, fatalista, possa dizer o que muitos repetem, o que tem de ser, será!

GLOSSÁRIO
(*) Jogo “Cinco Marias”: Composto por cinco pequenas pedras que são jogadas para cima a uma distância relativamente pequena pela mão preferencial do jogador(destro ou canhoto) enquanto os dedos polegar e indicador da outra mão formam um arco - “ponte” - por onde as pedras serão empurradas à passagem; das pedras jogadas escolhe-se uma que será a “joga”, sempre aquela que se entende a mais dificil de fazer passar pela ou sob a “ponte”; feito isso, enquanto a “joga” é atirada ao alto, o jogador tenta passar uma das demais pedras sob a “ponte” sem poder tocar nas outras e pegando a “joga” antes dela cair ao chão, pena de, se errar, em qualquer dos casos, ceder a vez ao adversário, sem marcar pontos. (NA). (**) Denominação dada, em Uruguaiana, ao motorista de táxi: "Chauffeur", motorista em francês; "... de praça" porque o local onde estacionavam à espera de clientes-passareiros era nas praças (Barão do Rio Branco, Argentina, etc).

Nenhum comentário:

Postar um comentário