quinta-feira, 26 de março de 2020

OUTRA DO MOLEQUE - OS CLÁSSICOS MUSICAIS


Conforme escrito, dito e repetido, o moleque participou de inúmeras serenatas com seu pai e seus amigos seresteiros, ratificando a iluminada presença do virtuose do violão, Miguel “Dedo de Ouro”, o ritmista Charanga, o pandeirista Geada, Beijo e seu bandolim, dentre outros que desfilavam pelas ruas de Uruguaiana, religiosamente nas noites de sábado para domingo, cantando músicas da época, todas marcadas por belíssimas e poéticas letras que espelhavam a profunda e nutrida cultura artística de seus compositores; além deles, os intérpretes possuíam qualidades inigualáveis a ponto de, até agora, poucos tenham alcançados o nível de qualificação daqueles, podendo se dizer que, no masculino, ainda reina com folga, o grande Orlando Silva, “O Cantor das multidões” cuja qualidade artística, canto, afinação, interpretação e voz ainda não tem ou teve quem possa sequer se comparar; no feminino, entretanto, a maravilhosa Dalva de Oliveira, a rouxinol que reinou absoluta, até a chegada da incomparável Elis Regina que, dotada de incomum condição a ponto de sua garganta ser classificada como se fosse um instrumento musical afinadíssimo, superando àquela com larga margem devendo continuar detentora desse cetro e reverência, como Orlando e junto deste, para todo o sempre, como os melhores cantores brasileiros de música popular, de todos os tempos, sabendo-se que outros tantos, da época, tinham grande qualificação, bastando citar alguns como Sílvio Caldas (O Caboclinho Querido), Francisco Alves (O Rei da Voz), Emilinha Borba, Marlene, Linda batista, Carmen Miranda, Angela Maria (A Sapoti), Nelson Gonçalves e um pouco mais adiante, Miltinho, Altemar Dutra, Moacyr Franco, Roberto Carlos, Jessé, Maria Bethânia, Alcione (a Marrom), Wanderléya, Núbia Laffaiete, etc.

Então, se pode dizer que o moleque além de gostar muito, tinha um bom conhecimento da música popular eis que cercado por “cobras criadas” desta e sabia, cantarolava até, várias das músicas ditas de serestas principalmente a considerada rainha, a belíssima “Chão de Estrelas” composição de Orestes Barbosa e Sílvio Caldas cujos versos, como “... A lua furando nosso zinco / Salpicava de estrelas nosso chão / Tu pisavas nos astros distraída / Sem saber que a ventura desta vida / É a cabrocha, o luar e o violão.” estão inscritos nos píncaros das metáforas; aliás, esse nível foi alcançado pela celebrada música de Nelson Cavaquinho “A flor e o espinho” nos versos carregados de lirismo, o que se encontra em todos os demais, que explode corações derramando (com)paixão “Tire seu sorriso do caminho / Que eu quero passar com a minha dor / Hoje pra você eu sou espinho / Espinho não machuca a flor...”; também por Guilherme Figueiredo e Luiz Gonzaga no celebrado “Assum Preto”, (respeitada a grafia dada à letra, então) “... Assum preto véve sorto / Mas num pode avoar / Mil veiz a sina de uma gaiola / Desde que o céu, ai, pudesse oiá /...”; ou ainda pelo cantor, compositor e poeta, Moacyr Franco, com seu “Pedágio” que dentre elevados e marcantes versos, lá pelas tantas declama “... Só se vive mesmo nove meses / Pois o resto, amiga, a gente morre .../... Deixe o mundo se matar lá fora / E me mate só de amor aqui...".

Registre-se que o moleque, logo adiante, integrou o Canto Orfeônico Villa Lobos do Cólegio Estadual Dom Hermeto, regido pela sábia professora Ieda, e se tem pálida ideia de sua paixão pela música. Antes disso, porém, em uma tarde em que se dirigia para uma “pelada” com toda a gurizada da região, no campo do Sete de Setembro dos irmãos Sapatta, Neri, Marcelino e Osvaldo (Touro), palco do grande clássico do futebol amador, contra o Internacional, e que ficava localizado logo após a antena da Rádio Charrua, ao passar à frente da casa do sargento Cesar ouviu uma canção que mudaria ou ampliaria exponencialmente sua paixão pela música: ocorre que dito sargento escutava, em sua eletrola ou toca-disco, uma música cuja maviosidade e beleza encantou ao moleque que, lhe parecia, nunca tinha escutado nada parecido, nem tão lindo.

O moleque ao ouvir aquele som encantado, parou, recostando-se a cerca de madeira que separava o pátio da frente da casa à calçada e se deixou escorregar até sentar no chão, à sombra do paraíso (cinamomo), embevecido ou melhor, hipnotizado pelo que ouvia e nem se deu conta que seus movimentos e gestos eram acompanhado pelo sargento, cuja voz o alcançou embora lhe parecesse vinda de muito longe: “O que é que houve, moleque, está bem?”, “Sim”, respondeu completando, “é que eu estava escutando a música.” “Gostaste da música?” perguntou-lhe Cesar, “Sim, ela é muito linda!”. Intrigado possivelmente, surpreso certamente, o sargento propôs ao moleque que entrasse em sua casa que ele colocaria a tocar a música desde o início e assim aconteceu. Ela era muito linda como dissera e sentira, mais linda ainda ouvida desde o começo.

Finda a audição, a pedido do moleque que seguia ensinamentos de seu pai de que, sempre, deveria buscar a autoria, o sargento Cesar a identificou como sendo um dos Noturnos de Frederic Chopin, o Opus 14 ou, 26 ou 27, não lembra bem, e que ficara alegre por encontrar alguém que, como ele, gostasse de música erudita como fez questão de frisar, só que jamais poderia imaginar que essa pessoa fosse o moleque que ele evitava por ser muito malcriado, desaforado até, que aprontava demais para todos daquela região, inclusive para o próprio sargento e seus cachorros e, também, para os cachorros e para o tentente Otacílio, seu vizinho. Não foi propriamente um "pito" e nem isso foi assim recebido pelo moleque, desde que era mera constatação. Apesar dessas ressalvas, Cesar acabou mostrando uma coleção de discos de clássicos da música erudita, pontificando compositores como Ludwig Von Beethoven (5ª Sinfonia, Adágio da Sonata “Ao Luar”, Four Elise, dentre outras tantas maravilhas) Amadeus Wolfang Mozart (o mais completo, perfeito compositor de todos os tempos), Chopin (com seus Noturnos e Rapsódias), Johann Sebastian Bach (Jesus Cristo, Alegria dos Homens), Schubert (e sua comovente Ave Maria), Tchaikovski (O Lago dos Cisnes, Concerto nº 1 para piano), etc., acrescentando a tudo isso, óperas famosas, jamais ouvidas pelo moleque, como “Carmen” de Bizet (com a grande Dama e soprano Maria Callas, cantando a “Habanera”), Turandot (com a excepcional Nessum Dorma) e Nabuco (com o, também excepcional, Va Pensiero), ambas de Giuseppe Verdi, e outros discos mais... Lamentando apenas não ter sequer um disquinho de Caruso, fenomenal tenor italiano, Cesar visivelmente entusiasmado pelo interesse demonstrado, convidou o moleque para ficar ali, agora, para ouvir com ele algumas daquelas joias musicais.

Embora estivesse sinceramente impelido a ficar, o moleque optou pelo que lhe parecia mais agradável naquele momento e para o qual havia saído de casa, além do mais lá no campo do Sete estaria reunido com vários amigos, inclusive com seu amigo/irmão José Nilto Guirland e outros como os João Carlos (o Melena e o Imbido), o Wilson Guedes (Coco), o Vilmar (Gago), o Jurandir (Jura Gato), o Deca (Parrudo, que muio tempo depois seria goleiro do Grêmio FB Porto Alegrense),o Salvador Chorão, o Juarez Barbat, o Pedrinho (Sabugo), o Otto Pires (o Bronca), o Joal (Selo), o Luiz Chaves e muitos outros mais, jogando ou tentando jogar bola, o que era tão bom quanto ouvir aquela beleza de música chamada Noturno... fosse como fosse o convite do sargento Cesar era sem data marcada e a audição de todos aqueles discos e músicas poderia ser em qualquer dia considerando a disponibilidade do sargento, com duração sem marcação de tempo para terminar, como ocorreria logo, logo e por diversas vezes. Pode-se dizer que o sargento Cesar foi quem abriu às portas do maravilhoso mundo das músicas eruditas e óperas ao moleque.

A partir daí, seguidamente o moleque tinha o prazer de escutar músicas na companhia do sargento e de sua família, até porque, e também, a discoteca do sargento tinha vários discos de música popular, dos grandes intérpretes de então, que incluía, além daqueles já citados, o vozeirão de Vicente Celestino, Carlos Galhardo, Nora Nei, Jamelão, muitos tangos de Carlos Gardel cantados por ele e por outros como Hugo Del Carril, com a música francesa representada pelo “chansonier du France” Maurice Chevalier (perdão se a grafia estiver incorreta), pela grande Edith Piaf (La vie en Rose) e outros e a americana do norte por Nat King Cole (Mona Lisa) e Frank Sinatra (My Way). Para que mais, heim?

Foi o sargento quem ensinou ao moleque que a música se dividia em Erudita e Popular, cada uma com seus clássicos, além do que a música erudita um dia também fora música popular. Que, naquele momento, tinha-se na música popular algumas que já eram clássicos, como “Noite Cheia de Estrelas” de Vicente Celestino (cuja melodia e letra eram de beleza ímpar, principalmente nos versos “... As estrelas tão serenas / Qual dilúvio de falenas / andam tontas ao luar / Todo astral ficou silente / Para escutar / O teu nome entre as endechas / Às dolorosas queixas / Ao luar …”), “Aquarela do Brasil” de Ari Barroso, “Luar do Sertão” de Catulo da Paixão Cearense, “Carinhoso” de Pixinguinha e João de Barro, e algumas composições de Lupicínio Rodrigues, a supra referida “Chão de Estrelas”, ao que se poderia acrescentar, fosse agora, “As rosas não falam” de Cartola, também “A flor e o espinho”, “Mucuripe” de Fagner e Belchior, muitas ou quase todas de Roberto e Erasmo Carlos, “Pedágio” de Moacyr Franco, as canções maravilhosas dos grandes poetas Chico Buarque de Hollanda (“Sabia”, “Olhos nos olhos”, “A banda”, “Cálice”, “Construção” e tantas outras), Tom Jobim “Luiza”, “Passarim”, “Águas de março”), Vinicius de Moraes (“Um homem chamado Alfredo”, “Valsinha”, “Tardes em Itapoã”...). A lista é enorme, não cabendo em tão pouco espaço, muito menos se somadas estas clássicas com às da música erudita ou óperas (que é, no frigir dos ovos, uma peça teatral cujos diálogos são cantados...).

Por coincidência do destino, ou não, em um domingo, meados da década de 1950, entre a programação do Cine Teatro Carlos Gomes e a do Cine Corbacho, com dinheiro da entrada completado por seu pai, o moleque optou por este último devido ao sugestivo título do filme: “Melodia Imortal” estrelado pelos famosos artistas norte-americanos, Tyrone Power e Kim Novack, provocante beldade que só perdia em glamour para Ingrid Bergmann, atriz de “Casablanca” cuja beleza física era emoldurada por uma candura envolvida por sutil malícia própria das mulheres dignas de se chamar de lindas (prestem atenção, há muita diferença entre uma mulher bonita, e são tantas, e uma mulher linda, infelizmente em bem menor número). O tema desse filme versava sobre um grande músico, “Duchen” como foi gravado pelo moleque de tanto ser repetido pelo ator que, ao se sentar ao piano anunciava “a música de Duchen” e, incrivelmente, sua trilha musical se escorava nos Noturnos de Chopin, em especial e repetidamente o do Opus 14 ou 26 ou 27, àquele que hipnotizara o moleque em frente a casa do sargento Cesar, fazendo-o esquecer, pelo menos enquanto durou tal audição, da “pelada” para onde se dirigia, encantamento que ainda persiste quando tem o privilégio de ouvi-lo e não importa quantas são às vezes de tanto.

Aquele filme auxiliou ao moleque se interessar ainda mais pela música erudita, tanto quanto se interessava pela popular e, aparentemente por efeito tipo bumerangue, também desenvolveu ainda um maior interesse e predileção pela música gaúcha, mais próxima, sem descurar da ascensão do baião e outros ritmos nordestinos, como se sabe e se demonstra por si só, muito semelhantes aos nossos, com xotes, rancheiras e outros; como ou, por isso, os sambas (de roda, partido alto, canção, etc.), os “choros”, tangos e boleros não foram sequer arranhados na preferência musical do moleque, que apenas foi ampliada como continuaria sendo quando surgiram o “iéiéié” da “jovem guarda” e Roberto Carlos, antes o “rock and roll”, a pitada de jazz da bossa nova e sua musa Nara Leão, seu artífice João Gilberto e da canção de Tom Jobim e Vinicius de Moraes "Garota de Ipanema" desenhando a ondulante beleza e frescor da juventude de Helô Pinheiro, o fenômeno e aparição dos geniais Beatles logo adiante seguidos pelos Rolling Stones e outros "quetais"...

Abra-se parentesis, finalmente, para os maravilhosos e inolvidáveis tangos que sempre estiveram no gosto e repertório oferecido ao Moleque com intérpretes como Carlos Gardel, Hugo del Carril, Libertad Lamarque e tantos outros e, bem depois, Astor Piazzola e sua esposa Amelita Baltar (especialmente interpretando a “Balada para um Loco” letra e música de Piazzola, também criador da maravilha instrumental chamada “Libertango” que deu origem ao movimento musical argentino “Tango Novo”); inclua-se, também, à música latino-americana como um todo, onde se sobressaíram os ritmos caribenhos e inumeráveis boleros sem esquecer os mariachis mexicanos, a música norte-americana com o "fox", o "soul", o jazz, o rock and roll (que tomaria conta do mundo) e outros ritmos. Tudo isso, sem esquecer das músicas dos demais continentes, em especial do europeu, trazidas pelos colonizadores portugueses, ingleses, franceses, italianos (os ancestrais do moleque), etc.

A música é algo que transcende ao humano chegando bem perto do divino, servindo como aconchego, fuga, encontro, espera, refúgio, penetrando n'alma de forma que eleva e sublima o melhor de cada um de nós. Nestes duros tempos que vivenciamos, pleno de dúvidas, temores, a doença que se alastra originária de um inimigo invisível, à tocaia, tenhamos além da fé e da preparação para enfrentá-lo e vencê-lo, o doce, rijo e forte bastão que a música oferece ao corpo e espírito, sem deixar de doar, trazer em seu bojo, nada além do que esperança, paz e serenidade a nos irmanar com os anjos. Amém!

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