quinta-feira, 5 de março de 2020

OUTRA DO MOLEQUE - LOBINHO (Mascote de Escoteiro)


Convidado pelo Capitão Aimoré de Moraes Gomes, Comandante do destacamento de Escoteiros Leão XIII e cliente assíduo da barbearia do seu pai, o moleque ingressou no Grupo de Escoteiros na condição de Lobinho, mascote, e em várias oportunidades participou de acampamentos do Grupo, com idas ao campo, margeando sangas, cruzando a pampa com mochila às costas e pernoitando em barracas de “camping”, ali chamadas de “carpas” - termo espanhol em decorrência da proximidade com a Argentina - vivenciando o encantamento de noites enluaradas, estreladas, fontes de cantos e poemas de tantos poetas, também tendo logo adiante o esplendor de alvoreceres espetaculares dignos das maiores loas e referências, inesquecíveis, enfim, como o aprendizado pelo contato direto com a natureza, matos e águas límpidas, de tudo isso sorvendo o sumo do respeito, da estima, do companheirismo, complementados pela postura hierárquica, da disciplina e demais idôneos preceitos e práticas da instituição criada pelo inglês Baden Powel.

Em uma daquelas marchas feitas a pé, no melhor estilo dos regimentos de infantaria, os infantes, digo, escoteiros, chefiados pelo referido capitão, rumaram para além das fronteiras do município de Uruguaiana, ingressando na vizinha Quaraí, mais propriamente montando acampamento às franjas do famosíssimo e misterioso Cerro do Jarau, onde, segundo a lenda e crendices habitava Teiniaguá, a Salamanca do Jarau, lindíssima princesa moura que se transformava em lagartixa ou vice-versa, e encantava o incauto que a perseguia mediante sedução próxima aos cantos de sereias retratadas na Odisseia, de Homero, que dentre outros eventos nela conta as aventuras e viagens de Ulisses paciente e incrivelmente esperado pela esposa, Penélope, voltando vinte anos depois sob o anúncio de seu cão, Argos, que o reconheceu... isso, entanto, é clássico consagrado da literatura e mitologia grega, extraordinariamente conhecido que o moleque teve o privilégio de ler através de livro emprestado pela biblioteca pública de sua cidade ora citado apenas para indicar um pouco da grandeza do endeusamento dado a Teiniaguá e o respeito e medo, quem sabe, que gerava em todos que chegavam perto do Cerro, à entrada dele, uma gruta parecida com uma boca escancarada, escura, horripilante e sedenta de novos servos à princesa moura.

De arrepiar, também o fato de que o lampião de querosene, aceso pelo Capitão/Comandante Aimoré, depois de apenas dez passos, nem isso, no interior da gruta, se apagou sem que houvesse vento de qualquer intensidade e sem explicação ou entendimento, pelo menos para o moleque. Para acabar com o capítulo Jarau, contou o capitão Aimoré que as terras à volta e o próprio Jarau, eram ou foram de propriedade do maior vira-casaca gaúcho e quem sabe brasileiro, o General Bento Manuel Ribeiro que na Revolução Farroupilha, ou Guerra dos Farrapos, como queiram, iniciara do lado dos imperiais chamados pelos revoltosos de Pica-Paus, depois virara a casaca passando para o lado dos Farrapos e adiante, voltara às fileiras dos Pica-Paus, sempre com a patente de General, em qualquer dos lados... coisas e coisas de nossa história e lendas...

Voltando ao moleque e sua condição de Lobinho, tinha ele tenra idade quando praticava o tenebroso vício da “chupeta”, não conseguindo conciliar o sono, pelo menos em casa, sem que usasse o “bico” pelo menos por alguns minutos antes de; se não o fizesse, se tornava difícil se entregar aos braços de Morfeu ((já que falamos, antes, em Mitologia Grega deem-me mais um pouquinho de sua paciência para usá-la ao descrever simplesmente a arte natural e necessária do dormir). Não saberia o moleque indicar quem, dentre tantos que conheciam tal “vício” aparentemente zelosamente oculto, teria tido a “maldade” de revelá-lo para o Capitão/Comandante; em uma daquelas marchas/excursões a campos, sangas e arroios, enfim, indo a caminho de mais um acampamento, àquele chegou ao moleque determinando que o escutasse ali, diante de um poço artesiano enquanto mandava que os demais seguissem quarenta passos à frente e lá os aguardassem. Ordem dada, ordem executada por todos, inclusive com o moleque que parou, ficando a sós com o Capitão/Comandante que, vendo que os demais cumpriram a ordem parando adiante, voltou-se para o moleque e, com calma e firmeza na voz, determinou que o mesmo falasse a respeito do “bico” que lhe disseram ele possuía e o utilizava, furtivamente, para dormir. A imposição oral não admitia firulas, trapaças ou negaceios do moleque; tinha ou não tinha? usava ou não usava o tal “bico”? não sobrou um mínimo de espaço à fuga para o moleque que, “emparedado” e um tanto envergonhado, respondeu positivamente às inquisições que lhe foram feitas...

O Capitão/Comandante, então, continuando com a voz grave e pausada, disse ao Moleque que a um escoteiro não era permitido qualquer vício ou dependência que fosse eis que isso estaria ferindo a disciplina, um dos lemas e conceito mais elevado dos dogmas por onde transitava o orgulho e razão de ser do escotismo. Por isso tudo, lamentava mas, não tendo outra alternativa, colocava ao moleque como condição para sua permanência no grupamento Leão XIII, como Escoteiro, no caso, como Lobinho, o abandono ao inominável vício, aqui e agora, ou então que aproveitasse sua última jornada em meio aos demais colegas escoteiros.

Diante disso, desse inevitável (e quantos há na vida?), o Lobinho lembrou do orgulho de seu pai que dera um duro danado para adquirir o fardamento e mochila que ele usava e como um mártir sucumbiu à guilhotina... o que fazer, tinha de ser assim, então, pragmático, rendeu-se e que assim fosse. Disse ao Capitão/Comandante que continuaria escoteiro e não mais “chuparia” o “bico”; este, então, determinou que lhe fosse entregue o terrível e abjeto instrumento do abominável vício, deformador da arcada dentária dentre outros males que provocava segundo disse enfaticamente. Então o moleque, entregou-lhe o “bico” não sem antes rogar lhe fosse dada a oportunidade de se despedir dignamente daquele objeto de sua infância, o que, permitido, fez com sofreguidão e sofrimento, dando as últimas “chupadinhas” em melancólico adeus ou um nunca mais, nunca mais mesmo!

Feito isso, definitivamente entregou o “bico” ao Capitão/Comandante que, sem dó nem piedade, o enviou diretamente às aguas fundas do poço que pareceram responder ao moleque com um “tudo aqui é passado, como adiante tudo o será” …
Nunca mais o moleque, esqueceu de seu último “bico” e daquelas sôfregas, até impúdicas ou impudentes “chupadinhas” no aparelho viciante que lhe obrigaram largar; nunca mais! Seu inconsciente repetia em silêncio, nunca mais! … (“Nunca mais você ouviu falar de mim, mas eu continuei a ter você... - Roberto Carlos, na canção À Distância”).

Chegava o dia da Pátria o que era e continua sendo muito comemorado em Uruguaiana para promover com ênfase à brasilidade, talvez por fazer fronteira com Argentina e Uruguai, sanguíneos povos de idioma Espanhol o que, aliás, exceto pelo Brasil com o Português, todos professam, com a programação do desfile de Sete de Setembro e, lógico, dele participaria o Leão XIII, com todos os seus membros, escoteiros, com o Lobinho à frente deles, como mascote, carregando sob coleira amarrada à correia de couro de um metro e meio de cumprimento, o animal dito símbolo do grupamento, um “zorro” ou “zorrilho”, nomes de origem espanhola, adotado ou usado também em português, espécie de raposa quem sabe pertencente a mesma família do conhecido gambá, ambos conhecidíssimos pela urina fétida e cujo cheiro invulgar se reconhece ou se pode aspirar ou pressentir desde muito longe.

Diga-se, a bem da verdade que Lobinho e mascote se comportaram de forma quase exemplar durante o curso do desfile, dizendo-se “quase” porque, ao final do mesmo, o “zorrilho” deu o ar de sua graça, ou melhor, de sua urina, exalando o mau cheiro que a caracteriza e que n'um instante escraviza, estraga ou afasta o olfato do “índio mais primitivo” (tomando a liberdade de parafrasear um verso do poema “China” do nosso grande poeta nativista, Jaime Caetano Braum, no poema “China” - “... Bendita China gaúcha/ que traz na divina estampa/ um quê de nobre e altivo/ és perfume, és lenitivo/ Que n'um instante escraviza/ o índio mais primitivo...”).

Algum tempo depois, por motivos econômicos de seu amado pai (como sempre e ocorreria consigo em outras tantas vezes pela vida), o moleque, então não mais Lobinho, mas Escoteiro, deixou o grupamento dos Escoteiros do Leão XIII, onde colheu grandes lições e aprendizado exarado, ensinado, colocado e vivenciado, originários do grande Capitão/Comandante Aimoré, homem íntegro, probo, exemplar professor, seguidor e divulgador da filosofia ditada por Baden Powel, aos quais tantos, como o próprio moleque, devem tanto!

Foi mais uma das tantas histórias e passagens que o moleque vivenciou eis que agraciado pela boa sorte de uma infância vivaz, plena de ocorrências e personagens que, como os frequentadores do Clube Sete de Setembro ou mais propriamente do “Seu Emílio” lhe ofereceram não apenas imensurável afeto, mais que isso, inexcedíveis ensinamentos que lhe prepararam para enfrentar a vida, da melhor maneira, sem arrogância ou pretensão de não ser nada além do que continuou sendo, um ser humano e isso é quanto basta, nem melhor nem pior do que ninguém, apenas um ser humano igual a todos os outros, eis que, como todos seus amigos sabem, desde o moleque que foi, acredita piamente, sem cometer qualquer paradoxo, que os seres humanos são iguais em suas desigualdades, isto é, todos têm virtudes e defeitos, por isso iguais sendo que, desiguais intrinsicamente, são as virtudes e os defeitos, fatores díspares e diferenciados que, como minúsculos grãos de areia, não são iguais entre um e outro... Enfim, iguais em nossas desigualdades, desiguais em nossas igualdades, lembrando que isso não é falácia, mais sendo silogismo ou, quem sabe e mais ainda, incorporando a dialética de Friedrich Hegel que é axiomática, sendo melhor encerrar o continho porquanto estamos entrando no sítio da filosofia sem dominá-la e, por isso, expostos aos raios e trovões da própria ignorância do moleque, cruz, credo!

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