terça-feira, 24 de março de 2020

OUTRA DO MOLEQUE - DANÇAS GAUCHESCAS


No Grupo Escolar Municipal Maria Moritz, da Uruguaiana de então, e como certamente segue sendo até os dias atuais, a volta às aulas que se dava ao início de março, trazia o alarido próprio das crianças, a maioria alegre pelo retorno e reencontro com os professores (para o moleque, em especial com a sua amada professora Dona Buby), amigos e colegas que as férias de quase ou mais de três meses transformava em um latifúndio de tempo, ausência e saudade. Logo adiante, entretanto, as imposições do ano letivo expondo seus deveres consagrados ao cumprimento, decretavam vigente respeito ao trabalho, aos estudos, à obrigação do aprendizado às lições dadas pelos mestres. Em pouco tempo, tudo retornava a rotina de antes das férias, recompondo-se o cotidiano com sua algaravia ou sisudez, dependentes da situação e/ou envolvimento da ação posta.

A par da magnitude disso, por volta de abril, mais propriamente ao início da segunda quinzena desse mês, funcionando até como lazer aos alunos ou culto às tradições gaúchas, pela dança, começavam os preparativos às festas juninas onde os guris e gurias, no(s) dia(s) da(s) apresentação(ões) se paramentavam: os guris, de botas, esporas, guaíacas, pelegos, boinas, chapéus, lenços vermelhos dos maragatos ou brancos dos chimangos, faca na cintura ou atravessada às costas, enfim tudo que compunha ou lembrasse ou se aproximasse das "pilchas" do gaúcho rural; as gurias com vestidos rendados compridos cobrindo até os tornozelos e mangas também rendadas e compridas, ou conjunto de saia e blusa também rendadas e compridas, flores ou laço nos cabelos, enfeites a altura do pescoço, brincos e anéis, enfim vestidas para festa. Como preparativo os ensaios das danças duravam várias semanas, à festa junina ou apresentação(ões) e festejos programados paras os dias 13, 24 e/ou 29 de junho, onde as danças, artes e folguedos ocorressem em realização o mais impecável possível.

Das danças gauchescas duramente ensaiadas sobressaiam “Dança do Balaio”, “Dança do Pezinho”, “Dança do Pau de Fita”, “Dança do Pericón” (esta, a mais difícil por ter passos marcados concatenados com os demais pares de bailarinos, atuantes), além de outras danças menos votadas, como a da “Polca da Relação”, todas, plenas de muita graciosidade, humor, gauchismo, brasilidade e latinidade.

A “Dança do Balaio” cuja cantiga entoada por gaita, violão e pandeiro, tinha como letra: “Eu queria ser balaio / Balaio eu queria ser / Pra andar dependurado / Na cintura de você / Balaio, meu bem balaio, Sinhá / Balaio do coração / Moça que não tem balaio, Sinhá / Bota a costurar no chão / Eu queria ser balaio / Na colheita da mandioca / Pra ficar dependurado / Na cintura da chinoca / Balaio, meu bem, balaio Sinhá / Balaio do coração / Moça que não tem balaio, Sinhá / Bota a costurar no chão / Mandei fazer um balaio / Pra guardar meu algodão / O balaio saiu pequeno / Não quero balaio não”, com as “Chinocas” ou “Prendas” portando cestos de vime, talos de taquara, cipó ou bambu junto à cintura, dançando xotes com seus parceiros, corpos separados por mínima distância.
A “Dança do Pezinho”, com cantiga também entoada pelos instrumentos citados, tinha como letra: “Ai bota aqui, / Ai bota ali o teu pezinho / O teu pezinho / Bem juntinho com o meu / Ai bota aqui, / Ai bota ali o teu pezinho / O teu pezinho / Bem juntinho com o meu / E depois não vai dizer / Que você se arrependeu / E depois não vai dizer / Que você já me esqueceu / E agora que estamos juntinhos / Me dá um abraço / E um beijinho / E depois não vai dizer / Que você já me esqueceu”.

Já a “Dança do Pau de Fitas”, se realizava somente com a música, rancheira sem cantoria e consistia em bailado ao redor de um mastro onde, no seu topo, eram presas as fitas de diversas e vibrantes cores portadas, na outra ponta, por cada um dos bailarinos, casais de rapazes e moças, que desenvolviam o bailado em torno desse mastro entrelaçando as fitas harmoniosa e regularmente até o limite onde não tinha mais como prosseguir, daí então, voltavam observando ordem inversa até recomporem o desenho inicial.

Por sua vez, a “Dança do Pericón”, um chamamé com igual acompanhamento musical, tinha passos marcados e assaz elaborados à formação de diferentes figurinos no curso da dança, em andamento coreografado como uma espécie de quadrilha, por isso sendo de difícil aprendizado, exigindo muita atenção, compenetração até dos dançarinos nos ensaios comandados pelo exigente e perfeccionista “Professor Serafim”, todavia, de jocosa letra: “A dança do sarapico / É uma dança muito engraçada / O pobre dança com rico / e o patrão com a empregada...” Imitando o famoso “mi de gavetão” das “trovas” o gaiteiro pausava o instrumento na sequência e desenvolvimento da dança, oferecendo acordes de manutenção, enquanto os casais, um de cada vez, dançando se dirigiam ao centro da roda e recitavam versos galantes como por exemplo “Eu gosto da rosa branca / Sem desfazer a açucena / Não sei o que tem meus olhos / Que gostam da cor morena” ou de cunho galhofeiro, às vezes quase ofensivos, outras, inofensivos, se é que é possível assim definir pois que dependiam da entonação dada pelo(a) declamador(a), como “Lá atraz daquele cerro / Corre água com sabão / Há mais de sete anos / Tu não lava teu 'garrão” e outros com surpresas pela criatividade ou 'non sense', como “Tanta laranja madura / Tanto limão pelo chão / Tanto sangue derramado / … Porque que não faz morcilha?”...

Ao final da apresentação, em maioria de vezes, se realizavam os périplos da “Polca da Relação”, dança que conforme o próprio nome diz, era uma polca, de origem polonesa claro, que a cada quatro ou cinco compassos tinha o andamento parado e o casal de dançarinos da vez, dirigindo-se ao centro e cada um declamando versos ou trovas, como queiram, fosse dirigido ao parceiro ou parceira, fosse dirigido a terceiros, também dançarinos participantes, como um repto.

Mal sabia ou não sabia, então, o moleque que tudo isso, para nós brasileiros, gaúchos, ou vice-versa, não importa, se devia ao pioneirismo de um grupo de rapazes capitaneados pelos jovens Paixão Cortes e Barbosa Lessa, desde o Colégio Estadual Júlio de Castilhos, o Julinho, levados por ideais farroupilhas, foram beber em fontes primevas trazendo de volta, à tona, a quase esquecida tradição, formando logo adiante e a partir disso tudo, o primeiro Centro de Tradições Gaúchas, o “35” repositório, lume e guardião da cultura gaúcha, totem do Movimento de Tradições Gaúchas – MTG, decorrência disso tudo.

É claro que o moleque dançou “pericón” e teve como parceira uma bela guria, a alemoazinha chamada Cleci; bem que ele queria fosse a Gata, para ele Gatinha, só que ela não participou, nem a Clotildes, sua amiga, e que se dizia chamar Erotildes (talvez porque Eros fosse o deus grego do amor, filho de Afrodite, mais conhecido como Cupido, porém duvida o moleque que ela soubesse disso, mas tudo é possível, ou porque simplesmente não gostava de seu nome original...) que, após muitos “pericóns” viria a casar com Nêne, um guapo rapaz conhecido do moleque, formando belíssima família que encantava pelo amor, respeito e ternura e que, em busca de oportunidades profissionais, fixaram residência lá pelas plagas de Osasco, na região metropolitana de São Paulo.

Pensando bem, agora à distância, aquela alemoazinha era um encanto só, meiga, bela e muito boa dançarina, possivelmente não teria prenda melhor para ser a parceira daquele guri de muita sorte que, até quando falhava na pretensão, a força do destino vinha e consertava com sobras na qualidade do realizado!

Registre-se, para efeitos de dar nome e divulgação a quem merece, que a parte musical ficava a cargo dos competentes músicos: Antão, na gaita-piano, Matias no violão, ambos com idades de nove ou dez anos e o grande Geada, virtuose do pandeiro; o “conjunto” produzia música de muita qualidade, participando relevantemente para o brilho das festas juninas daquela “nossa” eterna Escola.

Foram tantas as ocorrências nesse tempo que a memória por vezes falha ou às mistura em tropelias de difícil ordenação... de qualquer forma, uma das muitas que se sobressaíram, marcou bastante pelo inusitado, quer pela boa intenção, quer pela má ou equivocada interpretação, na sequência, pela violência da reação e, o precoce fim de um romance que poderia se encaminhar para algo mais sério, adiante. Assim, na Polca da Relação, o par composto por Pipico e Lenira, foram apressados pelo pai da moça, “Seu” Lila que queria ir embora levando a filha, antes mesmo da Polca começar e ficou ali, resmungando e criando caso, enquanto se desenrolava a dança e, cada vez mais irritado, repetia sem parar um vamos embora imperativo, iniciando contagem de um a dez ou vinte ou mais, exatamente quando o casal se endereçava ao centro do palco de dança, para cada um proferir seu respectivo verso. Abra-se parêntesis para informar que Nira, apelido carinhoso da guria, à “boca pequena” era conhecida como a Olívia Palito, do Popeye, por ser magra demais, especialmente por ter pernas muito finas, ficando fora de si quando a chamavam pelo detestável apelido; deu-se que ela declamou a trova ou versinho endereçado ao seu par, Pipico, de forma graciosa, carinhosa e afetiva, dizendo “Eu tenho um sonho tão lindo / Olhando nos olhos teus / Vejo espelhos, refletindo / Não serem sonhos só meus”; Pipico, grosso e sem nenhum traço ou tato romântico porém, na melhor das intenções e diante da partida daquela guria que, lhe pareceu, queria namorar com ele, declamou “Saracura do banhado / Perna de quiriquiri(*) / Tu te vais e me deixas / Eu também queria ir”, antes de dizer a totalidade do terceiro e do último verso, foi surpreendido pelo tapa no rosto desferido por Lenira que feito isso, saiu aos prantos do palco de dança e se foi correndo para casa seguida pelo pai... E lá se foi para o ralo uma possibilidade para o inábil Pipico que sequer sabia o que era um Quiriquiri... para seu azar, a voluntariosa, violenta e irritada Lenira, ainda que terna sabia, melhor, conhecia àquela ave de corpo desengonçado e pernas muito altas, pior, de pernas muito finas...
Não por acaso aconselha-se aos declamadores, trovadores, leitores que conheçam o significado do que os versos dizem e se possível e principalmente até, o que dizem nas entrelinhas ou sentido implícito, para não serem surpreendidos, como Pipico, pelo inesperado... dizem os expertos que só sabem ler àqueles que leem e interpretam poemas, com o que concordamos!

(*) Quiriquiri, s.m. (ornit.) (bras.) Certa ave da família dos falconideos...” (Dicionário Brasileiro Zero hora, 1994, POA); pernaltos, que se caracterizam pelos tarsos muito compridos e finos (N.A.).

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