quarta-feira, 19 de junho de 2013

FIO PARTIDO (Continho)


FIO PARTIDO

Ultimamente não pensava em outra coisa, parecia-lhe a cada dia que passava confirmar-se sua nova posição diante do que via e ouvia. Não era possível que durante tanto tempo estivesse cego e inadvertidamente colocado em posição de censor; ria nervosamente enquanto repassava em seu presente o que fizera com o ardor dos fanáticos.

Reprovara os desonestos, os criminosos, as prostitutas, apesar de vez por outra utilizar-se delas, abominava em resumo, todas as manifestações delituosas, pecaminosas segundo seu conceito de interiorano, temente a Deus e, principalmente, temente a Igreja que o fustigara, desde guri com dogmas e conceitos instalados em sua fé e extremados por seu comportamento que, agora acreditava, haviam corrompido sua justiça. Neste momento sentia-se pior do que todos os outros porque, ainda que seu ato fosse apenas a extensão de todos pequeninos e ensaiados durante uma vida, não tinha a coragem de assumi-lo, nem a destreza ou a capacidade de despir-se da grande farsa que lhe fora imposta desde o ventre materno.,
Após haver sido um menino irrequieto, por volta da puberdade iniciara um processo de amadurecimento reconhecido por todos que lhe cercavam; tal processo lhe levou a ser adulto prematuramente e bem assim pesar as situações de acordo com o pretenso bom senso detido, somado a sua formação intelectual, obtida pela égide de padrões clássicos. Com isso, verde, encaminhou sua vida para um incipiente cotidiano onde o ‘não fazer’ era a tônica e a contrapartida, ‘fazer’, o extraordinário. Quase tudo era proibido, de mau tom. Literalmente adotara a lógica racional apenas, afogando a emotividade na materialização da perfeição que se auto-outorgou possuidor, ajudado pelas pessoas que o consideravam brilhante, adulto, ponderado, de predicados superiores...

 Era frio e inflexível e, a bem da verdade, mantinha a firme intenção de ser justo ou, no mínimo, o mais justo possível; por acreditar que sua ação era correta, jamais sentiu remorsos; não perdoava erros, inclusive seus (que de tão raros quase inexistiam), provando alternadamente para si que a indulgência é o câncer da moral. Dessa forma, perdão era uma palavra que não fazia parte de seu dicionário. Não tinha qualquer dúvida sobre a propriedade do processo dedutivo, considerando-o único capaz de sorver toda a gama de seu próprio raciocínio. Era narcisista porquanto admirava sua própria inteligência, sagacidade e conhecimento. Mais que isso, exercia o pecado capital da soberba. Possuía uma vontade e teimosia férrea que o levava, embora os sacrifícios, ao fim desejado.

Essa posição erecta diante dos fracos e mortais, essa inflexão moral começaria a ruir naquela que tantas vezes abençoou, pelo colorido que deu a sua vida, pelo calor que deu a seu corpo. Conhecera-a na praça Barão do Rio Branco (a do centro e a mais bela praça de Uruguaiana) em um entardecer quente de um verão mais quente ainda. Mal sabia que ao penetrar no fundo daqueles olhos claros estava se encaminhando à vivenciar bem além da fragilidade de seus semelhantes aos quais e por isso imputara vícios e corrupções da carne e do espírito sem estirpe, mesmo sabendo, lá no fundo, que estirpe não vem do berço, senão da formação que o cotidiano amolda e quando e se posta à prova, pode sucumbir ou se revigorar por inteiro no latifúndio da qualidade.

Embevecido e tonto se entregou ao gozo daquele flerte e com surpresa rapidamente ultrapassou a fase preliminar mergulhando com mais velocidade ainda, nas demais fases. Lá estava ela nua e linda, linda e nua, emoldurando sua cama, local de tantas reflexões, transformada em oásis de todas as loucuras, de pura luxúria, todos os prazeres.... Não conseguia entender e nem queria é verdade, como uma mulher fosse capaz de causar-lhe tantas emoções e deleite enquanto se deixava levar pela inércia mental e material que, desconhecida e suave o forçava a exaurir-se neste momento... nada fora antes, até ali, nada... Agora, tudo era e mais seria...

A relação amorosa continuou desde então a fluir afortunadamente para si e, um a um, iam sendo revistos conceitos e cláusulas pétreas de que fora feito... O tempo que passava junto com a amada não tinha passado ou futuro somente aquele presente que apagava tudo. A felicidade não necessita de rótulos para existir realmente, ela é apenas a complementação de nós mesmos e não se situa longe de nosso próprio momento e do que somos, estando logo ali ao alcance da mão, dentro da mão... Longe, a felicidade é independente e relativa, absoluta e absurda...

A tranquilidade dele era maculada apenas pelo fato de querê-la mais tempo, todo o tempo perto de si e encontrar nela certa resistência que não entendia a razão. Passados alguns meses do relacionamento, não resistindo mais tantas incertezas e indefinições, colocou-a na situação de aceitar ou não o fato de trazerem o relacionamento à luz do sol, para que todos tomassem conhecimento de tanto, não aguentava mais tê-la distante, um segundo sequer... Soube pela própria moça, então, que ela era casada com um terceiro e vivenciava uma grave crise neste relacionamento quando o encontrou... Golpe dado, duro, assimilado entanto pelo amor imensurável que o revestia... De imediato e decisivo, formulou a solução pelo rompimento desse relacionamento marcando o início de uma relação estável entre ambos. E assim foi feito. Nas ruínas de um casamento encerrado, os alicerces do relacionamento que, via transversa, também colaborara para sepultar àquele...

Desde então passaram-se não mais que oito anos e a relação ou concubinato começou a dar mostras de deterioração... Não era mais o que fora ao início, naqueles tempos de descomprometimento; a chegada de filhos desanuviara temporariamente os percalços, todavia e ao longo do tempo os agravara. Nada era como antes, nada encaixava e as reclamações recíprocas cada vez mais iam se tornando rotina. Ele não era mais o sujeito enxuto dos tempos de moço; ela, não podia mais ser o que fora para ele. Tudo ia mal e as brigas cada vez mais davam conta claramente para ele de que poderia ocorrer consigo o que ocorrera anteriormente para o terceiro, ex-dela. Começou a observar tudo utilizando os antigos métodos dedutivos somente que, agora, era movido pelo estranho veneno da dúvida e cada movimento inocente significava uma confirmação de seus medos e receios mais profundos. Sorveu gota a gota esse veneno de forma a, logo adiante, exalá-lo pelos próprios poros. A vida tornou-se um inferno. Não tinha mais o medo de perder sua amada, tinha o medo, o pavor até, de ser ludibriado, traído, enganado. Quanto mais aumentava essa sensação doentia, mais tornava-se ela ex-amada e, como o passado a condenava, mais propensa a efetivamente traí-lo... ah, o ciúme, a dúvida, o mal...

Fechou-se cada vez mais em si mesmo, entrando em violenta depressão. Neste retiro malévolo para dentro de si mesmo, em determinado momento não teve mais dúvidas de que estava sendo objeto de chacota sua mulher, ex-amada, com um terceiro que somente  existia em sua imaginação... O que fazer, eis o dilema! Os ciclos de paixão haviam se acabado restando agora somente gélida aurora no cotidiano do ódio.
CucaDiante das queixas contundentes dela e da disposição expressada de abandoná-lo, durante a derradeira briga, cego de desespero e ódio, matou-a descarregando seu revolver. A cada tiro, se sentia liberto até que não mais balas teve e como que saindo daquele transe deu-se conta do que fizera. Ele que fora tão preparado, lúcido, brilhante nada mais era agora que não um farrapo humano que escrevera o epílogo de uma história que não era a sua e sobre a qual não tinha o direito de findá-la...

Fugiu para não ser preso em flagrante delito, antes que a polícia chegasse ao local do crime. Com certeza foi sua última ação racional....

Desaparecido nos rumos do tempo não voltou a dar notícias sequer para seus filhos que passaram à guarda dos avós maternos. Ingressando na marginalidade pelo conhecimento detido, emérito planejador e organizador dentre outras aptidões, recebeu desse mundo, o do crime, o mesmo reconhecimento que obtivera antes enquanto cidadão respeitado, do bem. Nunca mais se apaixonou se transformando, de novo, em um iceberg de lógica e raciocínio digno de figura como um dos mais procurados, vivo ou morto, pela Polícia. Seus comparsas suspeitavam que aquele homem prático e sem carinho, árido como um deserto, não podia ser humano e obedeciam-no não apenas pelo temor que inspirava todavia porquanto os planos por ele elaborados sempre resultava em êxito, sem delongas ou perigos gratuitos.

Naquele dia tudo corria como fora planejado. Por volta das 23 horas dominaram o vigia da empresa de transportes e o levariam junto consigo até os limites da cidade onde o abandonariam ainda de olhos vendados e mãos amarradas... só que surgiu uma terceira personagem com a qual não contavam: a mulher do vigia que levara-lhe o jantar demorara mais tempo do que o normal para retirar-se, acabando por ver a ação em curso e, pensando não ter saída ou simplesmente por abissal medo, histericamente começou a gritar e correr levando um dos integrantes do bando a atirar nela e no próprio vigia que a acudira. Vendo a cena, ouvindo o som histérico da mulher e os tiros dados, ele ingressou em um transe do qual nunca mais sairia... Sua própria ação delituosa, que deletara totalmente de seu cérebro e lembrança, voltara com inexcedível força e o fustigava por igual, em indizível tormento... O precário vídeo-tape de seu passado, tantos tiros, uma mulher histérica gritando e sendo morta, tudo enfim, o levou para a escuridão do nunca mais... Caminhou até seu comparsa assassino e, convencido de que este matar sua mulher, o matou... Foi ele mesmo quem chamou a polícia para justificar que o assassinato que cometera o fizera em legítima defesa de sua mulher e que infelizmente não pudera evitar sua morte... o mundo rodava, tudo rodava... Foi preso, finalmente!

Agora, cada dia que passava vinha confirmar sua nova posição diante do que via e ouvia; todos o diziam louco, paranoico, esquizofrênico e o próprio local onde se encontrava detido, o Instituto Psiquiátrico Forense, escancarava que tal crença era tida pela própria Justiça como verdadeira... louco, doente da razão estava o mundo, a sociedade, todos os outros, ele apenas matara o assassino de sua amada mulher. Vez que outra, porém, as imagens se embaralhavam e via sua mulher estendida ora no depósito da transportadora, ora na sala ou quarto de sua casa... e aquelas crianças, quem eram?... tudo era vago e estranho...

Divagava, rápida e profundamente que à dedução nada escapa e ela lhe oferecia a realidade de que não praticara o ato que lhe imputavam, confusamente trazido a baila a eliminação daquele que assassinara sua mulher com a acusação de que, horror dos horrores, também ela ele havia matado...

Em sua respeitável sentença assim discorreu o Meritíssimo Juízo: “... É nada escapa a dedução, nem mesmo a nossa condição de seres humanos, suscetíveis de erro e acertos, inclusive quando limitamos ou graduamos o tempo que é ilimitado, esquecendo-nos de que um momento pode durar apenas um segundo ou dezenas de anos. E quando deduzo que quase uma década, longo tempo para alguns, pode transfigurar-se em apenas um momento divisor entre o racional e o irracional, ou vice-versa, aceito a dedução como uma regra que admite a insuspeitada exceção de que, apesar de toda a impossível e procurada perfectibilidade, dentro de nossa imperfeição, somos às vezes mais irracionais que o próprio animal irracional que nada sabe e por isso dignos da compreensão e piedade daqueles que mantém, quem sabe com que sacrifícios, uma visão mais elevada, ainda humana sobre seus semelhantes e o meio em que vivem.

A irracionalidade do réu vivida e extravasada há muito tempo atrás continua fechada a sete chaves em uma caixa qualquer alojada em um canto escuro de seu cérebro; por certo e no mínimo livra-o do remorso e dor que lhe causaria a mera lembrança de tanto pois que provado está o imensurável amor que nutria pela mulher que assassinou, como tanto depuseram e reverenciaram as testemunhas.

Não saberia dizer se vale a pena ou o que acrescentaria à Justiça e à Sociedade abrirmos tal caixa e ver o réu, aí sim, estrebuchado vivenciar o trapo humano que já é, embora não tenha consciência disso. Para nós, cuja pele nem foi arranhada pelo problema, exceto pela dose de comiseração inerente às pessoas, é fácil pedir justiça, fazer o possível para despertar no homem bom que foi, o assassino adormecido , para àquele sofrer o que merece por atos deste; a realidade, todavia, é que o réu já foi punido e continuará sendo até o fim de seu tempo, encerrado em um mundo que é vedado a todos nós, onde o sol se mistura a chuva, a água ao óleo e o réu aos próprios réus que criou e recriou em sua vida...
... Condeno o réu à Medida de Segurança para que ele seja objeto de tratamento psiquiátrico, mais forçado pela contingência legal, do que por desejar ou pretender, venha o mesmo despertar para o mundo real...”

Alguns anos depois da condenação, ainda sob tratamento Psiquiátrico, sem retorno ou possibilidades efetivas de cura, encontraram o corpo do réu  sem vida dentro da minúscula cela que o abrigava.

Por um detalhe importante, admite-se que ao menos por algum instante ele voltou a ser sadio ou normal como queiram, para logo a seguir cometer a loucura (ou normalidade, para o caso?) do suicídio: Na mão esquerda, punho cerrado, um bilhete que dizia

“Ninguém pode conviver como seu próprio algoz... nem mesmo eu...Desculpem!”. 


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