domingo, 16 de junho de 2013

OUTRAS PEQUENAS HISTÓRIAS DE UM MOLEQUE QUALQUER (Continhos)


Outras pequenas histórias de um moleque qualquer

Aquele era um dia especial. À noite viria o primeiro (e único, viu-se depois, eis que casaram e viveram muitos e muitos anos juntos e só a morte do varão os separou, geraram extensa prole) candidato a namorado da irmã mais velha do moleque, a Rita, pedir para frequentar a casa, oficializar o namoro, essas coisas de então. Pela manhã a mãe do moleque fora a vizinha cidade argentina de Passo de Los Libres para realizar compras de lá trazendo quase l,5 kg de mortadela tipo bolonha e a delícia chamada “Dulce de Leche” (Doce de Leite), além de uma caixa de balas da marca Cremalin, também de leite. O moleque adorava tudo aquilo e desde a chegada da mãe iniciou o cerco para pelo menos comer um pouquinho do Dulce de Leche, pois não; mas sua mãe, ciosa inclusive quanto aos acontecimentos da noite, negou-lhe tudo, dizendo que após o jantar certamente ele, junto com os demais, mais o rapaz que chegaria para pedir a mão da irmã do moleque coisa que um dia ele entenderia e blá, blá, blá e blá blá blá. A única coisa que naquele momento o moleque entendia era daquele doce especialmente e do quilo de delícia contido naquele vidro fechado cujo olor do doce, embora só na imaginação do moleque, deixava escapar.

Enquanto isso a irmã sortuda que à noite teria a confirmação e reconhecimento do namoro, ao final da manhã, se apressou em lavar e encerar o chão da sala por onde haveria de entrar o namorado, fechando-a logo após e advertindo a todos, especialmente ao moleque, que não era permitido a ninguém entrar nesse recinto. Ocorre que no mesmo ficava o armário onde a mãe do moleque havia guardado a mortadela e o vidro de doce de leite, intactos...

À tarde, como era de costume então, todos foram sestear, dormir logo após o almoço, menos o moleque que não era de dormir à tarde, preferindo a manhã encompridando o sono da noite. Então aquela janela da sala era um convite, um passaporte para pelo menos dar só uma provadinha no doce, só um naquinho, nada mais que um naquinho... Apoderando-se de uma colherzinha de chá na cozinha, o moleque pulou a janela, abriu o armário da dispensa (a cristaleira, como chamavam) e não sem muito esforço abriu o vidro daquela delícia chamada Dulce de Leche, enfiando a colherzinha colhendo de imediato um grande naco que degustou com insuperável sensação de prazer, saindo da sala, indo embora, para longe daquela tentação... nem cinco minutos depois lá estava ele de novo pulando a janela e, agora, mergulhou a colherzinha duas vezes no vidro e na boca... saiu de novo da sala, não sem antes perceber que, ao lado do vidro, se encontrava a mortadela e, quem sabe, fosse um bom petisco se somada ao gosto do doce, sabe-se lá... lá fora, além do desejo de voltar e comer mais um pouquinho só do doce, somou-se a curiosidade de provar, junto, a mortadela e, ainda que indeciso, muniu-se de uma faca na cozinha e lá foi saltar a janela, o que acabou fazendo a tarde toda, comendo todo o Dulce de Leche e toda a mortadela, sabendo-se perdido pelo pecado da gula.

Sobreveio o café da tarde e sua tia Dila serviu o moleque de uma taça de café com leite de mais ou menos 200,00 ml que o moleque tomou acompanhando-a com doze bolachas marinheiras (espécie de biscoitão argentino) que fora também trazido por sua mãe, junto com as latas de patê, de sardinha, alfajores e muito mais.
Na hora certa chegou o pretendente, Gelci, e foi recebido pelo pai da pretendida... Da conversa o que mais sobressaiu e marcou a memória de todos, foi a sentença ditada pelo pai com voz firme e ar circunspecto, sisudo, cientificado das intenções e profissão do pretendente (mestre padeiro) e dando sua permissão ao namoro: “Então o senhor é padeiro. Pois bem, tem a minha permissão, o senhor pode namorar minha filha, frequentar minha casa nos dias tais e tais, no horário das tantas as tantas, entretanto, quero deixar bem claro que minha filha não é massa para o senhor sovar e sovar, passar no cilindro e depois largar para que o fogo do forno ou da maledicência alheia a cozinhe...”.

Após a janta que se seguira, viria a sobremesa tendo a mãe da moça e do moleque alertado a todos sobre o doce de leite que seria servido, lançando um olhar e sorriso alegre ao moleque pois chegara a hora e ele veria que teria valido a pena esperar. Surpresa! No vidro de doce nem uma colherzinha que fosse restara, e da própria mortadela restara apenas o barbante...Como? Quem?... tia Eustáquia foi a primeira a falar, vi o moleque pulando a janela com uma colherzinha na boca... tia Dila falou mais alto, não pode ser, o moleque tomou café com 12 marinheiras eu servi ele e sei e não tem tamanho nem estômago suficiente no probrezinho para tanto, isso é invencionice da tia Eustáquia e bem se sabe que toda e qualquer coisa que acontece culpam o pobrezinho do moleque, mas desta volta não vou deixar, eu sei que não foi ele, não pode ter sido ele, tenho certeza.

O mistério não durou vinte e quatro horas, o pai do moleque conseguiu persuadi-lo a confessar o que fizera e como fizera, restando-lhe um grande castigo cumprido parcial e minimamente adiante... pelo menos de uma bela surra escapara desta, como de outras vezes...

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Aos cinco anos de idade para escapar de uma surra o moleque “fugiu” para a casa da avó Nãna, mãe de sua mãe, que ficava a uma distância não superior a 100,00 metros da casa materna, passando a morar com a avó até os onze anos quando esta veio a falecer. Ganhou um cachorro chamado Flopes que foi ensinado pela avó para obedecê-lo. Flopes era tudo de bom em matéria de cão, fazia tudo que o moleque mandava, pega, larga, vai, vem, etc. Na enorme área habitada pela família a casa da avó ficava mais ou menos no meio, ao lado do poço artesiano de onde se retirava a água potável para beber e um pouco pelo lado do açude gerado pela nascente d’água que percorria no sentido longitudinal o terreno de ponta a ponta, ora formando uma espécie de piscina (o açude) ora, em seqüência, algumas sangas, cercadas por árvores frutíferas como pessegueiros, laranjeiras, pitangueiras, figueiras, etc., e pelos taquarais (taquaras e bambus de onde se extraíam caniços p’rá pescaria e varetas p’rá pandorgas ou pipas ou papagaios, como queiram). Mas, também, a enorme área de terreno guardava seus mistérios e seus fantasmas. Tinha, por exemplo, a “Mulher de Branco” que assombrava os incautos nas noites enluaradas e nas noites de inverno, especialmente, que rivalizava nos medos do moleque com o famoso Sete Trouxas, fisicamente ao alcance dos seus olhos e mãos; mais distante todavia presente, fugidiamente,  existiam na imaginação do moleque a Mula Sem Cabeça, o Bicho Papão e outros entes fantásticos menos votados...

Infelizmente a avó, a quem o moleque adorava sendo a única pessoa que ele respeitava com veneração, adoecera gravemente estando então acamada. N’um daqueles dias, o moleque aprontara todas para sua tia Dila enquanto sua mãe fora a Passo de Los Libres para realizar compras (na Argentina, por questão de câmbio e de melhores condições de riqueza do País, então, as mercadorias eram muito mais baratas do que em Uruguaiana); quando a mãe do moleque chegou ao anoitecer, Dila fez um rosário de queixas do moleque que fizera isto, aquilo e mais aquilo e que não obedecia, passara toda a tarde infernizando sua vida, blá, blá, blá e blá, blá, blá e... ao que a mãe do moleque, sabendo que ele estava perdido pelo campo disse, deixa estar que agora quando chamá-lo para jantar vamos levá-lo lá para o quarto grande (que ficava quase 60,00m lineares de distância do quarto onde estava sua avó) e vou dar-lhe uma surra para aprender a respeitar e deixar de ser malcriado, etc.; o moleque que estava vigilante desde a chegada de sua mãe e controlando para ver se sua tia Dila faria queixas dele, saiu do esconderijo onde estava gritando impropérios para a mãe e para a tia, dirigindo-se ao quarto da avó onde pretendia se homiziar e entregar aquelas malvadas que queriam lhe surrar. Com uma rapidez desconhecida, tia Dila postou-se à porta do quarto da avó do moleque impedindo sua entrada e querendo agarrá-lo, este então escapuliu para o campo acompanhado pelo seu fiel cachorro, o Flopes, lá permanecendo. Algum tempo depois a avó do moleque questionou Dila e a mãe dele para saber onde andava o mesmo; está brincando foi a resposta enquanto o chamavam... mas não teve rogos da tia Dila, de sua mãe que fizesse o moleque voltar, mesmo que sua avó doente agora, diziam, o chamava e ninguém iria impedi-lo de entrar no quarto dela, nem tentariam pegá-lo, nem bateriam nele... o fato é que ele não confiava fosse verdade isso tudo e por isso permanecia à beira do açude perto do poço artesiano, ao luar e sob o frio do inverno daqueles junhos de Uruguaiana ...

Como fazê-lo voltar para casa, acalmar a avó que o queria perto? Os rogos de todos não adiantavam... o que fazer? Então a irmã do moleque, Ezolda, quase três anos mais velha do que ele teve a brilhante idéia, logo aceita por todos, de se cobrir com um lençol branco e se postar atrás do muro do poço surgindo dali, a 15,00m da barranca do açude onde se encontrava o moleque e seu cachorro, fingindo-se de “Mulher de Branco”, assustando-o... E assim fez, esgueirando-se chegou ao poço e de lá abrindo os braços para dar maior amplitude à figura fantasmagórica que pretendia criar, assombrou o moleque que, n’um primeiro momento sentiu horripilante e gelado arrepio só voltando-se um pouco à realidade quando ouviu o rosnado de Flopes a seus pés, daí a gritar “pega” foi um lapso e Flopes saiu à cata do “fantasma” que a esta altura fugia berrando larga Flopes, pára Flopes, socorro, entrando em casa, sala a dentro, passando por sobre o colo do casal de namorados que ali estavam (o Gelci e a Rita, lembram), com o Flopes em seus calcanhares, fazendo o mesmo. Foi um alarido global, com todo mundo indo para socorrer Ezolda, a esta altura sob o acolchoado e cobertores da cama da mãe, com a Flopes não lhe dando tréguas, todavia sem mordê-la... Enquanto isso o moleque, aproveitando, rindo às gargalhadas ingressou no quarto de sua avó Nãna, que lhe perguntou o que estava havendo ao que candidamente disse que estava brincando com a Ezolda e, ao ser perguntado se já havia jantado disse que não e que queria jantar ali ao lado da avó e, até, dormir com ela, tanta era sua saudade...

E como decretou José de Alencar em sua Iracema, tudo passa sobre a terra... também essa passou para o moleque que, de novo, não teve qualquer castigo (a avó não deixava que o castigassem, de jeito nenhum).

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