Outras pequenas
histórias de um moleque qualquer
Aquele era um dia especial. À
noite viria o primeiro (e único, viu-se depois, eis que casaram e viveram
muitos e muitos anos juntos e só a morte do varão os separou, geraram extensa prole)
candidato a namorado da irmã mais velha do moleque, a Rita, pedir para frequentar a
casa, oficializar o namoro, essas coisas de então. Pela manhã a mãe do moleque
fora a vizinha cidade argentina de Passo de Los Libres para realizar compras de
lá trazendo quase l,5 kg de mortadela tipo bolonha e a delícia chamada “Dulce
de Leche” (Doce de Leite), além de uma caixa de balas da marca Cremalin, também
de leite. O moleque adorava tudo aquilo e desde a chegada da mãe iniciou o
cerco para pelo menos comer um pouquinho do Dulce de Leche, pois não; mas sua
mãe, ciosa inclusive quanto aos acontecimentos da noite, negou-lhe tudo,
dizendo que após o jantar certamente ele, junto com os demais, mais o rapaz que
chegaria para pedir a mão da irmã do moleque coisa que um dia ele entenderia e
blá, blá, blá e blá blá blá. A única coisa que naquele momento o moleque
entendia era daquele doce especialmente e do quilo de delícia contido naquele
vidro fechado cujo olor do doce, embora só na imaginação do moleque, deixava
escapar.
Enquanto isso a irmã sortuda que à
noite teria a confirmação e reconhecimento do namoro, ao final da manhã, se
apressou em lavar e encerar o chão da sala por onde haveria de entrar o namorado,
fechando-a logo após e advertindo a todos, especialmente ao moleque, que não
era permitido a ninguém entrar nesse recinto. Ocorre que no mesmo ficava o
armário onde a mãe do moleque havia guardado a mortadela e o vidro de doce de
leite, intactos...
À tarde, como era de costume
então, todos foram sestear, dormir logo após o almoço, menos o moleque que não
era de dormir à tarde, preferindo a manhã encompridando o sono da noite. Então
aquela janela da sala era um convite, um passaporte para pelo menos dar só uma
provadinha no doce, só um naquinho, nada mais que um naquinho... Apoderando-se
de uma colherzinha de chá na cozinha, o moleque pulou a janela, abriu o armário
da dispensa (a cristaleira, como chamavam) e não sem muito esforço abriu o
vidro daquela delícia chamada Dulce de Leche, enfiando a colherzinha
colhendo de imediato um grande naco que degustou com insuperável sensação de
prazer, saindo da sala, indo embora, para longe daquela tentação... nem cinco
minutos depois lá estava ele de novo pulando a janela e, agora, mergulhou a
colherzinha duas vezes no vidro e na boca... saiu de novo da sala, não sem
antes perceber que, ao lado do vidro, se encontrava a mortadela e, quem sabe,
fosse um bom petisco se somada ao gosto do doce, sabe-se lá... lá fora, além do desejo de voltar
e comer mais um pouquinho só do doce, somou-se a curiosidade de provar, junto,
a mortadela e, ainda que indeciso, muniu-se de uma faca na cozinha e lá foi
saltar a janela, o que acabou fazendo a tarde toda, comendo todo o Dulce de
Leche e toda a mortadela, sabendo-se perdido pelo pecado da gula.
Sobreveio o café da tarde e sua
tia Dila serviu o moleque de uma taça de café com leite de mais ou menos 200,00 ml
que o moleque tomou acompanhando-a com doze bolachas marinheiras (espécie de
biscoitão argentino) que fora também trazido por sua mãe, junto com as latas de patê, de sardinha, alfajores e muito mais.
Na
hora certa chegou o pretendente, Gelci, e foi recebido pelo pai da
pretendida... Da conversa o que mais sobressaiu e marcou a memória
de todos, foi a sentença ditada pelo pai com voz firme e ar
circunspecto, sisudo, cientificado das intenções e profissão do
pretendente (mestre padeiro) e dando sua permissão ao namoro: “Então
o senhor é padeiro. Pois bem, tem a minha permissão, o senhor pode
namorar minha filha, frequentar minha casa nos dias tais e tais, no
horário das tantas as tantas, entretanto, quero deixar bem claro que
minha filha não é massa para o senhor sovar e sovar, passar no
cilindro e depois largar para que o fogo do forno ou da maledicência
alheia a cozinhe...”.
Após a janta que se seguira,
viria a sobremesa tendo a mãe da moça e do moleque alertado a todos sobre o doce
de leite que seria servido, lançando um olhar e sorriso alegre ao moleque pois
chegara a hora e ele veria que teria valido a pena esperar. Surpresa! No vidro
de doce nem uma colherzinha que fosse restara, e da própria mortadela restara
apenas o barbante...Como? Quem?... tia Eustáquia foi a primeira a falar, vi o
moleque pulando a janela com uma colherzinha na boca... tia Dila falou mais
alto, não pode ser, o moleque tomou café com 12 marinheiras eu servi ele e sei
e não tem tamanho nem estômago suficiente no probrezinho para tanto, isso é
invencionice da tia Eustáquia e bem se sabe que toda e qualquer coisa que
acontece culpam o pobrezinho do moleque, mas desta volta não vou deixar, eu sei que
não foi ele, não pode ter sido ele, tenho certeza.
O mistério não durou vinte e
quatro horas, o pai do moleque conseguiu persuadi-lo a confessar o que fizera e
como fizera, restando-lhe um grande castigo cumprido parcial e minimamente
adiante... pelo menos de uma bela surra escapara desta, como de outras vezes...
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Aos cinco anos de idade para
escapar de uma surra o moleque “fugiu” para a casa da avó Nãna, mãe de sua mãe,
que ficava a uma distância não superior a 100,00 metros da casa materna,
passando a morar com a avó até os onze anos quando esta veio a falecer. Ganhou
um cachorro chamado Flopes que foi ensinado pela avó para obedecê-lo. Flopes
era tudo de bom em matéria de cão, fazia tudo que o moleque mandava, pega,
larga, vai, vem, etc. Na enorme área habitada pela família a casa da avó ficava
mais ou menos no meio, ao lado do poço artesiano de onde se retirava a água
potável para beber e um pouco pelo lado do açude gerado pela nascente d’água
que percorria no sentido longitudinal o terreno de ponta a ponta, ora formando
uma espécie de piscina (o açude) ora, em seqüência, algumas sangas, cercadas
por árvores frutíferas como pessegueiros, laranjeiras, pitangueiras, figueiras,
etc., e pelos taquarais (taquaras e bambus de onde se extraíam caniços p’rá
pescaria e varetas p’rá pandorgas ou pipas ou papagaios, como queiram). Mas,
também, a enorme área de terreno guardava seus mistérios e seus fantasmas. Tinha,
por exemplo, a “Mulher de Branco” que assombrava os incautos nas noites enluaradas
e nas noites de inverno, especialmente, que rivalizava nos medos do moleque com
o famoso Sete Trouxas, fisicamente ao alcance dos seus olhos e mãos; mais distante
todavia presente, fugidiamente, existiam na imaginação do moleque a Mula Sem
Cabeça, o Bicho Papão e outros entes fantásticos menos votados...
Infelizmente a avó, a quem o
moleque adorava sendo a única pessoa que ele respeitava com veneração, adoecera
gravemente estando então acamada. N’um daqueles dias, o moleque aprontara todas
para sua tia Dila enquanto sua mãe fora a Passo de Los Libres para realizar
compras (na Argentina, por questão de câmbio e de melhores condições de riqueza
do País, então, as mercadorias eram muito mais baratas do que em Uruguaiana);
quando a mãe do moleque chegou ao anoitecer, Dila fez um rosário de queixas do
moleque que fizera isto, aquilo e mais aquilo e que não obedecia, passara toda
a tarde infernizando sua vida, blá, blá, blá e blá, blá, blá e... ao que a mãe do
moleque, sabendo que ele estava perdido pelo campo disse, deixa estar que agora
quando chamá-lo para jantar vamos levá-lo lá para o quarto grande (que ficava
quase 60,00m lineares de distância do quarto onde estava sua avó) e vou dar-lhe
uma surra para aprender a respeitar e deixar de ser malcriado, etc.; o moleque
que estava vigilante desde a chegada de sua mãe e controlando para ver se sua
tia Dila faria queixas dele, saiu do esconderijo onde estava gritando
impropérios para a mãe e para a tia, dirigindo-se ao quarto da avó onde
pretendia se homiziar e entregar aquelas malvadas que queriam lhe surrar. Com
uma rapidez desconhecida, tia Dila postou-se à porta do quarto da avó do
moleque impedindo sua entrada e querendo agarrá-lo, este então escapuliu para o
campo acompanhado pelo seu fiel cachorro, o Flopes, lá permanecendo. Algum tempo depois a avó do moleque questionou Dila e a mãe dele para saber onde andava o mesmo; está brincando foi a resposta enquanto o chamavam... mas não teve rogos da tia Dila, de
sua mãe que fizesse o moleque voltar, mesmo que sua avó doente agora, diziam, o chamava e ninguém iria impedi-lo de entrar no quarto dela, nem tentariam pegá-lo, nem bateriam nele... o fato é que ele não confiava fosse verdade isso tudo e por isso permanecia
à beira do açude perto do poço artesiano, ao luar e sob o frio do inverno daqueles junhos de Uruguaiana ...
Como fazê-lo voltar para casa,
acalmar a avó que o queria perto? Os rogos de todos não adiantavam... o que
fazer? Então a irmã do moleque, Ezolda, quase três anos mais velha do que ele
teve a brilhante idéia, logo aceita por todos, de se cobrir com um lençol
branco e se postar atrás do muro do poço surgindo dali, a 15,00m da barranca do
açude onde se encontrava o moleque e seu cachorro, fingindo-se de “Mulher de
Branco”, assustando-o... E assim fez, esgueirando-se chegou ao poço e de lá
abrindo os braços para dar maior amplitude à figura fantasmagórica que
pretendia criar, assombrou o moleque que, n’um primeiro momento sentiu
horripilante e gelado arrepio só voltando-se um pouco à realidade quando ouviu
o rosnado de Flopes a seus pés, daí a gritar “pega” foi um lapso e Flopes saiu
à cata do “fantasma” que a esta altura fugia berrando larga Flopes, pára
Flopes, socorro, entrando em casa, sala a dentro, passando por sobre o colo do casal de
namorados que ali estavam (o Gelci e a Rita, lembram), com o Flopes em seus calcanhares, fazendo o mesmo.
Foi um alarido global, com todo mundo indo para socorrer Ezolda, a esta altura
sob o acolchoado e cobertores da cama da mãe, com a Flopes não lhe dando
tréguas, todavia sem mordê-la... Enquanto isso o moleque, aproveitando, rindo às gargalhadas ingressou no quarto de sua avó Nãna, que lhe perguntou o que estava havendo ao
que candidamente disse que estava brincando com a Ezolda e, ao ser perguntado
se já havia jantado disse que não e que queria jantar ali ao lado da avó e,
até, dormir com ela, tanta era sua saudade...
E como decretou José de Alencar
em sua Iracema, tudo passa sobre a terra... também essa passou para o moleque
que, de novo, não teve qualquer castigo (a avó não deixava que o castigassem, de jeito nenhum).
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