quarta-feira, 19 de junho de 2013

SETE TROUXAS (VELHO DAMIÃO) - (Continho)


SETE-TROUXAS (Velho Damião)




Deixou à mostra o dente canino superior direito quando em um arremedo de risada escancarou a boca quase deserta e emitiu um som gutural e assustador que dava arrepios e medo à gurizada. Cercado pelas trouxas de roupas sujas que sempre trazia consigo era a própria personificação do “bicho papão” com que as mães assustavam seus filhos, impondo-lhes o sono que não sentiam ou o bom comportamento que não possuíam.

Devido às trouxas recebeu, ninguém sabe quando, o apelido de Sete-Trouxas. Os adultos e iniciados o conheciam como Velho Damião. Com qualquer desses nomes ou apelidos era conhecido em toda a Uruguaiana, cidade brasileira, fronteira à Argentina, banhada pelo rio Uruguai, com sua Padroeira Sant’Ana, mão da Virgem Maria (daí o nome, Uruguaiana) e imensa planície chamada Pampa, a terra coberta de grama, a mulher, a mãe generosa e prendada...

Pela sua singularidade, excepcionalidade até, o Sete-Trouxas transformou-se, ao longo de aparições ocasionais e desaparecimentos inexplicáveis à gurizada, como sem explicação era sua própria origem, na estrela máxima do pitoresco tão farto de nomes em minha cidade, reacendendo a cada aparição a chama eterna do mito...

Naquele dia estava sentado em meio às trouxas, retendo toda curiosidade infantil que o rodeava, rindo de alguma coisa que a todos passava desapercebido. De repente, o céu se encheu de sons alvoroçados e mil trovões passearam impunes por sobre todas as cabeças, se afastando a medida em que o avião se afastava; a reação de Bubu, como também era chamado pelas crianças, foi sumir por entre suas trouxas, delas emergindo muito tempo após ter retornado a paz da manhã, sem o alucinante som causado por um avião em velocidade acima da barreira do som...

Daí, como que fugindo de alguma coisa incompreensível e intangível às crianças que o cercavam, partiu imediatamente para um local que fosse mais seguro e evitasse o perigo que o avião lhe representava. O paradoxal é que o avião não oferecia medo à gurizada enquanto que ao Sete-Trouxas sim e este por sua vez, à gurizada...Talvez inspirasse temor pelo pedaço de desconhecido e magia que materializava, talvez...

Para os adultos Sete-Trouxas era um louco inofensivo cuja evocação do nome impunha respeito, temor e calma às crianças. Para estas, uma figura saída sabe-se lá de que pesadelo ou sonho, deformada pelo mundo que não sabiam explicar como em um primeiro instante causava medo para logo adiante se transformar em outro sentimento, ameno, calmo, simpático até, no misto de ternura e cumplicidade que se refletia na energia compartilhada entre a personagem e os expectadores circunstanciais. Eis um fenômeno que não necessita de análise profunda para ser explicado: o pobre Velho Damião, louco e inofensivo, em meio às trouxas que carregava e lhes serviam de abrigo, peregrinava pelo infinito e temia a máquina, sendo quando a encontrava ou ouvia o som de sua passagem bem mais infantil do que as crianças que inadvertidamente assustava e atraía. Em suas trouxas carregava, o pó das ruas, parques e avenidas de Uruguaiana, como as crianças carregavam as esperanças de seus familiares...

Como um cometa de aparições irregulares, Sete-Trouxas passou à constelação do mundo infantil uruguaianense, arrastando como caudatários a curiosidade e ternura de todas as crianças que o conheceram. Alternadamente, Sete-Trouxas aparecia e desaparecia; ora era visto se refestelando nas águas do Salso ou do Riacho, ora recolhido e encolhido, pelo frio, em meio às trouxas, sob uma árvore na Curva da Morte; outras, nas redondezas do Hospital de Caridade e, incrível, simultaneamente, investido de uma ubiqüidade emprestada gratuitamente pela fantasia, sonhos e medos de todas as crianças, se encontrava no Prado das Bicicletas, na Cova da Onça, na Ponte Internacional, pelos quartéis, em frente ao Cemitério, na lua...

Devido as ausências inexplicáveis para muitos, Velho Damião foi acrescentando às trouxas a fama da imortalidade, tendo quem afirmasse, com evidente exagero, que fora testemunha ocular da fundação da Vila Santana Velha, início de Uruguaiana, pelo reverenciado Domingos de Almeida; que participara de guerras, inclusive às 1ª e 2ª. guerras mundiais, mais, da Gerra Civil Espanhola onde presenciara o teste nazista efetivado pela aviação alemã em Guernica, lá pelos meados da década de 1930, quem sabe advindo dessas passagens o imensurável pavor de aviões que possuía...

Durante o tempo que desaparecia, afirmavam que era recolhido pela piedosa família Telechea em fazenda localizada junto à cidade propriamente dita. Outras vezes, que demorava alguns meses ou dias junto à piedosa família Marcantes, lá pelos lados da Vila Ferroviária. Quase ao final de sua trajetória, afirmam, foi recolhido ao Asilo de Velhinhos de onde finalmente partiu para outra...

Sete-Trouxas era aparentemente mudo, dificilmente se fazendo entender através dos sons e gestos desconexos que efetuava, todavia, pela exaustiva repetição de alguns deles, mormente quando irrompia do céu batendo na terra o som de um avião intrometido, contava uma história de síndromes e traumas na tentativa de ser, quem sabe, um pouco como quase todo o mundo, tendo início, meio e fim. Gesticulando apontava o céu, emitia sons incompreensíveis enquanto suas mãos, segurando a cabeça, simulava espanto e desconsolo e daí planando-as em piruetas imaginárias às deixava cair abruptamente, em ângulo reto, rumo ao chão, com os dedos unidos e estendidos, fechando os olhos como em desmaio e, ao abri-los, esbugalhados, sua mão direita já fazia piruetas ao redor da orelha esquerda enquanto a cabeça se mexia como se fosse o próprio pêndulo do tempo retrocedendo até um momento distante, trágico, mágico, intangível, parado, perdido... Os intérpretes dessa mímica diziam que nela ele apresentava seu surgimento em Uruguaiana, que sofrera um acidente aéreo e perdera o passado; outros diziam que oferecia-se uma boa explicação para o fato de sua “loucura” em fobia, síndrome, ou trauma pós guerra em que o Bubu teria participado e onde deixara de ser o que fora para nunca mais se encontrar... Outros, ainda, diziam que havia sobrevivido, com seqüelas intangíveis e inimagináveis à Gripe Espanhola... Para a gurizada cheia de crenças e mistérios, nada disso importava, até porque certamente o Velho Damião, havia caído do dorso do Pégaso e , por isso mesmo, desde a mitologia grega direto ao chão de Uruguaiana, representando um mundo, isto sim, não muito distante deles, de fantasia, onde o tempo e o espaço não têm medidas, sendo o velho Bubu uma fantasia real que, vez que outra, com um gotinha a mais  de coragem se podia tocar com os dedos...

O fato é que todos explicavam tudo porém ninguém se convencia de nada sobre o Sete-Trouxas familiar aos olhos e sentidos, todavia distante pela carcaça e aura de mistério que o envolvia em sua origem, história e estórias, desatinos e errante forma de viver, circunscrita aos limites de Uruguaiana, sem ter de seu nada além do que àquelas trouxas, a ternura do povo, o alvoroço da gurizada e a palavra muda de uma história jamais contada...

A última vez que o vimos, antes de deixarmos Uruguaiana rumo à Porto Alegre (dos Casais, lembram) foi lá pelas bandas do cemitério municipal e nos assaltou aquela impressão do sobrenatural bicho-papão que se desligava de nossa ingênua e infantil imaginação, vestindo-se agora, nessa loucura de nos termos tornado adolescentes, de brutal e áspera realidade, trazendo-nos à conta do rompimento do elo que o manteve cativo e identificado com o infinito de nossa própria fantasia!

Dizem que Sete-Trouxas deixou sua Uruguaiana para sempre e que a cidade chorou sua morte na crônica e na voz emocionada do grande locutor da Rádio Charrua, Mário Pinto (ele próprio, um mito), ou de Mário Dino Papaleo (outro mito). A verdade, porém, é que mitos como o Sete- Trouxas (Bubu, Velho Damião, como queiram) não morrem jamais e ele que foi mito nessa expressão de realidade que pretensiosamente denominamos vida, continuará a aparecer vez que outra pelas ruas de Uruguaiana, senão diante dos meninos que fechando os olhos apressarão o sono que não têm ou reduzirão a marcha de suas traquinagens, na fantasia daqueles adultos que o vivenciaram enquanto crianças e passam de geração à geração sua história ou a parte de sua história que minha Uruguaiana gloriosamente reteve, contou, sem jamais contá-la... Assim, Sete-Trouxas continuará a desfilar na fantasia dos inocentes, carregando suas trouxas, as mesmas trouxas que um dia mamãe dissera que recolhiam e escondiam crianças peraltas, querendo assustar pela fantasia todavia e sem querer dizendo uma realidade pois que, vai ver que todas as trouxas do Velho Damião foram sim e quem sabe continuam sendo, indubitavelmente repositórios de todas as molecagens das crianças que um dia fomos...

Na fantasia do Sete-Trouxas esteve e foi fecundada a simplicidade que o tempo nos impõe como perda e quem sabe um dia a Uruguaiana de seu tempo possa materializar o amor que o envolvia, fazendo-o estátua em meio a um parque onde as crianças de novo possam ter com ele e toda a fantasia e quimeras...

Voluntária ou involuntariamente, para os céticos inclusive, tenho para mim que Sete-Trouxas deu graciosamente a visão do impossível, a impressão de que apesar de tudo vale a pena viver, mesmo caindo do dorso do Pégaso ou de dentro do céu...

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