sexta-feira, 12 de março de 2010

Saga

Senhor,
não me agrida com sua barriga
cheia de reis e fartura,
contenha-se!
Sou o Zé que a fome adotou
e, aparentemente, Deus esqueceu.
Sei, e como sei, minha fraqueza
não vêm de sua prepotência e força,
ela vem de meu nome dispersivo
(e forte quando unido -quando?!!!),
de minha desigualdade intrínseca
e de uma vaidade que se deleita
diante da demagogia que a infla
e dilacera.

Senhor,
não me agrida com seus raios
cheios de trovóes e ameaças,
contenha-se!
Vê o céu encher-se de lágrimas
e o mar de céu,
o universo apresentar-se ali ao alcance
da mão e ambição da humanidade?
Escutou acaso o som
de minha humilhação contida,
explodindo minha garganta,
implodindo meu orgulho, minha fé?
(eis-me assim mais fraco, só
e arrebentado).
Caminho sobre brasas,
mas ergo o teu nome,
recebo cinzas e elejo à fome
meu cotidiano.

Senhor,
não me agrida com sua esmola
cheia de fugas e piedade,
contenha-se!
Não busque através dela saldar dívidas
que possa ter com sua consciência.
Não mereço carregar em mim mais este peso,
permita-me a irreverência de recusá-la.
Deixe-me pensar que assim respiro,
pequena travessura deste eterno menino,
este etéreo e intangível ar de liberdade.
Minha imaginação atropelada pela realidade
não fere sua passagem, não atinge sua paisagem.

Senhor, não me agrida com suas promessas
cheias de arco-íris e quimeras,
contenha-se!
Um minuto de seu silêncio
pelo silêncio de uma vida
(sem importância porque minha vida)
um minuto para mim, o seu escravo,
para todos os zés, escravos seus,
que seguirão sem sonhos, ao sabor da história
dela fazendo o embuste
que iludirá os descendentes.
Permito tudo. O que mais deseja? Porque me agride?
Os que virão continuarão a saga da hipocrisia
que me leva a serví-lo. Todos felizes, para sempre.

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