sábado, 13 de março de 2010

Pequena vingança (Mini Conto/Continho)


Hoje, véspera de Natal de um ano qualquer, nem sei se pelo evento maior da Cristandade ter-se transformado, como tudo o mais destes tempos de aflição, nesta corrida consumista insana, comercial, sem limites ou ética, nesta tropelia do ter e do quero mais que esmaga a espiritualidade pelo materialismo pagão e inominável, sei lá se somente por isso ou por algo mais que meu subconsciente esconde diante da futilidade destes tempos, veio-me a mente a história daquele menino, guri, piá que, aos nove anos, em um Natal à moda antiga ganhou de presente o seu primeiro par de sapatos.


Abra-se parêntesis para dizer que até ali andara de pés descalços enfrentando às agruras de solos duros, caminhos cobertos por pedras afiadas e rosetas, espinhos que a Pampa esconde, ruelas, becos, avenidas e trilhas, em verões quentíssimos e invernos gelados do qual quebrara geadas e fizera diuturnamente a via sacra dessas vicissitudes comuns a todos materialmente desafortunados, com as solas dos pés endurecidas, rígidas, rudes, calosas que o continuado enfrentamento proporcionara e bem assim amenizara em boa parte o sofrimento esperado.


E ainda que assim fosse e o uso continuado houvesse deixado as solas dos pés em "melhores condições" para o enfrentamento das intempéries, o frio intenso ou o calor inclemente, espinhos/rosetas, cacos de vidro, lascas de pedras e tanto mais, dilaceraram sua carne, vencendo a barreira natural da calosidade formada, criando chagas e cortes que o tempo, o único e melhor remédio, se encarregara de cicatrizar, até que e novamente, ocorresse um dos fenômenos perversos e doloridos, próprios dos cíclos citados.


O guri não se continha de tanta felicidade ao receber de presente seu primeiro par de sapatos. Mesmo não sabendo calçá-lo, verificou que logo se tornaria especialista nisso também. Ah, as modernidades, como é fácil nelas nos adaptarmos...


Pois bem, após calçado o sapato, não sem muito esforço inicialmente para ajustá-lo aos contornos daqueles pés até ali livres e soltos das rédeas por tanto tempo, o primeiro movimento do piá, o primeiro direcionamento dado aos seus passos agora ensapatados foram, firmes e resolutos, dirigidos à touceira de rosetas mais próxima e com uma satisfação estampada tanto nos olhos quanto na alma, caminhou sobre as rosetas, ao início lentamente como quem saboreia o movimento com total gozo, aumentando o ritmo do deambular com igual aumento de pressão, paulatinamente, até literalmente pisotear as indefesas rosetas que tantas vezes feriram seus pés,
consumando uma pequena, e doce para si, vingança...


Esmagou rosetas sem senti-las penetrando em sua pele; outras rosetas, é verdade, não àquelas que um dia feriram seus pés. Vingara-se nestas e isso aparentemente lhe bastava... Só não recuperara, nem poderia, as dores antes sofridas e tal ato, o de esmagar rosetas, não lhe trouxe lenitivo algum... Não se dera conta da inutilidade de seu gesto...


Iniciava o verão e o sapato seria a salvaguarda para seus pés estropeados; também no inverno quebraria geadas com gosto, sem dores, pés protegidos e sem peso na consciência... Aquele Natal, ao contrário da mensagem dos antigos Natais, de Perdão e Amor na sublimação do Ser, revelara ao guri o poder da retaliação da qual o mais forte sempre, ou quase sempre, lança mão sem se importar pelo desamor que a explode.


Como certamente o piá descobriria mais tarde, toda vingança, mesmo a maior, é inútil, descolorida, sem nexo ou efeito outro que não o de tornar infeliz o pobre de espírito que a comete. No episódio, a alma do guri ficara menor e o significado único trazido pelo presente que recebera, aquele par de sapatos, não foi vivenciado em toda sua extensão e magnitude, perdendo conteúdo o momento feliz vivido, pelo supérfluo de uma vingaça mesquinha... Quantos fazem isso, diariamente, em suas vidas?...

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