domingo, 14 de março de 2010

Bala Perdida (Conto/Continho)


Rita arregalou os olhos. Não podia crer no que via. Agarrada ao marido caído berrava o que lhe martelava o cérebro: O que era aquilo?... de vermelho, manchou o vestido... quase desmaiou... Em pé Marcelino, pálido e sem voz contemplava o amigo caído.

Na mão de Marcelino, o revólver...

Rita custou a se refazer da surpresa e estarrecimento. Só aos pouquinhos foi reaprendendo a respirar, reativar o tato... De súbito, pôs-se a correr desabridamente... Como um bólido desceu a rua e como se tivesse em mãos um megafone gritava a plenos pulmões: Mãenhêee! Mãenhêee!

Era inverno, quase dez horas da noite, os pais de Rita estavam deitados. Embora o prateado da lua brincasse de fantasiar o dia lá fora, o horário era tarde para quem levantava com o sol ou o chumbo da alvorada, ainda mais com o frio intenso que fazia. Tudo era silêncio, o sono chegava breve, agora perturbado por aquele som que chegava de longe pelo grito angustiado, aflito de Rita...Rita?... Mal sabiam os velhos do pesadelo que se avizinhava, recrudescido pelo som nervoso e inopinado que, agora, batia na porta, estalava na frente da casa e vigoroso invadia o quarto e a vida deles...

É a Rita - disse a mãe.
Escuta! - disse seco o pai,
Mãenhêee! - explodiu dentro da casa.
É ela - uníssonos disseram ambos, enquanto que, simultaneamente, saltavam da cama e passando por sobre tralhas que chamavam móveis chegaram à porta da sala do casebre, abrindo-a.

Diante deles, Rita desabou em grunhidos e soluços. as manchas vermelhas do vestido falavam mais alto que o vermelho dos olhos e do próprio pranto: É sangue!

O que foi?... O que é isso?... O que houve contigo?... - as perguntas brotavam em atropelos.

- O Gelcy... - Rita balbucia...
- O quêe?... Por quêe?... - berra o pai
- O que aquele cretino fez contigo? ... - incrimina a mãe.
-... mataram ele... - conclui Rita.
- O quêeee!... Quem?... Por quê? - berram os pais...
- Fala, pelo amor de Deus, fala... - berra a mãe...
- Calma, velha, calma, deixa ela... -
- Que calma nada, fala...
- ... Lá em frente de casa... mataram ele, mãnhêe, mataram ele... - prantos e soluços por toda a Rita a interrompem severamente.
- Onde ele está?... como foi?...Meu Deus... - diz atônito o pai...
- ... Na frente... o Marcelino ...tiro... caído... está morto...

Sai o pai correndo, vestindo calças sobre as ceroulas e meias, de chinelos e camiseta de mangas compridas; logo atrás, a mãe, lhe segue em corrida plena, com um casacão por sobre a camisola, também de meias e chinelos, junto com Rita, ambas em prantos. Os três disparando rua acima, densos de infortúnios.

- Pobre Gelcy, tão moço... - pensavam os pais enquanto corriam...
Rita não pensava. Sofria e corria!

- Compadre, o que foi que eu fiz... - balbuciava Marcelino agarrado ao amigo baleado e que sangrava abundantemente.

Pessoas surgiram de dentro da noite enluarada, quase dia. A curiosidade, antes da solidariedade reunira as pessoas. - O que aconteceu?... - Todos perguntavam e se perguntavam... - O que acontecera?... - Como? Por que? Houve briga? eram tão amigos e agora isso?... - Tantas perguntas e um fato: Gelcy fora baleado por Marcelino, algoz e vítima, que continuava agarrado ao compadre baleado, vítima acidental de um delito.

- Temos que levantar o Gelcy daí e levá-lo para o hospital - falou alguém, mais alto que o rumor do vozerio e letargia, normal, que afeta todos em ocasiões como essa...
- Mas será que ele está vivo? - alguém duvidou...
- Não é bom mexer com o corpo ou qualquer coisa da cena do crime, chamaram a polícia por acaso? - afirmou e perguntou um dos curiosos.
- Chamaram e é bom esperá-la - respondeu um terceiro.
Um vizinho se aproximando de Gelcy vendo-o respirar berrou - Que nada! Ele está vivo; sai Marcelino, tragam uma cadeira, vamos sentá-lo...-

- Tomávamos chimarrão e conversávamos... fui mostrar ao compadre que se acontecesse comigo o que ocorrera com meu mano a coisa seria diferente... Os navais surraram ele na pensão da Tia Florzinha... eram quatro e ele sózinho não arrepiou, mas apanhou tanto que até foi parar no hospital... - tentava explicar Marcelino enquanto alguém lhe assistia e dizia: - È melhor sair correndo daqui, agora, a polícia foi chamada e se te pegam é cana certa... é o tal de flagrante, homem...
- Mas foi um acidente - continuava balbuciando Marcelino - Eu ia mostrar ao compadre que se fosse comigo, e não o meu mano, eu pegava o meu Bagual 22' (marca e calibre de revólver de fabricação argentina) e, atirava nem que fosse p'rá cima, p'rá espantá-los... saquei a arma e fiz o gesto correspondente e a arma disparou com a bala acertando a cabeça do compadre... Meu Deus, meu Deus, o que foi que eu fiz, meu Deus!... matei o meu compadre, matei o meu amigo... e agora, o que faço agora?... -

Um espectador curioso ouvindo Marcelino e refletindo profundamente concluiu que ele fora epílogo de livro que não era seu e não tinha o direito de sê-lo e que por certo carregaria em seus ombros, pelo resto de sua vida sua vítima ou, quem sabe, um cadáver como, aliás, todos carregamos os nossos com o atenuante de nos sabermos apenas espectadores sem culpa ou dolo pelas perdas dos entes queridos próximos e, mais ainda, distantes de qualquer sentimento que não o da constatação estatística, dos terceiros incertos e não sabidos. Mas isso era mera filosofia de uma noite de inverno, muito fria, muito clara, enluarada...

Enquanto isso, levantaram o Gelcy e o sentaram na cadeira. Apertam-lhe no pescoço o orifício por onde adentrara a bala, querendo estancar o sangue. O velho Raul, vizinho, marido de D. Anália, carreiro de profissão, já aprontara o carro rainha puxado pela parelha de cavalos, o Solito e o Luar, com boleia e capota, estava pronto para levar Gelcy ao hospital como finalmente o levou.

Chegam, Rita e seus pais. - Ele está vivo! ... - exclamam! - Gelcy, fala comigo - implora Rita sem obter resposta...

...

Chega a Polícia. A confusão geral vai aos poucos se acalmando. Todos falam à policia, da vítima, do algoz, da poça de sangue que registra o local da queda de Gelcy (a terra sugara o vermelho do sangue de Gelcy e o devolvera como uma mancha negra que nem a noite prateada amenizara) Sai a polícia rumo ao hospital sendo cientificada pelo plantonista que lá, com muito esforço falara Gelcy que fora um acidente, Marcelino não tinha culpa... - Enquanto isso, mesmo com sua liberdade em perigo Marcelino vai com sua bicicleta até o hospital, ficando lá fora ao alcance de qualquer notícia, rezando pela recuperação do amigo.

Devagar o pesoal se afasta do local da tragédia, subidividido em vários grupelhos, encompridando a noite, no aguardo de resposta à curiosidade que detém... e as notícias não tardam... trazidas não se sabe como nem por quem, desencontradas e cheias de mistérios chegam todas ufanas em sua verdade...Gelcy morrera ao chegar ao hospital...ainda estava na mesa de operação lutando pela vida... o médico disse que o risco de morte é muito grande, tendo pouquíssimas chances de sobrevivência... a enfermeira disse que a coisa está tão preta que o óbito é questão de minutos...
A cada notícia, novas conjecturas, novos rumos. Aos poucos, cansados pelas elocubrações e notícias desconexas, na magia da noite que se esvai, os grupelhos vão se dissolvendo até que fica apenas o palco da tragédia iluminado pela lua que morre, pela alvorada que chega e pelo silêncio de um quase nunca mais...

Na sala de operações Gelcy sofria delicada cirurgia. A bala penetrara-lhe pelo pescoço alojando-se em um osso da base do crânio. Por milímitros a bala não lhe atingira a artéria, o que, tivesse ocorrido, o teria matado na hora. Por sorte não sofrera hemorragia interna.À cirurgia meticulosa, demorada, sofrida, não fora possível a extração da bala. Por algum tempo, enquanto convalescente todo o cuidado era pouco, para que a presença da bala na base do crânio não deflagrasse uma hemorragia fatal.

Marcelino foi processado e absolvido, em juízo singular pelo acidente causado. Gelcy, vítima, recuperou-se após algum tempo, do episódio e da lesão sofrida. Não teve seqüelas de qualquer ordem. Ambos continuaram amigos e compadres sendo que Marcelino jamais voltaria a portar arma; aquele Bagual 22' tinha-lhe dado o desgosto e amargura suprema de se ver assassino e
quase o transforma nisso e o que é pior, em cima de um grande amigo.

Gelcy e sua família, vencido o período e trauma inicial, voltaram ao cotidiano; tudo como antes. Ele, mestre padeiro, fazendo pão de qualidade na Padaria Rosa; Rita continuando a realizar seus afazeres de dona de casa e seus bordados nas calmas noites do lar, como àquela, agora distante, n'um frio dia do início de maio daquele ano quando ao levantar os olhos foi surpreendida pelo clarão e estampido de uma arma de fogo e, concomitantemente, com a queda do corpo de Gelcy, abrindo às portas de um inferno que rezava jamais viesse se repetir...

Sete meses depois daquela noite que pensara ter eliminado da lembrança, Rita se encontrava em trabalhos de parto no mesmo hospital, Caridade de Uruguaiana, onde Gelcy fora salvo. Era seu segundo filho e quando do acidente Rita não sabia que o esperava, grávida de dois meses. Olmir José (que seria Almir José, não fosse um erro do escrivão do Cartório de Registro das Pessoas Naturais) o filho recém nascido, segundo o médico obstetra, apresentava paralisia dos membros inferiores, com a possibilidade de ser permanente o que, juntamente com inoportuna e momentânea paralisia dos membros inferiores de Rita na hora do parto, prejudicara seu nascimento sendo o parto efetivado à fórceps. O doloroso diagnóstico viria a ser confirmado com o passar dos anos e catorze operações a que viria a se submeter (O)Almir na vã tentativa de andar com suas próprias pernas.

(O)Almir jamais caminharia fisicamente falando já que, como pessoa tornou-se bem maior e completo do que tantos que, ditos sadios, só sabem deambular com suas própria pernas sem sequer utilizar um átimo de sua imaginação e bondade. (O)Almir somente nasceu e ficou privado de uma condição física, comum a tantos, de resto foi e é superior às vicissitudes e preconceitos que enfrenta e vence!

O disparo acidental de Marcelino fizera mais do que uma vítima! Atingira também (O)Almir mais grave e mais fundo do que atingira Gelcy!

Ninguém desde aí pode eliminar aquela noite cujo prateado brincava de fazer dia. A vida pregara mais uma de suas peças e as muletas (e cadeiras de roda) de (O)Almir, seu sofrimento, suas limitações, formaram o painel e o fardo dolorido de todos.

Para Rita a beleza daquela noite até o momento do disparo, nunca mais se repetiu...

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