sábado, 27 de fevereiro de 2010

A demissão (Poema/Mini Conto/Continho)

Apenas sei que quando me dei por gente
eu estava no mundo
e já conhecia um bocado de suas manhas.
Enquanto me chamavam de pobre moleque
eu, com a cara estampando toda a tristeza
tirava vantagem dessa necessidade
de apiedarem-se que as pessoas têm.
Que sabia de cinismo? só sabia que
uns olhos marejados, um rosto contraído,
uma máscara de amargura, enfim,
era o suficiente para assegurar-me,
ao menos por alguns dias, mesa farta.
Era um artista! Em dois minutos, no máximo,
lá estava resplandecendo em sorrisos
para mostrar a alva fileira de dentes
que naquela época eu possuía; aliás,
só tinha duas cáries, se tanto... não lembro bem...
O que lembro é da Maria-Pega, oh, se lembro!
e como pegava a Maria. Para mim, novinho
e cheirando a fraldas, como ela dizia,
ela foi a prima-dona verdadeira.
Naquela época só não gostava da chuva,
a cidade se escondia
e eu ficava sem aquilo que era a minha família:
o povo que escorria por entre as ruas
e que me sustentava, sim sustentava,
uma trombadinha aqui, outra acolá
e já estava garantido o "grude".
Especializei-me no ramo e tirei patente,
fiz o teste vocacional na prática
e optei pelo viver o mais possível
sem grandes esforços. Foi um erro
porque, na verdade, fiz muito esforço
para não fazer esforço e acabei cansando.
Um dia fui engavetado, como diziam na época
quando a pessoa ia para a cadeia...
e me tornei doutor! Entrei especialista
em trombadas e saí de lá cheio de solfejos
e teorias novas. Apliquei-as e foi dando certo
até que assaltei, no maior sangue-frio,
um velhote e seu dinheiro me fez muito bem
mas o que ele me disse me marcou, me incomodou.
Ele falou nesse negócio de ser tão jovem
e simultaneamente tão vazio, coisas assim;
o sermão foi longo e o tabefe que dei no velho
expressava, hoje compreendo, um tapa no mundo,
no mundo que eu conhecia. Perguntou-me
sobre o que imaginava a respeito do bem, essa coisas
e aceitou altivamente minha ousadia.
No fundo, no fundo fui eu quem levou aquele tapa
e até hoje acho que o velho se deixou roubar...
por que? sei lá, só sei que daí dois, três
ou quatro anos, não estou certo, encontrei-o
e lhe devolvi seu dinheiro, com juros e tudo.
Mas não foi só esse velho, foi também aquele menino
que me olhando com um misto de inveja e orgulho
disse-me naquela praçã que gostaria de ser como eu...
Ser como eu, essa agora!...
O que realmente sou? acho que nem sou, pensei...
O pequeno marginal que vivia em mim
começou a morrer nessas passagens: o velho,
o menino, o medo da cana, tudo crescia
e tudo me empurrava para outro caminho,
um caminho que não trilhara e nem sonhara,
Banquei a coragem e meti a cara com vontade,
assaltei mais um, com a intenção
de começar nova vida, com outra base
mais sólida do que a primeira quando surgi
para preencher um espaco que,
se existia, nem precisava ser preenchido...
No assalto me dei mal e novamente fui preso...
O Juiz de Menores me repreendeu severamente
e acho que me enviaria para o Reformatório
não fora o que tentei lhe explicar.
Ele deixou-me e, com um pouco de relutância,
acreditou no que eu lhe dizia.
Daí em diante me orientou, se preocupou, me protegeu
me deu a chance e foi um pai para mim.
de minha parte fiz o possível para não decepcioná-lo!

Vejam como, com tal experiência, estou aqui
julgando outros menores, orientando-os,
já fui como eles e sei bem de seus azares
e por mais que me esforce não consigo
empurrá-los para um Reformatório
enquanto não o consigamos mudar
o fazendo instrumento de recuperação real e adjetiva;
real porque objetiva, adjetiva porque com amor.
Lutei, lutamos, mas estou desistindo,
desistindo de julgar por não concordar com o método de hoje
que continua sendo o mesmo de meu tempo.
O Reformatório precisa ser reformado
e não desisto de lutar por tal desiderato,
apenas sinto que materialmente nada posso fazer
e dessa forma chamo a atenção para o problema
com este gesto medido, calculado e, quem sabe, inútil,
um gesto considerado por muitos, possivelmente, tresloucado:
Solicito minha demissão do cargo vitalício
por ser incompatível meu dever
(o de mandá-los para o Reformatório)
com a justiça que creio justa e nobre.
Talvez não possa reformar o mundo, nem o Reformatório
mas tenho convicção, terei colaborado para chegar a tanto.
Adeus, a todos!

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